Pouco importa constitua a verdade algo suscetível de ser alcançado pelo homem, ou represente sua busca, apenas, o perseguir uma miragem. O incontestável é que todo ser humano, para sentir-se estruturado, necessita de convicções. Elas é que são as verdades constitutivas dos alicerces sobre os quais edificamos nossa segurança existencial.
São três as convicções fundamentais que orientam, hoje, minha compreensão do mundo e dos homens: (I) todo saber é saber do homem e só se legitima se posto a serviço do homem; (II) nada é sozinho e (III) nada é para sempre. Conseqüentemente, elas também informam o meu saber jurídico-teórico e minha prática jurídica. Nessa perspectiva, por conseguinte, é que abordarei o problema da compreensão, hoje, do Código Florestal de ontem, na moldura dos questionamentos postos pelo urbanismo e pela necessidade de preservação do meio ambiente das cidades.
Se nada é sozinho, duas conclusões de logo se impõem. Nenhum problema é exclusivamente jurídico, devendo sempre ser referido a seus vínculos com o conjunto dos saberes que fazem da sociedade objeto de suas investigações. A par disto, deve-se atentar para o fato de que, no pertinente ao próprio sistema jurídico, tudo se inter-relaciona, nada havendo de estanque ou insulado, donde se dizer que interpretar um dispositivo jurídico implica a compreensão de todo o sistema.
Finalmente, pensar o sistema exige sua compreensão na perspectiva do momento histórico e do contexto social que ele pretende regular, vale dizer, deve ser compreendido ponderando-se o impacto de seus condicionamentos econômicos, políticos e ideológicos.
Nessa perspectiva é que analisarei os textos legais invocáveis para solução de possíveis conflitos entre as exigências de preservação do meio ambiente e a função social das cidades.
Pensando como jurista, sou obrigado a trabalhar com textos revestidos de validade jurídica, mas para compreendê-los com o objetivo de aplicá-los tenho que ultrapassar sua literalidade e singularidade, mais que isto, contextualizá-los no todo do sistema social.
De início, considerando que o Código Florestal data de 1965, editado na vigência da CF de 1946 que em verdade se transmudou na de 67, por força do golpe militar de março desse ano, e porque pretendendo compreendê-lo em seu alcance de hoje, sou obrigado a considerar, confrontando, o que o advento da CF de 1988 significou em termos de mudança em relação a quanto antes se regulava e hoje se pretende regular.
O que me parece mais significativo nessa perspectiva é o tratamento inovador dado ao Município pela CF de 1988. Como advertido pelos que a analisam, nenhuma de nossas anteriores constituições incluiu o Município como integrando a estrutura da Federação, sendo considerados uma entidade submetida aos Estados ou ao poder central. A própria CF de 1967, que lhe reconheceu alguma autonomia, não o incluiu na estrutura da Federação, somente outorgando-a para a administração de quanto pertinente ao seu peculiar interesse e no tocante à organização dos serviços públicos locais (art. 15, II).
Bem diversa a postura da Constituição vigente. De forma peculiar, ao arrepio de quanto disciplinado antes e inovando, inclusive, em termos de direito comparado, incluiu o Município na estrutura da Federação (art. 18) e lhe atribuiu competência legislativa sobre assuntos de interesse local, bem como para suplementar a legislação federal e estadual no que couber e ainda promover, nesses mesmos termos, o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano (art. 30, I, II e VIII). 1
De tudo isso decorre a exigência de se proceder à leitura do Código Florestal, hoje, quando em jogo interesse do Estado e do Município, numa perspectiva inteiramente nova em relação ao passado.
Esta conclusão se torna ainda mais peremptória quando se atenta para os problemas do meio ambiente na perspectiva das cidades. A CF de 88 não atribuiu à União competência exclusiva no particular da disciplina de sua defesa nem do de sua regulação, quando em jogo problemas urbanos, colocando tais matérias também na esfera da competência dos Estados (art. 23, VI) e dos Municípios, aos quais deferiu, inclusive, função legislativa suplementar, nos termos já precedentemente acentuados.
Colocada a proteção do meio ambiente como matéria da competência concorrente da União e dos Estados, reservou-se para aquela, nos precisos termos do § 1º do art. 24 da CF, apenas a competência para estabelecer normas gerais, preservada a dos Estados para suplementá-las (§ 2º), o que se estende aos Municípios naquilo que for pertinente ao interesse local (art. 30, II).
Necessário, portanto, precisarmos o que se deve entender por normas gerais no texto constitucional. Manoel Gonçalves Ferreira Filho diz não ser fácil conceituá-las pelo ângulo positivo.
“Pode-se afirmar, e corretamente, acrescenta ele, que normas gerais são princípios, bases, diretrizes que hão de presidir todo um sistema jurídico. Sempre haverá, no entanto, em face de casos concretos, dúvida até onde a norma será efetivamente geral, a partir de onde ela estará particularizando.
Mais fácil é determinar o que sejam ‘normas gerais’ pelo ângulo negativo. Quer dizer, indicar os caracteres de uma norma que não é ‘geral’; é, conseqüentemente, específica, particularizante, complementar.
Realmente são particularizantes as normas que visem a adaptar princípios, bases, diretrizes a ‘necessidades e peculiaridades regionais’, como está na parte final do art. 24, § 3º.” 2
Eros Roberto Grau, aprofundando quanto geralmente ensinado, diz
“(…) que as normas gerais (I) constituiriam regras que conferem concreções a princípios que Canotilho denomina de políticos constitucionalmente conformadores, inobstante as normas gerais também vinculem princípios e princípios que sejam também vinculados por normas que não se pode qualificar como normas gerais (II) consubstanciariam a ordem de condutas uniformes visando a prevenir conflitos entre as entidades da federação e/ou então os que nela estejam situados (III) suprem lacunas constitucionais e (IV) no Brasil respeitam as matérias enunciadas no art. 22 da Constituição de 88, todas elas são, no Brasil, normas nacionais/normas gerais.” 3
Paulo Afonso Leme Machado, por sua vez, analisando o art. 24, § 1º da CF de 88, afirma que normas gerais são aquelas que, por sua natureza, podem ser aplicadas a todo o território brasileiro, advertindo, contudo:
“Há uma diferença que me parece sutil, mas que merece ser apontada: a norma não é geral porque é uniforme. A generalidade deve comportar a possibilidade de ser uniforme. Entretanto, a norma geral é aquela que diz respeito a um interesse geral.
A doutrina constitucional de um país federal como o Canadá assinala que ‘se entende que o caráter simplesmente desejável de uma lei federal uniforme em uma certa matéria, não a torna de interesse ou importância nacional’.
O art. 24, § 1º da CF prevê a generalidade da norma federal, o art. 24, § 3º prevê a peculiaridade da norma estadual e o art. 3º, I, prevê o interesse local da norma municipal.
A norma federal não ficará em posição de superioridade sobre as normas estaduais e municipais simplesmente porque é federal. A superioridade da norma federal – no campo da competência concorrente – existe porque a norma federal é geral.
A norma geral que ao traçar diretrizes para todo o país, invadir o campo das peculiaridades regionais ou estaduais ou entrar no campo do interesse exclusivamente local, passa a ser inconstitucional.” 4
Comparando essas posições, pareceu-me mais didático precisar-se o que sejam normas gerais, no específico dizer do art. 24, § 1º, mediante um procedimento analógico, confrontando-se o que na teoria geral do direito se entende como norma geral e norma particular com o que se deve compreender como norma geral e norma suplementar ou peculiar em nível de distribuição constitucional de competências legislativas.
A norma geral, na teoria geral do direito, é aquela que tipifica genericamente situações fáticas, procedendo-se a sua concreção quando a conduta típica se realiza na vida social entre sujeitos determinados. Verificada a situação fática correspondente à tipificada normativamente, diz-se ter havido incidência, donde legitimar-se a edição da norma particular pelo julgador, ainda que deva fazê-lo vinculado às lindes postas pela norma geral.
Diversa é a significação de “normas gerais” no âmbito da distribuição constitucional das competências legislativas. A União edita a norma geral, fixando princípios e regras genericamente aplicáveis. Quando há especificidades ou peculiaridades, dado que houve situação fática autorizadora da incidência da competência legislativa dos Estados e dos Municípios, ficam estas entidades autorizadas a exercitá-la.
Destarte, assim como o julgador, na primeira hipótese, está legitimado para editar a norma particular, dando concreção ao comando posto pela norma geral, visto como, no caso concreto, configuram-se os elementos exigidos para a incidência, também aqui, o Estado e o Município estão legitimados a dar concreção à norma geral, editando a lei (norma geral) que irá disciplinar a situação peculiar autorizadora do exercício de sua competência constitucional.
Tentando precisar ainda mais o entendimento que se deve dar à expressão normas gerais na espécie, eu me socorreria de um princípio fundamental ao Estado de Direito Democrático, qual seja o princípio da liberdade: vale dizer, tudo é permitido ao homem para dar expressão a sua liberdade, salvo aquilo que a lei proíbe ou impõe. Em que pese sua abrangência, são admitidas as chamadas normas dispositivas. Elas não violentam o princípio da liberdade, visto como somente incidem no silêncio dos interessados, como forma de eliminar a disfuncionalidade que resultaria da falta dessa manifestação. Pois bem, o princípio federativo institucionalizado na CF de 88 da prioridade do específico e peculiar da situação local, havendo a omissão da entidade federativa interessada, supre-se com a incidência da norma geral federal. Destarte, pode-se concluir que a incidência da norma geral federal é impositiva quando ausente qualquer peculiaridade em nível estadual ou municipal, entendendo-se como tal a falta de exercício pelo Estado ou Município das competências que lhes foram deferidas. Reivindicar-se a predominância da lei federal só é aceitável quando, inexistente alguma peculiaridade autorizadora do exercício da competência dessas entidades da Federação, deixe ela de ser aplicada.
Nesses termos, caso os limites postos pelo art. 2º do Código Florestal fossem impositivos para os Estados e Municípios, sem se atender a peculiaridades que existam, o art. 2º deixaria de ser norma geral, no sentido de balizamento da distribuição das competências legislativas, para se tornar norma legal de incidência impositiva no caso concreto, já lhe imputando diretamente as conseqüências, identificando-se, destarte, de modo totalmente desautorizado dogmaticamente, a meu ver, os conceitos de norma geral no âmbito da teoria geral do direito, com o de norma geral na moldura constitucional da distribuição de competências legislativas. Tal entendimento é descabido, sob pena de se negar conteúdo tanto à competência concorrente, quanto à competência suplementar dos Estados e dos Municípios, que lhes foram asseguradas constitucionalmente.
Operassem os limites postos pelo art. 2º como máximos e impositivos, careceria de sentido e alcance práticos, na perspectiva da solução dos problemas urbanos, quanto disposto no art. 4º do Código Florestal com sua nova redação. Aos órgãos estaduais e municipais estaria apenas reservado o papel de meros “verificadores”, em termos materiais, do respeito aos limites postos no art. 2º do Código Florestal. Ter-se-ia gasto muitas palavras para dizer muito pouco ou até o desnecessário. Mais absurdo, ainda, o entendimento de serem mínimos os limites indicados no art. 2º do Código Florestal, permitindo-se aos Estados e aos Municípios agravá-los, com a conseqüência ilógica e desastrosa de se entender que, em áreas urbanas, os sacrifícios imponíveis ao meio ambiente devem e podem ser maiores que os previstos para as áreas rurais, quando o mais elementar bom senso, mesmo o de um Conselheiro Acácio, brada justamente o contrário, dado que o meio ambiente rural é predominantemente natural, enquanto o meio ambiente urbano é eminentemente construído.
Para encerrar a análise estritamente jurídica do problema, lembraria que prevalece, hoje, o entendimento de que toda e qualquer interpretação de texto jurídico deve, em última análise, ser uma interpretação segundo a constituição.
Invocarei, inicialmente, a autoridade de Karl Larenz. Diz-nos ele que pelo fato de precederem as normas constitucionais, em hierarquia, a todas as demais normas jurídicas, uma disposição da legislação ordinária que esteja em contradição com um princípio constitucional é inválida, mas esta invalidade só deve ser pronunciada quando impossível interpretá-la em conformidade com a Constituição.
“Examina-se, por conseguinte, em primeiro lugar, se uma interpretação, reconhecida como inconstitucional é, de acordo com os ‘métodos de interpretação tradicionais’ a única – e então a disposição é inválida – ou se também é possível que resulte uma interpretação conforme a Constituição. Se uma interpretação, que não contradiz os princípios da Constituição, é possível segundo os demais critérios de interpretação, há de preferir-se a qualquer outra em que a disposição viesse a ser inconstitucional.” 5
Nesse mesmo sentido, Riccardo Guastini:
“La interpretación conforme es, en suma, aquella que adecua, armoniza la ley y la Constitución (previamente interpretada, se entiende) eligendo – frente a una doble posibilidad interpretativa – el significado (o sea, la norma) que evite toda contradición entre la ley y la Constitución.” 6
Por fim, Lenio Luiz Streck:
“Alçado à categoria de princípio, a interpretação conforme à Constituição é mais do que princípio, é um princípio imanente da Constituição, até porque não há nada mais imanente a uma Constituição do que a obrigação de que todos os textos normativos do sistema seja interpretados de acordo com ela.” 7 (grifo do original)
– II –
Se a análise estritamente jurídica nos conduziu ao entendimento de que, entre nós, se deu prevalência constitucional aos aspectos regionais, locais e peculiares em matéria de urbanismo e meio ambiente das cidades, veremos que ele não somente resiste, como é fortalecido pela análise interdisciplinar do problema. É o que tentaremos fundamentar.
Marcelo Lopes de Souza 8, com suporte em Japiassu lembra que:
“Muito se clama por interdisciplinaridade na pesquisa científica contemporânea, mas o que mais se vê, na melhor das hipóteses, é pluridisciplinaridade (justaposição de conhecimentos disciplinares diversos, agrupados de modo a evidenciar as relações entre eles; cooperação sem coordenação) ou mesmo uma mera multidisciplinaridade (conhecimentos disciplinares diversos veiculados sem que haja uma cooperação entre os especialistas). A verdadeira interdisciplinaridade pressupõe uma cooperação intensa e coordenada, sobre a base de uma finalidade (e de uma problemática) comum.”
Esta ênfase na integração dos saberes se faz particularmente exigente no tocante ao problema das cidades, espaço social por excelência no mundo contemporâneo. O mesmo autor citado 9 acentua que nenhuma das disciplinas sustentadas pela divisão do trabalho acadêmico em vigor, de cunho positivista, que se baseia em um esquartejamento da realidade social concreta em partes (“estruturas”, “subsistemas”, etc.) pretendidamente autônomas (economia política, cultura, espaço, história) consegue dar conta dos processos e fatores que explicam a transformação das relações sociais e a produção do espaço social, sobretudo no caso de um ambiente complexo como o urbano.
Forte nesse entendimento, sempre me inclinei, como jurista, a repelir a pretensão estulta dos que interpretam e aplicam os textos legais como se eles nada tivessem a ver com as relações sociais que efetivamente ocorrem na interação entre os que convivem em determinado espaço político, juridicamente institucionalizado. Crítica também extensiva aos especialistas das ciências exatas e das ciências humanas que desprezam ou desconhecem a capacidade das decisões jurídicas interferirem, em nível micro, na realidade social.
No tocante aos problemas da cidade, a interdependência se acentua de modo particular, dado que ela é, no mundo de hoje, o espaço onde ocorrem os fatos sociais significativos (políticos, econômicos, jurídicos, culturais), todos eles revestindo sua crueza com a roupagem da ideologia, que legitima a inelutável relação comando/obediência, indissociável de toda e qualquer organização social, colocada para o homem como de sua responsabilidade, desprovido que foi da proteção da regulação pelo instinto, benefício concedido, entretanto, a todos os outros animais.
Os fatos sociais significativos se desenrolam no espaço das cidades e nele estão todas as instituições representativas de nosso tempo. Alfredo Sirkis, invocando David Engwitch e acentuando a crescente urbanização que ocorreu na Modernidade (e se tornou vertiginosa, entre nós, nos últimos 40 anos), diz que as cidades são “a concentração de gente e estruturas que facilitam a troca de informação, amizade, bens materiais, cultura, conhecimento, intuições, habilidades e também troca de apoio emocional, psicológico e espiritual. Elas são, enfim, o reconhecimento de que, para desenvolver nossas plenas potencialidades, necessitamos daquilo que outras pessoas nos podem dar”. 10
Conclui-se, por conseguinte, que o problema do meio ambiente urbano é algo de extrema complexidade e diversidade, sendo mais correto falarmos em “meios ambientes” e não em um único e predominante meio ambiente. Os problemas envolvidos são os mais variados, desde habitação, trabalho, educação, saúde até locomoção, lazer e produção de cultura, tudo interligado e conectado, exigindo sempre uma compreensão integrativa, jamais “esquartejadora” da realidade, o que somente pode gerar aleijões em termos de saber e de decisões políticas.
Reiner Maderthaner 11 arrola dez conjuntos de necessidades do meio urbano, cada um deles encerrando diversos aspectos específicos. E cada qual dessas diferentes necessidades deve ser satisfeita em um ou vários domínios de fruição: habitação, trabalho, circulação, diversão, consumo, eliminação de lixo/resíduos, apontando ele, também, as conseqüências de sua não-satisfação, que transitam desde o esgotamento físico e psíquico até à raiva, que gera conflitos e nutre a violência.
Mesmo quando seja possível refletir cientificamente sobre as necessidades básicas de uma comunidade a partir de conhecimentos empíricos acumulados sobre seu modo de vida e seus problemas, jamais se deve reconhecer ao cientista o direito de pretender definir as necessidades concretas de tal ou qual grupo em lugar dos próprios interessados, o mesmo raciocínio valendo no tocante aos parâmetros do desenvolvimento, sobretudo, no pertinente às adaptações singularizantes, que não deverão ser especificados à revelia dos sentimentos, dos valores e das expectativas dos cidadãos. 12
Ainda aqui, portanto, a conclusão é em desfavor das regulações generalizantes e impositivas.
Acrescente-se ao que vem de ser posto o fato de que estamos nos afogando num mundo de perplexidades, fruto da urgência de nossas muitas perguntas e da carência assustadora de respostas confiáveis para elas.
Geraldo Mário Rhode 13 nos lembra que o século XX produziu eventos extraordinários na teoria do conhecimento e nos paradigmas científicos. Seu início foi marcado pela invasão das desordens nas ciências ditas “duras” (ou ainda deterministas, termodinâmicas, etc.) e a inclusão das noções de probabilidade, incerteza e risco em diversas disciplinas. O findar de nosso século assistiu ao definhamento do paradigma cartesiano-newtoniano, substituído por uma visão de mundo integradora, sística, conjuntiva e holística. Acrescenta que, mesmo dentro da visão economicista atual, quatro fatores principais tornam a civilização contemporânea claramente insustentável: o crescimento populacional humano exponencial; depleção da base de recursos naturais; sistemas produtivos que utilizam tecnologias poluentes e de baixa eficácia energética; sistema de valores que propicia a expansão ilimitada do consumo material.
Comungando com tais colocações, estou convencido de que ou conseguiremos, racional e cooperativamente, estruturar um novo paradigma ou ele será mudado pela implacabilidade das forças naturais.
Tudo isso afeta, de modo acentuado, a problemática das cidades. Porque impossível uma abordagem total, tentarei pinçar o que me parece mais significativo.
Do ponto de vista econômico, coloca-se, com maior peso, o problema de como se compatibilizar o sistema capitalista de produção com a exigência, cada vez mais evidente, de se preservar o meio ambiente. 14 A resposta do cognominado desenvolvimento sustentável é apenas um nome e não uma solução.
Desenvolvimento sustentável é algo de que todos falam e ninguém sabe precisamente o que seja. Mais que isto; antes de se falar em desenvolvimento sustentável deveria ser deixado claro o que se deseja sustentar, em favor de quem e por que maneira. Exige-se, ainda, seja explicitada que visão do mundo suporta as reflexões e as teorias propostas sob a égide do “desenvolvimento sustentável” e quais são a consistência lógica e o significado ético e político dessas reflexões e dessas terapias. Sempre se deixa na sombra o fato inexorável de que, na base de tudo, está o relacionamento do homem com a Natureza e que a condição humana implica a intervenção na Natureza. Lembrando Hannah Arendt: enquanto todos os animais permanecem prisioneiros do mero metabolismo dos alimentos que lhe nutrem o corpo e proporcionam seu crescimento e sobrevivência, o homem associa ao trabalho do corpo o trabalho de suas mãos, direcionado por sua mente. Torna-se homo faber, construtor do Mundo. Mantendo-se, contudo, inelutavelmente na Natureza o homem se transforma, entretanto, em um destruidor da Natureza. 15
Do ponto de vista político, ressalta o problema, diria antes o desafio ameaçador, que é o de se compatibilizar os reclamos do desenvolvimento capitalista no nível por ele hoje alcançado, com as exigências cada vez mais prementes de justiça social, entendido este termo como relacionado à satisfação das necessidades de todos os homens, o que se revela cada vez mais difícil de ser alcançado num mundo em que se fomenta muito mais a satisfação dos desejos que o atendimento das necessidades. Mundo em que o valor de troca expulsa o valor de uso das relações humanas cujo objeto é tudo quanto os homens produzem com o seu trabalho e colocam no trono a utilidade em detrimento da significação. 16
Na perspectiva das chamadas ciências exatas, o fato marcante é o da progressiva perda de confiança na sua capacidade de prever as conseqüências de quantas intervenções na Natureza ela provoca em sua cumplicidade com o imperativo da reprodução ampliada que é o coração mesmo do sistema capitalista. Como salientado por Boaventura de Sousa Santos, a ciência moderna desenvolveu uma grande capacidade de agir, mas não desenvolveu uma correspondente capacidade de prever, donde as conseqüências de uma ação científica tenderem a ser menos científicas que a ação científica em si mesma, disso decorrendo o desequilíbrio e a falsa equivalência de escalas entre as ações técnicas e as conseqüências técnicas. 17 Em resumo – agravamos os riscos e o medo do amanhã.
Tudo isso converge e se torna particularmente agudo precisamente no espaço das cidades, porque elas são o lugar no qual os homens fazem a sua história ou cumprem o seu fado.
Quanto posto até aqui aponta para uma conclusão inelutável. Não há soluções válidas, de caráter geral, implementáveis em todas as situações. Não há a cidade, sim cidades concretas, diferentes em seu modo de ser e diferentes em termos de problemas e de soluções. Não há o problema do meio ambiente urbano, mas problemas do meio ambiente das cidades.
Em resumo: a nível macro, somente são possíveis, hoje, com relativa segurança, traçar diretrizes e fixar limites intransponíveis, ficando para solução a nível micro a exigência de ponderação das muitas variáveis e dos muitos fatores que incidem em cada caso concreto.
O planejamento regulatório enfraqueceu-se em nossos dias por força da pressão do mercado em tempo de desregulamentação, flexibilização e diminuição da presença do Estado no espaço do planejamento e da gestão urbanos e em que as parcerias público-privadas se revestem do caráter de solução ideal. Nesse contexto, lembra Marcelo Lopes de Souza, o planejamento com um mínimo de sentido público, expresso por meio de um conjunto de normas e regras de alcance geral relativas ao uso do solo e à organização espacial, é eclipsado, negligenciado e, não raro, acuado pela enorme ênfase que passa a ser posta em projetos urbanísticos, sejam de embelezamento, “revitalização” ou outro tipo 18. E tudo isso se dá não gratuitamente, mas por força dos conflitos de interesses no contexto social, sempre solucionados em favor de quem disponha do diferencial de poder no caso concreto.
Este mesmo autor, ressalta a complexidade do problema e das soluções possíveis, arrolando nada menos que nove tipos de planejamento que hoje disputam primazia em termos de hegemonia política e qualificação técnica, sem, contudo, arriscar-se a emprestar a qualquer deles a capacidade de solucionar os problemas emergentes e se impor social e politicamente. 19 E este é mais um dado em favor da predominância do regional, do local e do peculiar em matéria de problemas de interação entre as exigências da cidade e a preservação do meio ambiente.
– III –
Concluindo: Parece-me evidente a necessidade de ser compreendido o Código Florestal na moldura de quanto hoje traçado pela vigente Constituição Federal no particular da autonomia dos Estados e Municípios e da competência concorrente que lhes foi deferida, o que ainda mais se acentuou com a recente MP 2.166-67/01, alterando a redação do seu primitivo art. 4º.
Precisamos aceitar o inelutável de que as cidades são construídas, necessariamente, sobre o aniquilamento da Natureza, nem sempre suscetível de ser recomposta em termos satisfatórios. O que se exige é a ponderação de valores, com vistas a harmonizar o meio ambiente natural com o meio ambiente construído; e isto só é passível de análise e ponderação em face do caso concreto. Daí a irrecusável primazia do regional, do peculiar e do local, só desqualificáveis pela comprovação da manifesta incompatibilidade entre eles e valores constitucionais de maior relevância. 20
Entendendo que a plena realização da condição humana dos indivíduos conviventes é o objetivo fundamental que deve ser socialmente perseguido por todos nós, não só em termos de reflexão especulativa, como também em nosso agir nas situações particulares e concretas, refleti a partir do homem sobre o questionamento que me foi proposto, como indivíduo ou como espécie, mas na particularidade de sua condição de habitante de uma cidade. Em outros termos: nutri-me das reflexões dos que se preocupam com tudo quanto é necessário para que as cidades se coloquem a serviço da plena realização da condição humana. Não o fiz sonhando, mas, tanto quanto possível, com os pés no chão, ainda que com os olhos fitos no horizonte.
Por estar convicto de que nada é sozinho, procurei refletir sobre os homens que habitam a cidade, enquanto coletividade, ainda que entenda jamais possa o coletivo aniquilar o valor do individual. Sem o homem singular não há a sociedade, como sem esta não é possível a condição humana. Também aqui, não integrar é falsear. O sacrifício do individual em favor do social deve sempre ser resultado de uma ponderação de valores, sendo aceitável dizer-se que o sacrifício do indivíduo em favor da sociedade somente se legitima quando disso resultarem benefícios para um maior número de sujeitos.
Outrossim, se nada é sozinho, nenhum problema pode ser pensado sem que seja referido a todos os demais que com ele interagem no universo da cidade. Assim sendo, o meio ambiente urbano é muito mais do que o meio ambiente natural, também devendo ser considerado o meio ambiente construído, suas exigências e implicações.
Finalmente, se nada é para sempre, o problema tem que ser pensado em termos da realidade de hoje, tanto no pertinente ao direito positivo, como na perspectiva dos valores e instituições sociais de agora. Isso implica o imperativo de entendermos o Código Florestal com os olhos de nossos dias, o que também vale para todo o sistema jurídico, que não é mais o do início de sua vigência (1965), sim o da Constituição Federal de 1988, também esta exigindo sua compreensão à luz do momento atual, sem esquecermos que as quase duas décadas decorridas, no mundo da contração do espaço/tempo, correspondem a séculos de outrora.
Para sintetizar ao máximo a brutal mudança de perspectiva, diria que migramos da bipolarização da guerra fria, transitamos pela euforia da globalização e hoje estamos apreensivos em face do confronto fundamentalista, tudo isso transcorrendo sobre o pano de fundo de um capitalismo que se deslocou do chamado capitalismo organizado, eminentemente motivado para a produção, para um capitalismo desorganizado, qualificado por alguns como capitalismo de cassino, por sua predominante natureza especulativa.
São estas ambigüidades que não podemos eliminar e que temos de administrar. Necessitamos, portanto, pensar o meio ambiente colocando-o sob o guante de seus condicionamentos políticos, econômicos e ideológicos.
Considero ainda relevante acentuarmos a especificidade de nossa atuação como juristas. Todos somos prisioneiros de um sem número de condicionamentos, mas o jurista submete-se a um que lhe é específico. Há grilhões em seus tornozelos – o sistema jurídico em que atua, cuja preservação é fundamental para sua legitimação e para a estabilidade social. Posso, como cidadão comum, acreditar que existam alternativas para se pensar um mundo diferente e, nessa condição, me comprometer socialmente com determinados valores ou comportamentos que se mostrem adequados para esse fim. Como profissional do direito, entretanto, eu sou “prisioneiro” de um sistema que me impõe limites intransponíveis e veta um sem número de comportamentos socialmente possíveis. Sem dúvida que podemos ser, como juristas, prisioneiros sob regimes diferentes. É possível cumprirmos nossa pena confinados numa solitária ou numa cela exígua, como também é viável fazê-lo com a largueza de quem a cumpre numa penitenciária agrícola. Apenas o horizonte de nossos limites é que são variáveis. Mas haverá sempre um muro, uma cerca eletrificada, uma muralha que nos diz: “Vocês não podem ir além. Eu sou intransponível, sob pena de vocês incidirem em um comportamento ilegítimo e socialmente indesejável, por isso mesmo punível”.
As alterações de “limites” só a luta política tem condições de realizar. Ao Direito, por conseguinte, a única tarefa que lhe é reservada é a de dar concreção ao que antes foi conquistado, mediante a institucionalização dos agentes e procedimentos necessários para isso. As mudanças somente ocorrem pela via do processo político. As adaptações é que são factíveis pela via do Direito. Por isso mesmo, se algo é ameaçador para a democracia é o ativismo judicial, por imprudente, ou a apatia judicial, por covardia ou comodidade.
Nós, juristas, deveríamos ter sempre presentes a lúcida advertência de Castoriadis: “uma sociedade justa não é uma sociedade que adotou leis justas para sempre. Uma sociedade justa é uma sociedade onde a questão da justiça permanece constantemente aberta, ou seja, onde existe sempre a possibilidade socialmente efetiva de interrogação sobre a lei e sobre o fundamento da lei. Eis aí uma outra maneira de dizer que ela está constantemente no movimento de sua auto-instituição explícita.” 21 Mas esta justiça sob permanente questionamento é a justiça política, aquela que se traduz em ganhos ou perdas para os dominados, não a que nos cumpre efetivar como juristas, que somente pode ser aquela previamente instituída, como antes já por nós frisado, e que é fruto da luta política, sua conseqüência, nunca algo que a possa substituir.
Como acentuado tanto por Marcelo Lopes de Souza quanto por Ricardo Toledo Neder, nenhuma solução será possível sem uma radical mudança de padrões de comportamento social, e esta é uma atividade política que, por sua vez, somente se mostra viável havendo um espaço público, o que lhe é vital. Justamente o mais trágico e preocupante de nossos dias é que perdemos, enquanto indivíduo e povo, o espaço público e nosso destino está sendo decidido em esferas que escapam de todo a nosso controle.
Estou convencido, outrossim, de que nenhuma solução para os problemas da cidade será satisfatória se antes não solucionarmos o que é fundamental – compatibilizar as exigências da reprodução ampliada e da uniformização das preferências, vitais para o capitalismo, e a necessidade de preservação do meio ambiente urbano ou rural em termos de segurança para o futuro.
Ocultar ou escamotear este problema será uma insensatez. Tenho como bem ilustrativa dessa postura, consciente ou inconsciente, a leitura de um livro que se intitula, expressivamente, Meio ambiente no século XXI. Dos seus vinte e um colaboradores, nenhum enfrentou o problema que é fundamental: a compatibilidade do sistema capitalista, com sua exigência vital da reprodução ampliada e fomento de desejos para alimentar a febre consumista de que ele se nutre, num mundo superpovoado e desigual, e a preservação ambiental. Daí talvez se haver substituído o slogan “salvar o planeta” pelo de “manejar o planeta”.
Desejaria, a esta altura, deixar claro que não demonizo o capitalismo, considerando-o um fruto maligno produzido pela maquinação de mentes humanas perversas ou egoístas. Como não vejo nenhum sentido em se demonizar a servidão feudal ou a escravatura greco-romana, ou a ibérica ou a do sul dos Estados Unidos da América. A história humana é tecida por acontecimentos que transitam pelo que os homens acreditam seja fruto de suas livres decisões, donde por elas serem responsabilizados, e deságuam em tudo quanto escapa à responsabilidade de quem quer que seja, em face da real impotência dos homens de impedir a implacabilidade de forças que não domina nem identifica, apenas mitifica e manipula sob a forma de religião ou de ciência, o que levou Zygmunt Bauman a indagar: “até que ponto é verdadeiramente livre o homem livre?”.
Todo meu empenho se direciona, portanto, para a tentativa de compreender, num mínimo que seja, o mundo em que vivo e que papel nele me foi reservado. Estou convencido de que nossa condição humana exige de nós a coragem de empreender, mas também a virtude de aceitar o que escapa de nossa compreensão e de nossa capacidade de fazer acontecer.
Talvez só nos seja dado acreditar, com Hannah Arendt, que há um imprevisível e que ele vem sempre sob a forma de milagre. Ou, se quisermos, recordar S. Paulo, que nos manda esperar, mesmo contra toda esperança. Só uma coisa é inaceitável: deixarmo-nos sucumbir sob o peso da contingência e da ambigüidade que convivem com a condição humana, como convive com cada homem a sua sombra. Precisamos ter consciência, entretanto, de que só vemos nossa sombra quando nos expomos à luz. E só teremos condição de mudar o Mundo se aceitarmos o percalço da contingência e da ambigüidade, que apenas são a sombra projetada por força de nossa determinação de abandonar as trevas do medo e da ignorância, e nos expormos aos desafios de insistir nas perguntas e elaborar respostas para elas, que nem por serem provisórias, deixam de ser as certezas de hoje, que bastam para justificar a nossa coragem de ser.
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J. J. Calmon de Passos
Jurista.