Os contratos celebrados entre duas ou mais pessoas têm como função proporcionar a circulação de bens e riquezas e, no momento de sua celebração, nascem direitos e obrigações entre aqueles que pactuam. A validade e a eficácia dessa contratação depende da observância de alguns princípios, tais como, boa-fé, autonomia da vontade, consensualismo, força obrigatória dos contratos, relatividade dos efeitos dos contratos.
Observados estes princípios, presume-se que a relação contratual se desenvolverá boa para todas as partes envolvidas, entretanto, elementos externos e geralmente posteriores à contratação podem influenciar no negócio jurídico estabelecido, culminando na necessidade de revisar ou alterar as disposições contratuais.
A este fator extraordinário dá-se o nome de Teoria da Lesão, que pode modificar a base jurídica do contrato, afastando a máxima pacta sunt servanda, para que dê lugar ao princípio da rebus sic stantibus.O intuito do presente artigo é justamente estudar o impacto da teoria da lesão sobre as relações contratuais e os princípios que as norteiam.
Teoria da imprevisão
Desde os primórdios do direito, muito embora vigorasse o princípio pacta sunt servanda, o Código Justiniano já presumia uma cláusula implícita em todos os contratos no sentido de que, se as condições externas à época da contratação fossem consideravelmente alteradas, o vínculo contratual poderia ser revisto ou resolvido; como se verifica na frase: contratctus qui habent tractum sucessivum et depentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur.
Dessa forma, a resolução de contratos por onerosidade excessiva causada por fato superveniente e imprevisível existe desde muito tempo.
Após as duas grandes guerras mundiais, a teoria que estava adormecida ressurgiu, deixando enfraquecer a força absoluta dos contratos. Hoje a possibilidade de resolução contratual por onerosidade excessiva foi positivada, inicialmente, em diplomas legais específicos, tais como no artigo 65, II, “d”, da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações) e no artigo 6º, V da Lei 8.078/90 (“Código de Defesa do Consumidor”).
O Código Civil de 2002 veio contemplar o brocardo rebus sic standibus em uma norma geral com a edição do artigo 317, que enseja a revisão contratual com base nesse instituto, ao passo que o artigo 478 autoriza a resolução de contratos, quando a onerosidade é tamanha que impossibilite o reequilíbrio entre as prestações das partes.
Deve-se observar ainda alguns critérios relevantes sobre à resolução dos contratos por onerosidade excessiva, tais são: (1) quais seriam os critérios e parâmetros para se estabelecer se uma obrigação se tornou “excessivamente onerosa”, nos termos do artigo 478 do Código Civil; (2) qual a relevância de benefícios indiretos auferidos pelas partes, na análise do desequilíbrio contratual; e (3) quanto tempo de execução do contrato seria necessário transcorrer para que o julgador esteja autorizado a resolver o contrato com fundamento no artigo 478 do Código Civil.
Critérios da onerosidade excessiva
Nos termos do artigo 478 do Código Civil, não há como auferir como que uma obrigação se tornou “excessivamente onerosa”, isso porque o critério para se determinar onerosidade excessiva é relativo, e não absoluto.
Isto implica que a onerosidade excessiva deve ser aferida pelo julgador, conforme os aspectos específicos do caso concreto. Devendo observar quais eram as obrigações inicialmente contraídas pelas partes e os objetivos comuns que elas almejavam, considerando-se, ainda, as condições econômicas e as premissas contratuais.
Para assim, o magistrado deve avaliar se houve imprevisível e extraordinária alteração na paridade inicial das prestações contratadas, causadoras de desequilíbrio contratual, um exercício de razoabilidade. Se houver e não existirem meios de reequilibrar as prestações das partes, o contrato deverá ser resolvido.
Segundo o ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça e professor Ruy Rosado de Aguiar Junior, a questão da onerosidade excessiva envolve todas as dificuldades comuns ao tema da modificação das circunstâncias e de seus efeitos sobre o contrato. Alguns vêem com a aplicação do princípio da pressuposição, fundado na representação intelectual da parte a respeito do futuro, motivo determinante da sua vontade; outros a consideram caso de aplicação do instituto da superveniência.
“Enquanto aqueles focam o centro da atenção no momento da celebração, estes o deslocam para a fase funcional, para o tempo da execução das prestações. O fundamento da resolução ora é posto na concepção modificativa do contrato respectivo, passível de resolução por ocorrência de fatos externos a ele e unicamente por vontade de lei, de acordo com o princípio da solidariedade entre as partes, ora é concebido como um vício funcional da causa, fato da fenomenologia da causa, de caráter nitidamente econômico. Na verdade, a onerosidade excessiva justifica a resolução porque destrói a equivalência das prestações, não permitindo a uma das partes (ou as duas) a realização do fim legitimamente esperado”.
Na mesma linha, o professor Carlos Roberto Gonçalves, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, diz: “Não exige lei que haja hipótese de impossibilidade absoluta”. Segundo dispõe o artigo 478 do Código Civil, o contrato pode ser resolvido se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários ou imprevisíveis.
Mesmo, portanto, que circunstâncias supervenientes não impeçam, de modo absoluto, o adimplemento da prestação, pode-se considerar que elas o tornaram excessivamente oneroso se fossem exigidos da parte prejudicada atividade e meios não razoavelmente compatíveis com aquele tipo de relação contratual em termos de a transformar numa prestação substancialmente diversa da acordada, como preleciona Enzzo Roppo.
Já Luiz Guilherme Loureiro, juiz de primeiro grau no Estado de São Paulo e doutor em direito pela Universidade de São Paulo, explica como identificar a onerosidade excessiva. “O extremo desequilíbrio das prestações não pode ser identificado de modo geral e abstrato, para todo tipo de relação contratual, mas varia em relação aos diversos tipos de contrato e aos particulares mercados e conjuntura econômicas. Cabe, portanto, ao juiz avaliar se a onerosidade surgida posteriormente no contrato submetido ao seu juízo pode considerar-se excessiva”.
Professor Nelson Borges ressalta que, na jurisprudência brasileira, o requisito de extrema vantagem do credor tem sido mitigado: “os nossos juízes e tribunais têm concedido o benefício revisional —quando fundado em evento imprevisível— sem levar em conta a exigência da extrema vantagem para o credor. O acréscimo é altamente discutível pelo seu íter subjetivo, nem sempre presentes em situações anômalas, que sancionam a aplicação da doutrina, sendo irrelevante que a parte credora esteja na iminência de auferir a extrema vantagem. Melhor teria sido apenas a referência ao termo vantagem, situação que ocorre na maioria das vezes”.
No mesmo entendimento, verifica-se na Apelação Cível n° 652.006-00/0, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo através de sua 10ª Câmara, o desembargador Irineu Pedrotti salientou que: “Não há critério objetivo definindo o que seja a onerosidade excessiva, de onde remete-se ao prudente arbítrio do magistrado a formação da sua convicção sobre eventual ocorrência”.
Para se aplicar à regra do artigo 478 do Código Civil, o julgador deve levar em consideração a posição inicial das partes, sob a perspectiva do contrato e das obrigações avençadas, quando o celebraram, e compará-las com a situação econômica no momento em que a resolução é pleiteada, sempre sob a perspectiva da manutenção da proporcionalidade das prestações, tal como ajustada pelos contratantes. Deve-se, portanto, perquire cada caso isoladamente, dentro de sua fórmula inicial e de suas peculiaridades. Nesse mister, é necessária a avaliação prudente e eqüitativa do julgador.
A resolução ou revisão do contrato, pela ocorrência de fato superveniente, imprevisível e extraordinário afeta seu equilíbrio econômico-financeiro, de modo a causar graves danos a uma parte e gerar vantagens à contra-parte.
Sendo assim, ao analisar o contrato deve-se atentar ao seu objeto e a vontade declarada pelas partes, inclusive para se concluir sobre os direitos, benefícios e vantagens dos contratantes.
E nesse sentido o julgador, ao perquirir o equilíbrio econômico financeiro contratual, afere tais elementos. Atente-se para o fato de que, em negócios jurídicos de grande complexidade, celebrados entre empresas que exploram diversas atividades, as partes normalmente entrevêem possibilidades de ganhos e perdas futuras, indiretamente relacionadas ao contrato, muitas dos quais se concretizam, e muitas outras não. Trata-se de conjecturas, que não são relevantes para a interpretação do contrato, nem para verificação do equilíbrio das prestações.
Benefícios indiretos eventualmente ambicionados por uma das partes, por sua vez, representam mera especulação e, portanto, não devem ser levados em conta, sob pena de se ensejar grande insegurança jurídica. Havendo a frustração das vantagens indiretas, não há como ser considerado no cálculo de perdas e danos a realização desses benefícios, tampouco ser computada para fins de verificação dos requisitos para resolução contratual pela teoria da imprevisão. Pois isso ocasionaria uma forma contrária à lógica jurídica.
Conforme explanado, infere-se que, para se determinar que uma obrigação se tornou ou não excessivamente onerosa, nos termos do artigo 478 do Código Civil, deve-se não se computar, a obtenção de eventuais benefícios indiretos, externos ao objeto do contrato.
O tempo para determinação da onerosidade excessiva
O nosso Código Civil nada dispõe, expressamente, a respeito do transcurso de tempo necessário para que um dado contrato possa ser considerado oneroso em razão de fatos imprevisíveis, cabendo ao julgador proferir essa decisão, diante das circunstâncias do caso.
Vejamos o que leciona o professor Julio Alberto Díaz: “A lei não estabelece distinções entre prazos breves e longos, mas pode-se imaginar que o grau de imprevisibilidade é diretamente proporcional à extensão do prazo, na medida em que a possibilidade de antecipação dos fatos próximos a ocorrer, em geral, resulta mais firme que a dos fatos remotos onde a eventualidade de interferências estranhas ao curso previsto é crescente.”
Dessa forma, o único requisito temporal do artigo 478 é que o contrato seja de execução continuada ou diferida. Mais uma vez, impõe-se a prudência do julgador, ao formar o seu convencimento com base nas provas que vierem aos autos do processo.
Não há regra objetiva determinando o limite mínimo ou máximo, no transcurso de tempo para que possa ser declarada a onerosidade excessiva de um certo contrato. O contrato deve ser resolvido, por conseguinte, tão logo fique patente o grave desequilíbrio contratual.
Teoria da quebra da base contratual
Além da teoria da imprevisão já exposta acima, temos também a teoria da quebra da base do contrato, para possibilitar a revisão contratual. Diferentemente da teoria da imprevisão, a teoria da quebra da base do contrato prende-se ao aspecto objetivo, isto é, a quebra da base do negócio jurídico.
A concepção desta teoria é adotada pelo Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 6º, inciso V, onde, pela simples leitura do dispositivo, constata-se ser absolutamente despiciendo para o exercício do direito à revisão contratual, a imprevisibilidade das circunstâncias supervenientes. Aqui o importante é a destruição da relação de equivalência entre as prestações.
Desta forma, composto o Código de Proteção e Defesa do Consumidor de normas de ordem pública e de interesse social, deve o julgador buscar o restabelecimento da justiça e da utilidade do pacto, através da recomposição da economia contratual, mantendo-se o sinalagma funcional do negócio jurídico.
Oportuno realçar o entendimento da professora Cláudia Lima Marques que, sobre o tema, em sua clássica obra Contratos no Código de Defesa do Consumidor, RT, 2a. ed. p. 299, assim leciona: “A norma do artigo 6º, do CDC avança ao não exigir que o fato superveniente seja imprevisível ou irresistível, apenas exige a quebra da base objetiva do negócio, a quebra do seu equilíbrio intrínseco, a destruição da relação de equivalência entre prestações. Ao desaparecimento do fim essencial do contrato. Em outras palavras, o elemento autorizador da ação modificadora do Judiciário é o resultado objetivo da engenharia contratual que agora apresenta mencionada onerosidade excessiva para o consumidor, resultado de simples fato superveniente, fato que não necessita ser extraordinário, irresistível, fato que poderia ser previsto e não foi”.
A teoria da quebra da base do contrato tem sido aplicada para a revisão de contratos de arrendamento mercantil corrigidos pela variação cambial do dólar uma vez que a variação do dólar é previsível, mas uma desvalorização de forma gradual com estava ocorrendo, já a desvalorização de forma abrupta não era previsível, desta forma a base objetiva do contrato ficou substancialmente alterada, uma vez que o equilíbrio contratual foi rompido.
Nesse ponto, a nova legislação veio a introduzir inovação que se fazia necessária, mas disse menos do que poderia ter dito. Afastou-se da teoria da alteração da base objetiva do negócio, que melhor satisfaz a exigência de justiça contratual, pois permite a intervenção judicial ainda quando inexistente a imprevisibilidade e a vantagem excessiva para o credor, e está fundada no exame das condições concretas do negócio, o que exclui o perigo de um julgamento fundamentado apenas em considerações de ordem subjetiva.
Pergunta-se se a consagração das teorias revisionistas dos contratos não pretende dar novo fôlego ao contratualismo já ultrapassado, que levava em conta tão-somente os interesses particulares, sem qualquer preocupação social. Se os instrumentos são imperfeitos, talvez as intenções valham mais.
A revisão do contrato, tal como consagrada pelo novo Código Civil, reflete conceito já ultrapassado, e mesmo ligado a um liberalismo já cansado. Entretanto, é, com a boa-fé e a funcionalização do contrato, ferramenta de que se dispõe para realizar a justiça contratual. Deve-se, nesse sentido, construir a partir desse “novo” Código Civil, buscando-se, sempre, a justiça social.
Portanto, para finalizar o artigo 478 do Código Civil de 2002, deve ser interpretado de modo amplo a fim de propiciar aos contratantes não só a resolução da avença, mas também para permitir ao juiz, acaso entenda justo e em conformidade com os princípios da eqüidade e da boa-fé objetiva, a integração do contrato, seja para reduzir prestação excessivamente onerosa, seja para rever o contrato, sempre atendendo às necessidades de ambas as partes.
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Erika Tramarim, Adriana Pecora Ribeiro e Gisele de Andrade de Sá são advogadas associada do escritório Rocha, Calderon e Advogados e pós-graduandas em direito civil e processo civil no Ipojur (Instituto Brasileiro de Estudo de Pesquisas em Ciências Políticas e Jurídicas)