Em defesa das cotas

Em artigo publicado na edição de 19 de abril na página de artigos do Correio do Estado, o advogado Raphael Curvo chama de “jeitinho” a adoção de cotas de ingresso na universidade para negros e índios, ao mesmo tempo em que entende serem as cotas aceitáveis, no que se refere a alunos oriundos do ensino público

O autor parece desconhecer os dados estatísticos extremamente desfavoráveis aos negros, em todos os campos que a vida flui, notadamente na Educação. Exemplificamos: dados do respeitável Ipea revelam, no que se refere ao analfabetismo, que a taxa entre os brancos com mais de 15 anos, em 1999, é de 8,3%, enquanto para os negros é de 19,8%. A taxa de analfabetismo funcional entre brancos é de 20%, alta, entre os negros de 41%, altíssima. A diferença de anos de estudos entre brancos e negros é de 2,6 – um número vergonhoso e que persiste ao longo de mais um século.

A despeito disso, há uma enorme e indisfarçável má vontade na superação dessas particulares diferenças, e, portanto, na implantação das ações afirmativas ou também chamadas discriminações positivas, gênero de medidas das quais as cotas são espécie.

Num discurso sedutor, mas enganoso, argumenta-se que discriminações positivas ferem o princípio constitucional da igualdade.Esquecem-se – até juristas! – que, desde a Revolução Industrial, o Estado abandona a neutralidade defendida pelo liberalismo, para intervir no domínio socioeconômico. A partir desse marco histórico o princípio da igualdade jurídica já não se limita apenas a uma igualdade formal ou isonômica, mas ganha traços acentuados de uma igualdade material, ou seja, o referido princípio passa a ser compreendido como um instrumento hábil para implementar, no plano real, uma igualdade efetiva, em consonância com as demais diretrizes constitucionais previstas em cada caso específico.

O princípio jurídico, dessa forma, deixa de ser apenas um dos pilares do Estado de Direito, como inicialmente concebido pelos revolucionários franceses, para ser um dos sustentáculos do estado social.

Entre as objeções mais correntes à aplicabilidade das Ações Afirmativas, em especial as cotas para ingresso na universidade, avulta a alegação de que a compensação de minorias sociais – especialmente os negros (por que a objeção mais dura só é feita quando se trata dos direitos dos pertencentes a essa etnia) – afronta o princípio da igualdade. Os que assim argumentam fazem-no por ignorar a moderna concepção do princípio constitucional da igualdade, o que é perdoável, ou por má-fé mesmo, o que revela um mal disfarçado racismo.

Esse tratamento de caráter compensatório e diferenciado é constitucional e juridicamente possível. O Prof. Alexandre Moraes, depois de dizer que o que se veda na Constituição são as diferenciações arbitrárias ou discriminações absurdas, leciona: “A desigualdade na lei se produz, quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos.

Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado”.(Direito Constitucional, 12ª edição, Atlas, página 65).

Por isso, as medidas compensatórias de uma particular situação de carência socioeconômica de que padecem certas minorias são perfeitamente compatíveis com os postulados constitucionais, desde que, como se disse, tenham em mira um fim razoável. Por isso é que cerca de 55 países adotam essas políticas públicas compensatórias das chamadas desigualações injustas.

No meio jurídico norte-americano, segundo o ensinamento de Fábio Konder Comparato, a moderna correção das grandes desigualdades sociais foi operacionalizada por meio das ações afirmativas. “Trata-se de remédio judicial destinado a compensar a fraqueza econômica e social das minorias raciais e culturais, mediante a garantia de certos privilégios – em matéria de emprego, público ou privado, ou de vagas reservadas nas escolas, universidades e hospitais, por exemplo”. (Direito Público – Estudos e Pareceres, Saraiva, 1996, páginas 58/9).

Num opúsculo de leitura indispensável àqueles que desejem minimamente compreender a verdadeira natureza do princípio da igualdade, o Prof. Celso Antônio Bandeira De Mello esclarece: “…Imagina-se que as pessoas não podem ser legalmente desequiparadas em razão da raça, ou do sexo, ou da convicção religiosa (art. 5º, caput da Carta Constitucional) ou em razão da cor dos olhos, da compleição corporal etc. Descabe, totalmente, buscar aí a barreira insuperável ditada pelo princípio da igualdade. É fácil demonstrá-lo”. (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, Malheiros).

Por fim, é adequado consignar que o articulista está correto ao preconizar medidas outras destinadas à correção de desigualdades injustas e secularmente implantadas, tais como melhora do ensino público ou cobrança de mensalidade daqueles que podem custear o ensino superior. Sabe-se, entretanto, que essas medidas são de difícil e demorada implantação. Sendo assim, porque não adotar as cotas como medidas emergenciais, até que um dia possamos dispensá-las por desnecessárias?

Aleixo Paraguassú Netto, juiz de direito aposentado e ex-secretário de educação de MS – aleixonetto@uol.com.br

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