A reforma do Estado

O Estado é a mais relevante das instituições políticas e, talvez, a mais engenhosa criação da humanidade. A despeito de ter passado por profundas mudanças que vão da “polis” ao império, do império ao feudo, do feudo à monarquia e da monarquia à república, não conhecemos mais que duas formas originais de sua organização: ou são unitárias ou compostas, isto é, federativas. Por essa razão, toda e qualquer alteração transcendente na vida das nações passa necessariamente pela reforma do Estado. Em nosso caso, a reforma da Federação.

Nos dias atuais, a questão federativa tem ocupado a agenda política do País em torno de expressões atraentes como “repactuação federativa” – aliás, houve o pacto? – ou “renegociação do pacto federativo”. A federação que nasceu provisoriamente com o Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889, e se consumou com a Constituição de 1891, não foi pactuada, nem mesmo seriamente debatida. A medida, adotada de forma provisória, transformou-se em permanente e assim se manteve, a exceção de 1898 a 1930, de 1930 a 1937 e de 1964 a 1988, quando tivemos regimes unitários de fato.

A organização federativa republicana brasileira foi concebida, pautada e tem sido sustentada por uma discriminação de rendas entre os entes federativos que resultou num sistema tributário simétrico para um país assimétrico sob todos os aspectos – tanto geográficos e demográficos quanto econômicos. As sucessivas constituições sob as quais vivemos desde a Independência sempre impuseram um modelo concentrado e ao mesmo tempo concentrador de poder, contribuindo para a manutenção desse desequilíbrio que não guarda, contudo, relação de simetria com a distribuição de encargos e atribuições entre a União e os Estados e os municípios. Somos, em consequência, uma Federação que reproduz os desequilíbrios existentes entre as demandas locais e regionais e a possibilidade de seu atendimento equilibrado. A forma é efetivamente federativa, mas a substância contínua essencialmente unitária.

Exemplos dessa deformação político-institucional encontram-se em todas as áreas. Eles vão desde a recente camisa-de-força imposta pela insólita “verticalização” das coligações à liberdade de organização e funcionamento dos partidos políticos até avanços como a Lei de Responsabilidade Fiscal, que impõe modelos de gestão financeira indistintamente aplicáveis a municípios de mais de dez milhões e aos que não chegam a dez mil habitantes. Os sistemas federativos autênticos exigem princípios comuns de um lado e práticas adequadas às suas peculiaridades materiais de outro. Uma reforma de Estado, portanto, pressupõe como requisito a concepção de um sistema fiscal e tributário compatível com as peculiaridades e responsabilidades dos entes federativos. A distribuição constitucional de encargos e competências deve ser resultado de discriminação de rendas proporcional à soma dos encargos que possam ser livre e eficientemente repartidos e assumidos pela União, pelos Estados e pelos Municípios, em função das suas necessidades e segundo suas possibilidades. A multiplicidade de sistemas fiscais, que têm por objeto os tributos e os não contribuintes, respondem, em muitos casos, tanto pela elisão fiscal quanto pela corrupção, pela fraude e pela sonegação.

Uma reforma assim esboçada permitirá que se defina, segundo uma nova e verdadeira Federação, os sistemas eleitorais, partidários e de governo adequados e um modelo político com ela compatível. Sem adequarmos meios e fins, e sem sopesarmos condicionantes e condicionamentos, um novo modelo de engenharia constitucional resultará, como até agora, o mais do mesmo. Dos acertos sempre, sem dúvida, mas dos erros também. Nestas condições, a reforma do Estado pressupõe a prévia definição de um sistema fiscal e tributário simplificado, com custos mínimos de afetação para todos os contribuintes, segundo sua capacidade contributiva. Esse modelo deve ser adequado e criteriosamente definido em função das responsabilidades, atribuições e encargos de cada ente federativo, sem amarras que lhes imponham padrões inflexíveis e criação de impostos de cima para baixo, sem levar em conta peculiaridades, exigências e condicionamentos regionais e locais. É preciso evitar os erros até agora cometidos de que resultam a sobreposição de serviços e atribuições que, além de onerarem custos, têm o condão, como definiu o professor Robert Nozick, de transformar meios em fins.

Marco Maciel, Senador e membro da Academia Brasileira de Letras.

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