A reação de Lembo

Tão surpreendente quanto a onda de ataques e motins comandados pelo crime organizado, em São Paulo e outros Estados brasileiros, foram as declarações do governador Cláudio Lembo, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, publicada no dia 18 de maio.

Primeiramente, é preciso situar o perfil do entrevistado: homem passado dos setenta anos, experiente; ex-reitor da Universidade Mackenzie, instituição com larga história associada à elite paulistana; político reservado, muito atuante nos bastidores partidários, sempre posicionado com o poder; em síntese, retrato de corpo inteiro de um conservador. Assim, a contundência das suas afirmações soam estranhas, porque contrariam o discurso que, historicamente, representantes da direita, como é o caso do governador, enunciaram.

Se as frases ditas por Cláudio Lembo tivessem sido proferidas por qualquer dos políticos identificados com a matriz ideológica marxista, ou de esquerda, não causariam impacto, nem mereceriam análise. Entretanto, quando um liberal, conhecido por seu equilíbrio, assume texto tão crítico, é porque essa insana conjuntura, de algum modo, provocou a inesperada reação.

Ao tentar uma explicação para a escalada da violência, diz: “eu me assusto com toda a realidade social brasileira”, completando que somos “um país que só conheceu derrotas. Derrotas sociais…Nós temos uma burguesia muito má, uma minoria branca muito perversa”. Não por acaso, Cláudio Lembo destaca tanto o viés de classe (burguesia), como o racial (minoria branca), mostrando sua indissociabilidade na trama urdida para sustentar as mazelas sociais: uma é “muito má” e a outra “muito perversa”. Na realidade, ambas se revelam faces da mesma moeda.

Em seguida, recorre ao exemplo histórico da Abolição, para provar, no plano coletivo, sua tese do cinismo nacional. Aqui, “quando os escravos foram libertados, quem recebeu indenização foi o senhor, e não o liberto, como aconteceu nos EUA. Então, é um país cínico. É disso que nós temos que ter consciência. O cinismo nacional mata o Brasil”.

No plano individual, afirma que “todos são bonzinhos publicamente. E depois, exploram a sociedade, seus serviçais, exploram todos os serviços públicos. Querem estar sempre nos palácios dos governos porque querem ter as benesses do governo”.

Sem fazer tratado sociológico ou jurídico, o governador de São Paulo, em linguagem direta, mostra como a burguesia se apropria do aparelho de Estado, utilizando-o a seu serviço, em favor de seus interesses.

Certamente, para uma autoridade constituída é complicado falar da corrupção, mas quando se sabe que os agentes da corrupção ativa e passiva, pelo acesso que têm ao poder, são integrantes da burguesia, estejam eles nas organizações privadas ou nos órgãos públicos, torna-se claro que, sem o explicitar, Cláudio Lembo pauta essa questão, sob o eufemismo do “cinismo nacional”.

Lúcido, o governador admite que o “crime organizado é perigosíssimo. Ele se recompõe porque ele tem possibilidades enormes na sociedade”. Mais uma vez, há uma chamada à responsabilidade para todos os cidadãos, na medida em que a tolerância, a leniência com que a sociedade brasileira encara os episódios de corrupção, quase naturalizando-os, (como, lamentavelmente fez o presidente, ao afirmar que caixa dois em campanha eleitoral é normal), cria um caldo de cultura favorável à anomia, à crise de valores pela qual passamos.

Num tom profético, assegura que a “bolsa da burguesia vai ter que ser aberta para poder sustentar a miséria social brasileira no sentido de haver mais empregos, mais educação, mais solidariedade, mais diálogo e reciprocidade de situações”. Novamente, um eufemismo, “reciprocidade de situações” poderia ser lido como igualdade? No contexto em que está, parece que sim. Embora não o diga com todas as letras, está claro que o governador critica o modelo econômico, que não privilegia a produção; a concentração de renda, que deposita na ” bolsa da burguesia” a maior parte das riquezas, produzindo o quadro de miséria a que se refere; o “duplo pensar” e o duplo agir, pelo qual a burguesia construiu esse quadro de horror, posto a nu pela ação terrorista do PCC.

Talvez, Cláudio Lembo tenha se magoado com muitas pessoas de seu círculo, que lhe faltaram; talvez, a solidão do poder tenha sido penosa; talvez, a proporção desmesurada da crise tenha pesado demais. É difícil saber, exatamente, como e por quê um homem com a sua trajetória assume as posições que manifestou, porém, com este episódio pode-se aprender que, nas situações-limite, algumas pessoas se tornam mais lúcidas e humanas.

Paulo Cabral, Sociólogo – Professor da Uniderp/MS

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