Um significativo fator não tem sido levado em conta quando se discute o problema do “inchamento” pelo qual passam os Estados que se adjetivam sociais, dentre os quais se destaca o Brasil. Trata-se da crise das instituições morais enfrentada pelos tempos modernos e na desenfreada tentativa do Estado em se tornar o bedel de todas as causas.
É clássica a distinção entre moral e lei. A transgressão moral (regra social de boas-condutas, boas-maneiras) tem como sanção a repreensão dos membros da comunidade pelo pecado ou descuido cometido; a transgressão à lei (regra da autoridade para manter a ordem) dá lugar ao poder estatal de punição forçada — seja ela civil, administrativa ou até mesmo criminal.
A crise das instituições morais, provocada quer pela perda de valores do homem contemporâneo, quer pela falta de estrutura e poder coercitivo dessas instituições se comparadas ao estado, tem resultado na substituição da família, da igreja, do bairro, da escola, pela presença maciça do Estado.
O avanço do poder estatal para dentro da esfera privada e das boas-maneiras tem diminuído a distinção entre lei (ato estatal) e moral (regra social). É lícito falarmos na existência de uma “religião civil”: sou imoral quando — e somente quando — não cumpro as leis do meu país. Assim, um gesto, um palavrão ou a incômoda descortesia de aumentar o som do carro, se antes eram condutas de desaprovação pela comunidade, hoje elas terminam em autuações na repartição pública.
Ocorre que a lei, para ser aplicada e gerar a punição a que nos referimos, precisa de fiscalização. E não é tarefa simples fiscalizar toda e qualquer conduta que antes era confidenciada ao pároco. Na impossibilidade de cumprir com sua parte, muitas vezes o Estado transfere ao particular a obrigação de se autofiscalizar (entregar anualmente a declaração de bens, por exemplo), além de lançar mão de seu mais eficiente recurso de intimidação: a incriminação de condutas. Logo, ações que tinham deixado de gerar simples desaprovação social e já eram motivo para multas administrativas, agora são casos de condução ao distrito policial.
Nós, policiais, promotores, advogados e juízes, que atuamos nesse meio, sentimos de perto as conseqüências inúteis dessa política: o aumento vertiginoso do número de inquéritos e processos e o conseqüente entrave burocrático das delegacias e tribunais, resultando na ineficiência dos organismos estatais que tentam zelar pelo cumprimento da “moral civil”, contribuindo para a impunidade de condutas penalmente relevantes.
Mas nem só de deveres vive o homem. Independentemente do sexo, credo ou idade, uma série de direitos e garantias será assegurada àquele que alcançar o título de “cidadão”. E se isso tem gerado certa infantilização do indivíduo, que agora se ampara em seus direitos para se proteger das palmadas do pai ou das repreensões do mestre, por outro lado tem enfraquecido o papel da comunidade em fiscalizar seus membros e zelar pelo fortalecimento dos vínculos afetivos. Tanto mais impúbere quanto cheio de direitos cívicos, o particular poderá se amparar nos braços do Estado tutor — como se atrás das repartições públicas não houvesse homens e mulheres, filhos e pais, alunos e mestres, cumpridores da lei ou nem tanto.
O Estado atual, desfilando por sobre a consciência individual e as religiões, a pretexto de ser tutor universal, só faz aumentar a tirana intromissão oficial nos assuntos privados, reduzindo a diferença entre o moral e o jurídico, garantia básica da liberdade civil. A cada novo dia são editadas novas leis de restrição à liberdade individual e, na ausência de aparato fiscalizatório condizente, novas condutas são consideradas criminosas.
A Consultor Jurídico noticiou sobre o projeto de lei que visa controlar o acesso de todos à internet, transferindo ao provedor o dever de fiscalizar os usuários de sua abrangência. Não será novidade se a lei considerar crime a falha na atuação do provedor. Resultado: novas leis clamam por mais fiscalização, que necessitam de mais agentes, de mais arrecadação, e por assim vai, no círculo vicioso do Estado Social.
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Murilo Almeida Gimenes: é delegado de Polícia Federal e colunista do Jornal da Cidade de Bauru, em São Paulo.