“Urnas” eletrônicas: mitos e realidades

Neste domingo, 1º de outubro, vamos votar. Para muitos, é o dia de escolher conscientemente seus representantes e exercer o direito de cidadania. Para outros muitos, infelizmente, será apenas o dia de cumprir uma obrigação, já que aqui no Brasil o voto é obrigatório. Entre todos, contudo, existe algo em comum, que a maioria esmagadora, multidão iludida, ignora: não há segurança alguma de que a nossa escolha cidadã será expressa no resultado divulgado no dia da eleição.

Naquele momento do voto, votem conscientes ou não, em branco ou nulo, todos acreditam estar fazendo o que é certo. Mas o resultado do voto não é garantido. Tudo por conta do mito “urna” eletrônica, grande mentira até no nome. Com efeito, o nome certo seria máquina de votar. Mas, sabe-se lá por qual motivo, de repente esta “urna” (propositalmente entre aspas) assumiu a identidade da verdadeira urna eleitoral, o local onde se depositam os votos, para depois serem conferidos. Na “urna”, não é possível conferir o voto.

Um fato, e notem que falamos de fatos e não de idéias, é que o sistema eleitoral brasileiro do qual tanto nos orgulha é o mais obscuro e inseguro do planeta. Não existe, absolutamente, nenhuma garantia de que os eleitos no próximo pleito sejam aqueles que escolhemos realmente… E pasmem: nem mesmo que o nosso sagrado e constitucional direito de sigilo do voto será mantido.

Nossa Constituição declara no artigo 14 que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e voto direto e secreto, com valor igual para todos”. Conforme está o nosso sistema de votação e apuração de votos, nada disso é garantido. Saibam o por quê a seguir:

As “urnas” eletrônicas não são brasileiras
Por que nos orgulharmos de algo que não nos pertence? As “urnas” eletrônicas são fabricadas pela Diebold, uma empresa americana (que, aliás, foi expulsa dos EUA). As peças são em sua maioria, importadas. Nem mesmo as essenciais, como os processadores, são fabricados aqui. Os sistemas operacionais que comandam a execução de todos os programas, ou são secretos ou são importados. Um deles é o Windows, o que nos leva a perguntar: o que tem de brasileiro nisto?

Milhares de programas das “urnas” são secretos…
A falta de transparência no processo de votação e apuração atinge proporções alarmantes. Apenas —literalmente— uma dúzia de pessoas conhece mais ou menos todos os programas de computador envolvidos. Pior: estima-se que por volta de 60 mil desses programas são secretos! Este fato nos remete a outra pergunta: por que 200 milhões de brasileiros são obrigados a acreditar na honestidade de uma dúzia de técnicos? E outra, quais as razões do legislador que admitiu a insana produção de programas secretos?

Seu voto não é secreto!
Lembre-se de que, quando você vota, o mesário primeiro digita o número de seu título de eleitor em um terminal, ligado diretamente à máquina de votar. No mesmo local, também é gravado o número do seu título de eleitor —e na mesma hora! Ora, qualquer programador iniciante será capaz de reconstituir quem votou em quem, mediante simples leitura do arquivo onde o voto e votante foram gravados! E com uma precisão jamais sonhada!

Com isso, é possível a criação de um gigantesco arquivo contendo todos os dados do eleitor, como nomes, endereços, estado civil etc. E a sua vontade expressa nas urnas. Imagine —só por um momento— este arquivo em mãos impróprias!

Impossível a recontagem de votos!
Suponha só por um instante que, no próximo domingo, aconteça de existir uma suspeita sobre o resultado da votação. Em qualquer país do mundo, ainda que a suspeita seja improvável, faz-se a recontagem dos votos.

No Brasil, isto é impossível!

Em 2003, a Lei 10.740 extinguiu a impressão em papel do comprovante do voto, que era depositado automaticamente em uma urna de lona (certo que, até então, não em todas). Tal lei, cuja edição é extremamente estranha, pois foi elaborada pelo Senado Federal e, em apenas duas horas, votada e sancionada na mesma noite, de madrugada, pelo presidente Lula, é combatida e desaprovada pela comunidade intelectual do Brasil, entre cientistas, juristas, professores universitários e outros.

A falta do comprovante impresso do voto, que deveria ser depositado na urna de lona, não só impede a transparência da contagem dos votos, como impossibilita a recontagem e a conferência do resultado.

Pior de tudo: nenhum partido político tem estrutura —e nunca vai ter— para fiscalizar todo o intrincado, misterioso e inacessível processo de votação atual.

O que existe de fiscalização é nada ou quase nada. O TSE (Tribunal Superior Eleitoral), por sua vez, defende que o uso da “assinatura digital”, uma espécie de cadeado do programa de computador inserido nas “urnas”, garante a integridade dos programas por eles empacotados e distribuídos às zonas e seções eleitorais.

Primeiro, não existem pessoas suficientes para fazer a verificação urna a urna, em todo o país. E segundo, os próprios idealizadores da criptografia que compõe a assinatura digital não garantem sua inviolabilidade.

Informação biométrica: um perigo iminente
Sem que exista qualquer lei que admita coletar informações biométricas das pessoas, como a impressão digital, íris dos olhos etc., várias instituições vêm adotando este processo eletrônico. Um exemplo são os Detrans, para as carteiras de motorista.

O que ninguém observa é o perigo desta informação no meio eletrônico. Uma impressão digital, por exemplo, impressa no papel por meio de tinta de carimbo, é bem diferente daquela coletada por leitor ótico. Enquanto a primeira é original e dificilmente pode ser reproduzida, aquela que está registrada eletronicamente pode ser multiplicada indefinidamente. Isto significa, por hipótese, que seus documentos pessoais poderão ser reproduzidos e usados por outra pessoa.

Também o reverso é verdadeiro. A informação biométrica digitalizada de uma pessoa criminosa pode ser “adulterada” para uma pessoa de bem, e assim por diante, pois as possibilidades são infinitas. A mais grave delas é que se pode criar uma multidão infinita de eleitores clones bastando, para tanto, a reprodução do título original para várias pessoas, cada qual com sua “informação biométrica”!

E o que está pretendendo o TSE? Pretendendo não, fazendo. Já mandou encomendar e fabricar “urnas” eletrônicas com dispositivo de leitura de impressão de digitais para identificar biometricamente o eleitor.

Ora, não fomos consultados, como cidadãos, se queremos ou não fornecer nossas informações biométricas para o Estado, porque nada nos garante que esta informação não vá parar nas mãos de pessoas sem escrúpulos (que, no Brasil, são abundantes). Demais, atentem para o custo estimado da implantação deste sistema: R$ 1 bilhão de reais em dez anos!

Excesso de poderes do TSE
Depois de dura e longa luta, os brasileiros finalmente conseguiram a sonhada liberdade democrática, com a promulgação da Constituição de 1988. Os poderes atribuídos à Justiça Eleitoral, entretanto, foram herdados das ditaduras anteriores, desde a era Vargas até a dos militares.

O Tribunal Superior Eleitoral é a única instituição no Brasil que detém em si mesma, o exercício pleno dos três poderes. Fazem a legislação eleitoral, por meio de resoluções, e dão as interpretações que bem entendem às leis. Então são o Legislativo. São incumbidos de executar as eleições, daí, são o Executivo; e, finalmente, havendo problemas, julgam as demandas, exercendo a força do Judiciário.

Ficamos diante de um problema sério, bem claro nas palavras de Rui Barbosa: “Pode o Judiciário transformar-se na odiosa figura de juiz de si próprio”? Com efeito, se o TSE faz o regulamento, e é o responsável pela execução da eleição, seria ele o tribunal apropriado para julgar as fraudes e erros? Com que isenção vai admitir o próprio erro?

A fraude em Guarulhos
Causou grande espanto na imprensa, e naqueles que tomaram conhecimento, a fraude ocorrida nas eleições para prefeito e vereadores em Guarulhos, na Grande São Paulo, no ano de 2004. O espanto foi causado por um relatório de auditoria feito nas “urnas” eletrônicas, baseado em documentação fornecida pelo TRE (Tribunal Regional Eleitoral) de São Paulo e pelo TSE. O relatório apurou fraude no resultado das eleições municipais.

Ali se encontraram urnas clonadas, totais adulterados, coincidências numéricas impossíveis e, até mesmo, montagem de tabelas falsas. O relatório demorou mais de um ano para ser terminado e devastou todas as informações eletrônicas das “urnas”. Foram analisados todos os documentos referentes à eleição, a fim de confirmar o resultado da mesma.

Mas a auditoria teria sido desnecessária se existisse o comprovante de papel na “urna”. Assim, qualquer leigo poderia recontar os votos manualmente, depois do resultado eletrônico. Como atualmente não existe essa possibilidade, foi preciso mais de um ano de trabalho para conferir se o resultado das eleições 2004 em Guarulhos estava correto. Um processo foi movido no TRE.

E fez o que a Justiça Eleitoral até agora? Apenas argumentou que o fato visa “desmoralizá-la”. Embora o Ministério Público tenha requisitado perícias e abertura de inquérito na Polícia Federal para investigar a fraude, o TRE apenas limitou-se a se defender, como se fora ele, tribunal, o autor —coisa que não está em lugar algum do processo movido, e nem no relatório.

Resta claro que o sistema de controle e apuração da votação, por todos conhecido como “urna” eletrônica, é ultrapassado e falho.

As instituições financeiras, os órgãos governamentais, as empresas em geral, além de tantos, gastam fortunas anualmente em auditoria e segurança de informática e, mesmo assim, não conseguem evitar roubos e fraudes.

Ora, os sistemas de votação já estão implantados há mais de 15 anos e continuam os mesmos. Porque seriam 100% seguros, conforme alardeiam as autoridades responsáveis —muitas das quais nem mesmo são afeitas à computadores?

As pesquisas não confirmam nada
Alguns néscios têm se levantado afirmando que os resultados das pesquisas validam a lisura do processo de votação, pois elas sempre confirmariam o resultado apurado. Dizemos néscios porque às vítimas que defendem seus algozes não encontramos termo mais apropriado.

Esta questão de a pesquisa validar o resultado, por sua proximidade com aquele, além de temerária (porque nem sempre isto acontece) é absolutamente incoerente. Se vamos pensar assim, então não precisamos nem de votação, é só fazer pesquisa. Depois, a pesquisa é outro tipo de processo que embora se diga alicerçado em base científica, também está sujeito a fraude.

A mais comum é aquela em que algum partido político ou mesmo candidato organizado, sabendo de antemão onde a pesquisa será feita, manda seus correligionários ficarem a postos para responder. Por mais idônea a empresa realizadora da pesquisa ou o órgão de imprensa que a divulgou, nada garante que expresse a vontade popular e nem mesmo que não esteja fraudada. Teríamos que admitir, também, que os entrevistadores foram absolutamente corretos e honestos ao apontar as respostas dos entrevistados nos formulários da pesquisa.

Perigos à Democracia
Estamos diante de problema muito sério, pois, pensemos bem: o controle eletrônico total de uma votação pode levar a um tipo de ditadura jamais vista na história, não só do Brasil como no mundo, a ditadura disfarçada em democracia.

Os eleitores pensariam que estão votando em alguém, no entanto, a “escolha” definitiva seria reservada a quem detivesse o poder de “apertar os botões”. Alguém, em sã consciência, pode afirmar que isto já não está acontecendo?

As possíveis soluções
Quando criticamos o sistema de votação eletrônica, não estamos de modo algum pregando a sua extinção. Se há alguma realidade nas mentiras do TSE é a que no Brasil conseguimos informatizar o processo de votação por inteiro. Afinal, o imenso número de eleitores nos dias atuais exige que tudo seja informatizado.

Queremos, porém, transparência e segurança, o que evidentemente não há no momento. Por outro lado, existem soluções das mais diversas apontadas por vários estudos e propostas que o TSE se recusa a sequer examinar, o que torna tudo ainda mais suspeito.

O voto impresso
Entre as propostas, está a geralmente aceita nos demais países: a de imprimir em papel o comprovante do voto. Este tipo de máquina de votar, nos EUA, por exemplo, é um dos sistemas mais avançados e seguros, que torna irrelevante toda esta parafernália de programas (inclusive os secretos).

Um dispositivo de impressão acoplado à máquina de votar, mostra ao eleitor o papel com o voto impresso dentro de um visor plástico, que, depois de confirmado, é cortado e lançado dentro de uma urna de lona. Havendo dúvidas quanto à lisura do pleito, basta abrir a urna de lona e contar os papéis impressos. Em alguns casos, a recontagem é obrigatória quando a diferença entre os votos entre um candidato e outro é pequena.

Este é o meio mais transparente e seguro proposto até o momento, porque a impressão em papel torna a conferência acessível a todos, e não somente àqueles especializados em informática. Também permite que forças antagônicas (partidos e candidatos opostos) possam controlar e conferir os resultados.

A identificação do eleitor separada da máquina de votar
Outra questão da maior relevância é o sigilo do voto. Uma das maneiras de garantir o sigilo é a de modificar o atual sistema, eliminando a comunicação entre o terminal de identificação do eleitor e a máquina de votar (“urna” eletrônica). O modo de identificar as diversas seções de votação também teria de ser modificado, de modo a não permitir a criação de grandes arquivos com resultados conjuntos de votos e votantes.

Um título de eleitor mais apropriado
O documento de identificação do eleitor também precisa ser modificado, pois os atuais nem foto têm. Por outro lado, não existe a menor necessidade de informação biométrica para conferir se é este ou aquele o portador do documento. Este tipo de identificação, além de perigoso, é inócuo, pois pode ser reproduzido.

Não há um documento ideal. Portanto, a melhor maneira é assegurar que os eleitores possam facilmente alterar seus endereços, transferindo os títulos, de modo a evitar acesso de pessoas de comunidades diferentes na mesma seção de votação (ex: pessoas para votar e apresentar justificativa). Um bom código de barras agilizaria o processo de identificação e reduziria a fraude. A identificação por fotografia atualizada e datada também é essencial.

Conclusão
Nosso direito de cidadão e de eleitor não está sendo respeitado. Não fomos consultados sobre coisa alguma deste sistema e ele nos foi imposto de cima para baixo, o que em si já é contra a democracia.

A Constituição não está sendo cumprida. Se o voto tem que ser secreto, porque não o é de fato? Se o voto deve ter igual valor para todos, porque somente uma dúzia de pessoas entende o que está acontecendo com o nosso voto?

Afinal, em um país como o Brasil, de dimensões continentais, várias culturas e, principalmente, analfabetismo, como pode um processo eletrônico complicadíssimo igualar o poder do voto? Multidões comparecem às urnas sem mesmo saber o que estão fazendo. Esta é a realidade, e não o mito a nós imposto.

É preciso entregar aos seus verdadeiros donos os poderes concentrados do TSE, com o fim de implantar novos sistemas que assegurem esta igualdade e sigilo. Do contrário, seremos amanhã os protagonistas de “uma sociedade insana que ergueu contra si um tão poderoso Leviatã”!

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Antonio D’Agostino é contabilista e consultor de empresas

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