STF e depositário infiel: uma nova relação?

A divulgação, no dia 22 de novembro, do voto do ministro Gilmar Mendes, acompanhado pela ministra Cármen Lúcia e pelos ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, no âmbito do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, promoveu uma importante alteração na jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal), uma vez que oito dos 11 votos já acompanharam a posição de alteração da jurisprudência consolidada.

Este Recurso Extraordinário, acompanhado por outro Recurso Extraordinário (nº 349.703/SP), com igual teor, cuida da inconstitucionalidade da prisão do adquirente de um automóvel, conforme solicitado por um banco, em razão do adquirente não haver pago valores relativos a um contrato de alienação fiduciária (leasing).

À parte toda a discussão referente à aplicabilidade das regras relativas ao depositário infiel no caso de indivíduos inadimplentes em contratos de alienação fiduciária, que parece estar consolidada, como descrito no voto do ministro Cezar Peluso; o voto do ministro Gilmar Mendes aborda aspectos essenciais da relação entre normas de direito interno e de direito internacional.

A questão da prisão do depositário infiel não é tema novo na jurisprudência brasileira. De acordo com o direito brasileiro, apenas duas hipóteses de prisão civil são admitidas: (i) a do devedor de alimentos, e (ii) a do depositário infiel.

Contudo, desde a ratificação por parte do Brasil, em 1992, do Pacto Interamericano de Direitos Humanos (ou Pacto de São José da Costa Rica), e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a questão ganhou novas cores. Ambos pactos apontam que, apenas a primeira hipótese, ou seja, a prisão do devedor de alimentos, pode ser admitida nos Estados que ratificarem o tratado.

Frente ao conflito entre essas normas, diversos autores tentaram apontar a prevalência de uma delas, fundando-se ora em jurisprudência do STF, ora em teorias próprias do direito internacional público.

Este mesmo embate observou-se no âmbito do STF que, calcado na decisão do Recurso Extraordinário nº 80.004/SE de 1977, que alterou a jurisprudência então existente, que tinha como paradigma o acórdão proferido no Habeas Corpus nº 24.637 de 1952, pelo ministro Laudo de Camargo, no qual se observava a prevalência de tratado de extradição sobre lei interna.

O Recurso Extraordinário nº 80.004/SE trata da constitucionalidade do Decreto-Lei nº 427/69, em relação à Convenção de Genebra para a adoção de uma Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias de 1930, ratificada pelo Brasil em 1966.

Esse julgamento, decidido por maioria de votos com o único voto dissidente do ministro Xavier de Albuquerque, promoveu, por meio de uma série de extensos arrazoados, a adesão à tese segundo da possibilidade da revogação por lei interna posterior de tratado internacional que verse sobre o mesmo assunto.

Apesar de o caso atual tratar de direitos humanos, a decisão apresentará conseqüências para todos os conflitos de normas, posto que o mesmo fundo e princípios podem ser aplicados aos demais.

A ressalva se deve a o fato de que a defesa da prevalência das normas contidas nos tratados internacionais relativos a direitos humanos frente normas infraconstitucionais tem respaldo na legislação brasileira, como, por exemplo, no artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal, que já apontava posição de destaque aos tratados internacionais desta matéria.

O respaldo dado pela legislação brasileira ficou ainda mais claro a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, que incluiu o parágrafo 3º ao mesmo artigo 5º, estabelecendo um ponto final em qualquer questionamento relativo à ratificação de novos tratados de direitos humanos, ao dispor que estes observarão quorum de aprovação idêntico ao das emendas constitucionais, dando assim, formalmente, o status desde antes reconhecido pela doutrina.

Mas a alteração jurisprudencial parece ser mais profunda, uma vez que permite reconhecer que os pactos internacionais devem ser cumpridos, sendo respeitados os valores de lealdade e cooperação, assim como a segurança jurídica nas relações quotidianas do Estado, e de seu povo, com seus pares.

Assim, não apenas o Estado está obrigado internacionalmente, mas as normas criadas por ele são destinadas tanto às relações entre Estados, mas também com os indivíduos; tanto na ordem interna, quanto na ordem internacional, independente do procedimento de validação do tratado pelo direito brasileiro.

Caso determinada norma ratificada internacionalmente, a exemplo do Pacto de São José da Costa Rica, deixe de corresponder aos interesses brasileiros, cabe ao Brasil denunciar o tratado e posteriormente apresentar nova norma, seja na forma de lei estatal, ou de um tratado, que estabeleça novos valores a serem aplicados.

Assim, conforme afirma o próprio ministro Gilmar Mendes: “(…) a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente”, de forma a se adequar à nova realidade internacional.

A inserção brasileira no comércio internacional e na nova ordem que está por se estabelecer não depende exclusivamente de atendimento de metas e parâmetros macroeconômicos de concorrência.

Antes, a confiabilidade do país e a segurança das partes que negociam conosco devem ser garantidas, não apenas formalmente, mas também materialmente por nossos tribunais, tal qual se alcança com esta nova decisão.

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Fabio Floh é advogado do escritório Zilveti e Sanden Advogados, diretor executivo do IDCID (Instituto de Direito do Comércio Internacional e Desenvolvimento) e professor de direito internacional da FAAP

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