Almir Morgado
Embora seja tema já exaustivamente debatido tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, a questão acerca do choque entre a súmula 331 do TST e o artigo 71 da Lei de Licitações —Lei Federal nº 8.666/93—, ainda continua causando dúvidas, tanto aos alunos quanto a alguns operadores do direito, razão pela qual resolvi lançar minha pequena contribuição na elucidação do problema.
1. Responsabilidade Primária e Secundária do Estado
Diz-se primária a responsabilidade quando é atribuída diretamente à pessoa física ou à pessoa jurídica a que pertence o agente causador do dano; será secundária ou subsidiária, quando sua configuração depender da circunstância de o responsável primário não ter condições de reparar o dano por ele causado, sendo então transferido para outrem, o dever de indenizar.
Em conseqüência, a responsabilidade do Estado será primária quando o dano tiver sido provocado por um de seus agentes. Assim, se um servidor, ou qualquer outro agente, estiver atuando em nome da União, vale dizer, agindo efetivamente na qualidade de servidor, surge inexoravelmente a responsabilidade primária do Estado, de acordo com o supra citado artigo 37, § 6º da Constituição Federal.
Todavia, há casos em que a responsabilidade do Estado não será primária.
Há muitas pessoas jurídicas que exercem sua atividade como efeito da relação jurídica que as vincula ao Poder Público, como, por exemplo, as entidades da administração indireta, as pessoas prestadoras de serviços públicos por delegação negocial (concessionárias e permissionárias de serviço público) como também aquelas pessoas que executam obras e serviços por força de contratos administrativos.
Nestas hipóteses, a responsabilidade primária deve ser atribuída à pessoa jurídica a que está vinculado o agente causador do dano. Mas, mesmo não sendo possível atribuir-se ao Estado a responsabilidade direta, o certo é que também não se poderia eximi-lo inteiramente das conseqüências do ato lesivo. Sua responsabilidade, porém, será secundária, ou seja, nascerá somente quando o responsável primário não mais tiver forças para cumprir a sua obrigação de reparar o dano1 2.
Em que pese o entendimento acima ser esposado por grande parte da doutrina e da jurisprudência, em termos estritamente legais, há no ordenamento pátrio vedação a que se impute ao Estado responsabilidade secundária pelos danos causados pelos contratados, na forma da Lei de Licitações e Contratos —Lei Federal nº 8.666/93. Referimo-nos, especificamente, ao disposto no artigo 71 da referida lei, que estabelece:
Artigo 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§ 1º. A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.
§ 2º A Administração Pública responde, solidariamente, com o contratado pelos encargos previdenciários resultantes da execução do contrato, nos termos do art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.
Acrescente-se, no entanto, que há uma forte tendência para atenuar a aplicação do dispositivo legal supra transcrito, que como regra exorbitante do direito comum, só incidiria em casos muito específicos.
2. A controvérsia trabalhista a cerca da responsabilidade do Estado na terceirização de serviços
Na esfera trabalhista, no entanto, a jurisprudência vem admitindo a responsabilidade secundária dos entes públicos, no caso de dívidas trabalhistas inadimplidas pelas empresas intermediadoras de mão de obra contratadas por aqueles.
Trata-se de hipóteses de terceirização de mão-de-obra3. Os entes públicos contratam empresas prestadoras de serviços de limpeza, segurança e outras atividades, e estas, deixam de saldar as obrigações trabalhistas que tem com seus empregados.
Para a hipótese em tela, o Tribunal Superior do Trabalho fez editar a Súmula nº 3314, na qual se admite a responsabilidade do ente público.
Trata-se, portanto, de um caso especial de responsabilidade secundária do Estado, na qual é inaplicável o artigo 71 da Lei nº 8.666/93 já que, na hipótese ora ventilada, o Estado pratica típico ato negocial e não está prestando serviço público propriamente dito, mas sim atuando como simples tomador de serviços e, logo, responsável subsidiariamente pelo inadimplemento das dívidas trabalhistas da empresa fornecedora de mão-de-obra.
Explica-se.
Há quem fundamente a responsabilização subsidiária do Estado tomador na terceirização de mão de obra, a despeito do contido no artigo 71 da lei nº 8.666/93, asseverando a inconstitucionalidade do citado artigo legal, face ao princípio da responsabilidade objetiva previsto constitucionalmente.
Não se percebe, salvo melhor juízo, inconstitucionalidade alguma da disposição normativa contida na Lei de Licitações.
Primeiro, porque o disposto no artigo 37, parágrafo 6º da Carta, aplica-se exclusivamente àquelas hipóteses onde há ato de agente público no desenvolver de atividade pública —serviço público, pois5 6. Não é o que ocorre quando o Estado contrata empresa prestadora de serviços. O usuário direto do serviço prestado é o próprio Estado (interesse público secundário) e não o cidadão, ou a coletividade (interesse público primário), como ocorre na prestação de serviço público propriamente dito.
Portanto, se o princípio da responsabilidade objetiva não se aplica na hipótese, pelo que se disse anteriormente, a controvérsia não se resolve pelo pretenso conflito entre a Carta e a Lei de Licitações.
A responsabilização do Estado-tomador, que, se admite, resulta de omissão do Estado na fiscalização do cumprimento dos encargos trabalhistas, bem como na escolha de empresa inidônea para a prestação do serviço, visto que a mesma praticou ilícito trabalhista ao não cumprir com suas obrigações.
Trata-se, pois, de típica culpa civil. Que se resolve pelos postulados civis, da culpa in contrahendo e in vigilando. Logo, na esfera infraconstitucional.
Ora, haveria então choque de leis, quais sejam a lei de licitações, que exclui a responsabilidade da administração e a lei civil-trabalhista que a admite (vg. artigo 455 da CLT).
O choque é aparente. O direito é uno. Não pode haver choque entre norma trabalhista e norma administrativista.
O disposto no artigo 71 da Lei de Licitações será corretamente aplicado naquelas hipóteses em que o Estado e as demais entidades administrativas a ele vinculadas estiverem celebrando contratos administrativos, regidos por regras próprias, exorbitantes do direito comum, o que não ocorre quando o Estado celebra contrato de prestação de serviços em atividades meio, sendo ele próprio o beneficiário primeiro da atividade.
A jurisprudência administrativista tem atenuado em muito as prerrogativas estatais quando não se tratar de atendimento ao interesse público primário.
Por outro lado, deve também ser ressaltado que a incidência correta do disposto no artigo 71 da lei de licitação deve ocorrer quando inexistir por parte do Estado culpa na fiscalização e execução do contrato, e, no caso, houve falha nesta fiscalização, falha que propiciou o descumprimento da legislação trabalhista por parte da prestadora.
Conclui-se, pois, que há responsabilidade do Estado quando da terceirização de serviços, não pela incidência do princípio da responsabilidade objetiva —já que aqui a responsabilidade é subjetiva.
Conclui-se também pela inaplicabilidade do disposto na lei de licitações —não por sua suposta inconstitucionalidade, mas pela não subsunção do fato ora tratado— inadimplemento de encargos trabalhistas por parte da prestadora —à hipótese que serve de substrato ao contido na referida norma.
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