É do chanceler Celso Amorim o qualificativo “nosso guia” para designar a clarividência diplomática de Lula. Bajulá-lo, elevando-o à condição de líder mundial, faz parte do ritual de oferendas-companheiras. O senador Aloizio Mercadante, por exemplo, escreveu que “não há líder no planeta que não queira se reunir com ele para trocar idéias e percepções sobre a construção do futuro”. “Em nossa região, a maioria dos chefes de Estado busca seu conselho.” Será que foi o caso de Evo Morales?
O pior é que Lula acredita nessas coisas. Rege uma política externa esportiva no método, exibicionista no ritual e desastrosa nos resultados. Nunca, desde que os obás Osenwede, do Benin, e Osinlokun, de Lagos, tornaram-se os primeiros chefes de Estado a reconhecer a nação brasileira, Pindorama andou tão encrencada nas relações com seus vizinhos. O Brasil se distanciou de quem deveria se aproximar (Argentina e Chile) e aproximou-se de quem devia se distanciar (Venezuela e Cuba). Perdeu tempo com países inúteis (Namíbia e Gabão) e oportunidades com aliados tradicionais (Uruguai e Paraguai).
Quando o secretário de Estado George Marshall chamou o embaixador George Kennan para planejar a recuperação da economia européia, pediu-lhe: “Evite as trivialidades”. Lula faz o contrário: persegue uma autoglorificação trivial. Meteu-se a cabo eleitoral na eleição boliviana e associou-se a Evo Morales, que confisca o patrimônio de empresas brasileiras. Decidiu capturar a presidência da Organização Mundial do Comércio e seu chanceler desqualificou o candidato uruguaio. Atropelou na direção de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU e até hoje está em pé. A di-plomacia fominha estimulou a galhofa do presidente argentino Néstor Kirchner, para quem Lula tinha candidato até a papa. (Era d. Cláudio Hummes.) Saiu pelo mundo articulando um imposto contra a pobreza. Resultou que a patuléia brasileira corre o risco de pagar taxas de embarque mais caras nos seus vôos internacionais. O presidente americano George Bush já disse que não aceita esse tipo de tunga em cima de seu povo miserável.
Pode-se fixar com precisão a ocasião em que Lula jogou no mar a oportunidade de desempenhar um papel politicamente relevante nas negociações internacionais. Ela se deu em janeiro do ano pas-sado, quando a Argentina saiu sozinha brigando pela reestruturação de sua dívida externa. Pressionado pela servidão cosmopolita da ekipekonômika, “nosso guia” foi incapaz de oferecer aos argentinos o conforto da cortesia. Pelo contrário, muita gente boa do governo brasileiro saiu a futricar pelos salões de Washington, defendendo a banca. Achavam que a reestruturação fracassaria. Deu certo.
Enquanto “nosso guia” acredita que redesenha o mapa geopolítico do mundo, o Mercosul (herança maldita do tucanato) vai a pique, comido pela borda por uma teia de acordos bilaterais da diplomacia comercial americana. Encantado com a política externa dos grandes empreiteiros, ratificou uma irresponsável dependência do gás boliviano. Não bastaram os confiscos de Saddam Hussein nos anos 80, os calotes da cleptocracia africana nos anos 90, muito menos as roubalheiras angolanas de hoje.
Elio Gaspari, jornalista (artigo publicado originalmente em 3 de maio no jornal Folha de S. Paulo)