A luta contra o crime na administração pública, nas ruas e nas penitenciárias expôs a figura sinistra e paradoxal do advogado criminoso. O paradoxo está em que, nos termos da Constituição, o advogado é conceituado de maneira diametralmente oposta, como “indispensável à administração da Justiça”.
Como tal, em tese, não pode afrontá-la. Por isso, afirmo: advogado criminoso é contradição intrínseca. O que há, isto sim, é criminoso eventualmente travestido de advogado, que precisa ser banido da profissão, tal como o que se traveste de médico, jornalista, político, engenheiro etc.
Criminoso é criminoso, não importa o diploma acadêmico que ostente. Quanto mais culto e preparado, mais hedionda sua falta, pois o conhecimento aprofunda o compromisso com a ética e o bem comum. A OAB tem sido, ao longo de sua história, implacável com as faltas éticas que chegam a suas instâncias de julgamento.
Desconheço outra profissão que puna com tanta freqüência os transgressores. Somos, contudo, escravos da lei, e os instrumentos que o Estatuto da Advocacia, lei federal, nos oferece – e que têm sido utilizados, com todo o rigor e implacabilidade – são limitados. Sendo, porém, lei federal – e não norma administrativa interna –, não temos a prerrogativa de mudá-lo. Cabe ao Legislativo, à luz dos acontecimentos em curso, fazê-lo.
Sem prejuízo do devido processo legal e da ampla defesa, é possível rever prazos e procedimentos relativos à responsabilização administrativa dos que profanam e desonram a profissão, desconhecendo as fronteiras entre a advocacia criminalista e o crime propriamente dito.
Pessoalmente, acho precário o mecanismo estatutário de suspensão por 90 dias, obrigando a que, nesse prazo, haja o julgamento do infrator. Havendo má-fé por parte do litigante – e , sendo profissional delinqüente, é inevitável que haja o processo – será estendido, por meio dos mais variados expedientes, para bem além daquele prazo, favorecendo a impunidade.
A OAB está aberta a sugestões que propiciem maior agilidade na exclusão dos maus elementos que infestam a advocacia, sem prejuízo dos princípios básicos mencionados (ampla defesa e devido processo legal), que temos dever profissional e moral de preservar. Cremos, porém, ser perfeitamente possível compatibilizá-los com a agilidade que a sociedade reclama no combate ao crime. Mas não podemos permitir que se instale no Brasil, a qualquer pretexto, o ambiente justiceiro vigente em alguns países em nome do combate ao terrorismo.
Vimos, há dias, por exemplo, as autoridades inglesas isentarem de culpa policiais que, de maneira torpe, assassinaram um inocente, um jovem migrante brasileiro, pelo simples fato de sua etnia morena ter levantado suspeitas de que poderia tratar-se de terrorista árabe. Nem todo moreno é árabe, nem todo árabe é terrorista e nem todo terrorista é árabe.
A presunção de inocência é princípio universal do direito. Não pode sucumbir nem mesmo em momentos dramáticos. Onde os fundamentos da Justiça são desprezados, impõe-se a barbárie. Outro fator corrosivo é a impunidade, que, aqui, tornou-se, mais que uma prática, uma cultura.
A OAB tem compromisso permanente com a superação desses desvios. Não compactuamos com a impunidade. Não queremos privilégios para os advogados. Não nos opomos a que sejam submetidos aos detectores de armas e metais e outros instrumentos de controle destinados aos cidadãos em geral – quer nos aeroportos, quer nas penitenciárias, quer nos demais locais públicos em que o primado da segurança imponha esses cuidados. Mas não concordamos com medidas discriminatórias, que visem apenas os advogados, como se estivessem sob a custódia do Estado.
Quem deve ser submetido a revistas – severas e minuciosas – antes e após o encontro com o advogado (e não só com o advogado, mas com o padre ou o pastor ou os familiares) é o preso, este sim sob custódia do Estado. Quando isso ocorre, cumpre-se um princípio elementar de segurança, sem violação de direitos ou constrangimentos. Inexplicavelmente, porém – e isto é espantoso –, nem sempre assim ocorre.
A OAB proclama como princípio e fundamento deste nosso ofício que não há – não pode haver – advocacia sem ética, sem decência, sem compromisso com o bem comum. O que estiver fora disso não é advocacia, é desvio de conduta e, como tal, deve ser e será tratado.
ROBERTO BUSATO, advogado e presidente nacional da OAB; (Artigo publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo).