A dinâmica empresarial demonstra que, por diferentes razões, o contribuinte pode deixar de apresentar situação regular para com o Fisco. Enquanto a pendência não for sanada, haverá a configuração de situação de irregularidade que acarreta várias conseqüências.
Um dos mais relevantes reflexos deste status impossibilita a obtenção de certidão de regularidade fiscal, documento este com o qual se amplia o crédito junto ao mercado
privado e mesmo junto ao Poder Público.
Ademais, o contribuinte que ostenta a situação fiscal regular pode participar de licitações e afins, ou seja, além de buscar crédito, estará apto a prestar serviços ou vender suas mercadorias ao Estado.
Diante deste panorama, surge para o contribuinte, como uma opção para equacionar sua situação, a adesão a um programa de parcelamento, já que, a depender do caso concreto, o débito constante como pendente alcança cifras bastante relevantes, a ponto de serem inviabilizadoras de um pagamento à vista.
A despeito do aspecto positivo de um parcelamento, principalmente no que toca à regularização de algo que constava como pendência, não se pode desconsiderar que há condições impostas pelo ente tributante para que o contribuinte possa parcelar os débitos que lhe são atribuídos.
Uma das mais importantes dentre estas condições é o reconhecimento do débito, de modo
irrevogável e irretratável. Esta cláusula, comum em documentos de adesão, tem intimidado muitos contribuintes a discutirem, na Justiça, a (in)correção da exigência fiscal da qual o montante a ser parcelado é uma conseqüência.
Tal questão adquire relevo na medida em que, como notório, nem toda exigência de cunho tributário possui o necessário respaldo jurídico.
Realmente, a história do direito brasileiro atesta que exigências de natureza tributária sem amparo constitucional existiram e seguem existindo. Inobstante, sem sustentação juridicamente válida, não se pode exigir do contribuinte que assuma ou deixe de assumir determinada conduta.
A indagação que se coloca, em face do cenário descrito, é saber como equacionar, de um lado, o parcelamento de um débito cuja raiz jurídica é frágil ou inexistente e, de outro, a cláusula de confissão irretratável e irrevogável, anteriormente mencionada.
A busca de uma possível resposta passa pela consideração de que o crédito tributário é fruto da constatação, no mundo dos fatos, da realização de um dado evento previamente descrito em uma norma legal.
Esta norma que fundamenta a exigência do tributo deve estar em harmonia com o que prevê a Constituição, pois esta, mesmo não instituindo tributos, trata do compartilhamento da competência para tanto e, além disto, veicula uma série de garantias aos contribuintes.
Neste sentido, a competência tributária não pode ser exercida em desacordo com as garantias e os parâmetros constitucionais, sob pena de se delinear uma exigência inconstitucional.
É comum entretanto, ocorrer a cobrança de crédito tributário envolvido por defeitos (não raro, graves) no que diz respeito aos seus contornos jurídicos. Como o débito decorrente do descumprimento desta exigência não se torna juridicamente convalidado em virtude do pedido de parcelamento, tem-se que seu vício de origem permanece a lhe acompanhar, tornando inválida a confissão do débito.
Por outro lado, uma das garantias do contribuinte (e de todos os cidadãos) é a inafastabilidade do Poder Judiciário. A importância desta garantia fez com que seu expresso estabelecimento se desse no seio constitucional e, por isto, reduzi-la ou ignorá-la, ainda que, por vias transversas, significa burlar a própria Constituição, o que fere de morte semelhante pretensão.
Como o crédito tributário, para ser juridicamente válido, deve advir da ocorrência, no mundo dos fatos, de um fenômeno previsto em norma juridicamente válida, tem-se que o fato que se enquadrar em descrição normativa deficiente de correção jurídica não estará apto a fazer nascer nenhuma obrigação tributária.
Assim, a cobrança daí decorrente se revelará viciada e, mesmo que o respectivo débito esteja parcelado, o contribuinte poderá buscar, junto ao Poder Judiciário, a proteção, ou seja, poderá perseguir a preservação de seus direitos e a reconstrução de seu patrimônio,
na proporção em que houver sido lesado.
Ações desta natureza, aliás, não se mostram novidade na rotina da Justiça, mesmo porque não foram poucos os contribuintes que, forçados pelas circunstâncias, tiveram de parcelar débitos cuja raiz sabiam ou supunham ser questionável em termos jurídicos.
Nestas várias oportunidades, o Judiciário, ao ser invocado, reconheceu a existência do vício de inconstitucionalidade em normas disciplinadoras de parcelamentos que mencionavam que, com a adesão, o contribuinte renunciava à possibilidade de futura discussão relativa aos contornos jurídicos dos débitos parcelados.
Ao se decidir desta forma, prestigia-se a Constituição, dando aos direitos e garantias nela previstos a materialidade imprescindível para se reduzir a distância entre o previsto abstratamente no texto e o efetivamente realizado.
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Leonel Martins Bispo é advogado da Pactum Consultoria Empresarial