Informe de Última Instância dá conta de que há um projeto de lei, o 6172/05, de autoria do deputado Marcos Abramo, que proíbe que o profissional médico dê mais que 12 horas de plantão, sob a justificativa de que “…um médico cansado não consegue ser um bom profissional”. Informa ainda a nota que as entidades médicas ainda irão se pronunciar a respeito (Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina).
Pois muito bem, não tive acesso ao citado PL, tampouco sei os que as entidades de minha categoria profissional pensam a respeito. Mas acredito possuir alguns subsídios de ordem pessoal para o tema, sem dúvida importante sob vários aspectos.
Em primeiro lugar, um médico exausto, como na justificativa do PL, efetivamente vai render menos na sua atividade: seja em um plantão de pronto-socorro, hospitalar, terapia intensiva,anestesiologia etc. etc. Mas é assim que as coisas funcionam desde sempre por aqui.
Também é evidente que, e coloco como segundo lugar, não basta o profissional médico estar descansado: ele tem que ser bem preparado, atualizado, adequado àquela determinada função, remunerado de acordo e, principalmente, ter à sua disposição tudo de que vai necessitar para o bom exercício da função, as tais condições de trabalho, que vão do equipamento necessário e funcionante a medicamentos, dos demais integrantes da equipe multiprofissional de saúde às salvaguardas contra a violência —sim, isso passou a fazer parte de tais condições e explica a dificuldade em se alocarem médicos para trabalhar na periferia, por mais que se pague, pois muitos são vítimas da violência incidental, mas também das tentativas de resgate de pacientes-detentos, pacientes alcoolizados armados e até mesmo dos, digamos,”responsáveis” por uma comunidade aonde está instalada uma unidade de saúde: vários colegas já relataram que, por exemplo, em unidades básicas de saúde (os postos), situados próximos ou mesmo dentro de favelas, atendem-se muitas mulheres cujos maridos cumprem pena e mesmo criminosos de fato— são aconselhados a atenderem bem a essas pessoas para ter sua “proteção” pessoal e patrimonial (como um carro) garantidas, caso contrário…
Um plantão é efetivamente exaustivo? Depende. Isso é muito subjetivo. Dependendo de cada pessoa, e isso não se aprende na faculdade ou na residência médica, o profissional pode trabalhar muitas horas seguidas em atividade fisicamente extenuante, como um cirurgião, e até gostar disso; outros, também por questões de formação pessoal, podem sentir todo o peso de permanecer horas a fio em um determinado lugar, mesmo sem atender um único paciente sequer, mas a distância da família, de atividades sociais ou qualquer coisa que se possa pensar pode ficar muito mais estressado.
Vou contar dois episódios pessoais que podem ajudar a lançar alguma luz sobre o assunto.
Há vários anos foi organizado um congresso de minha especialidade aqui em São Paulo, e em determinado dia fui incumbido de levar para o hotel, do centro de convenções, uma neurologista inglesa, uma senhora de Londres muito conceituada e tipicamente britânica.
Ressalte-se que o Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido por muitos é celebrado como um dos modelos de funcionamento adequado, dentro dos princípios do Estado de Bem Estar Social, do “guarda-chuva social” com alguns dizem, que ainda viceja na Europa Ocidental.
Sem entrar nos detalhes mais atuais da questão, como o do premente encarecimento desse sistema, um médico londrino trabalha apenas em um único local. No caso da médica a quem eu levava, era professora e pesquisadora em um importante hospital universitário da capital inglesa e tinha horário certo para trabalhar —das nove da manhã às cinco da tarde.
Apenas como ilustração, os plantões costumam ser melhor remunerados nos países desenvolvidos, e voltarei a esse aspecto a seguir, mas na Alemanha, por exemplo, os plantonistas são voluntários, os plantões de duração mais curta (como seis horas), compostos de acordo com os interesses comuns das instituições de saúde e médicos, e pagos a mais.
Pois então, na ocasião aqui relatada, eu trabalhava como a maioria de meus colegas brasileiros, ou seja, em vários lugares e de diferentes formas. No caminho do congresso para o hotel, a médica inglesa me perguntou aonde eu trabalhava. Não foi fácil eu dizer que não era em apenas um lugar, isso era um tanto incompreensível para ela, mas sim tendo já consultório particular, internando meus pacientes privados em um hospital em especial, sendo funcionário público em outro, médico e pós-graduando em hospital universitário, plantonista em outro, médico contratado autônomo em outro hospital ainda da Grande São Paulo, professor assistente de duas escolas médicas…
Ela olhou espantada para mim e, com a tradicional flegma britânica, disse apenas: “você é um homem ocupado”. Sem maiores comentários…Mais diretos foram norte-americanos, anos depois, após perguntarem a mesma coisa para mim e conseguirem respostas semelhantes: “vocês brasileiros são loucos!”.
De outra feita, um professor de cirurgia dinamarquês, da Universidade de Copenhagen, iria passar por São Paulo e queria conversar e mostrar uns vídeos para seus colegas brasileiros —eu e ele éramos membros do Grupo Médico da Anistia Internacional e ele quis trocar experiências.
Além de falar espanhol melhor que qualquer um de nós brasileiros reunidos, também me recordo que tomou dois litros inteiros e sem gelo de uísque escocês, sem se alterar nem um pouco. Quando a conversa passou para temas gerais, uma dúvida passou a incomodar os presentes: ele trabalhava apenas como professor da universidade (sua tese de Ph.D., que gentilmente ele me enviou, foi a primeira em todo o mundo a abordar a cirurgia reconstrutiva de vítimas de tortura), atuava na Anistia e viajava bastante. Mas como ele conseguia fazer tudo isso?
Tomando coragem, colocamos de modo gentil essa colocação ao colega escandinavo, que até se surpreendeu, pois sua explicação era muito simples: ora, ele dava plantões de 48 horas aos finais de semana. Nenhum de nós entendeu nada. Mas aí ele não teria ainda menos tempo e ficaria mais cansado?
Comparando os países, ele tornou claro que evidentemente a população dinamarquesa era muito menor que a brasileira, e que seus plantões eram tranqüilos. Além disso, por conta da diferença ainda importante naqueles tempos da pirâmide populacional, enquanto uma típica e freqüente emergência cirúrgica brasileira seriam as apendicites em jovens, em Copenhagen, com população mais idosa, ele atendia menos gente, claro, e em geral casos urológicos, de relativa facilidade para tratamento de urgência, e encaminhados para seguimento eletivo após. Certo, mas e daí? Isso não nos acrescentou nada para resolver nossas dúvidas.
E aí veio a explicação: desde a década de 1970, o Parlamento da Dinamarca havia aprovado uma lei considerando o plantão médico algo extenuante e de muita responsabilidade —conseqüência disso, por lei, um plantonista de 24 horas em final de semana, obrigatoriamente teria que ter licença de uma semana remunerada após o plantão.
De modo algo abrasileirado, ele juntava dois plantões, perfazendo as 48 horas do final de semana, e, já na segunda feira, estava de licença obrigatória e reumerada por 15 dias, daí poder viajar e se dedicar a causas como a da Anistia…
Talvez o exemplo da Dinamarca possa ter influenciado nosso legislados quando da elaboração de seu projeto de lei. Do ponto de vista formal, posso concordar “in totum” com o argumento: na média, 12 horas de plantão são, sim, extenuantes, e uma legislação similar à escandinava bem que não faria mal. Mas há alguns detalhes, como sempre…
Nos países do chamado Primeiro Mundo, o mais freqüente é o médico trabalhar em apenas um local, público ou privado. Nessas circunstâncias é cabível o raciocínio e a aplicação de uma norma legal como a pretendida. Desejável, até. Contudo, estamos no Brasil. Como em meus relatos à médica inglesa e aos americanos, o que acontece com praticamente todos os médicos brasileiros?
Não trabalham em um único local! Por exemplo, de manhã são diaristas em um hospital público, à tarde fazem ambulatório em instituição privada, depois vão para seus consultórios atender pacientes conveniados ou particulares, sem falar que têm que “passar visita”, ou seja, examinar e prescrever seus pacientes internados.
Caso o médico exerça uma especialidade cirúrgica, ainda tem que encontrar tempo nisso tudo para realizar suas operações!
Seria o médico brasileiro um “workalcoholic” nato? Claro que não: ele é obrigado a ser. No serviço público, é contratado para 20 horas semanais ou equivalente em plantões, e não pode trabalhar em mais que duas instituições governamentais. Os convênios pagam pouco. Os empregos também. Para manter um padrão de vida razoável, que inclui educação para os filhos, manutenção de um carro (que por conta dessa correria transforma-se em instrumento de trabalho,assim como o celular), computador com acesso à Internet para se atualizar (impossível na maioria dos locais de trabalho), não é exatamente a procura da riqueza, mas do sustento pessoal, familiar e mesmo das condições para exercer a medicina, já que não se oferecem carros e celulares como bonificações para os médicos, como em outras áreas…
E aí é que está o problema com o PL: bem intencionado, ao que parece. Mas como aplicar o mesmo? O médico brasileiro não trabalha em um lugar apenas, e se o fizer ganhará menos que muita gente pode imaginar. Basta perguntar a um médico seu salário ou quanto um convênio paga por uma consulta.
Caso aprovado, se já há dificuldades em se conseguir plantonistas devido ao local de trabalho e remuneração, simplesmente dias e dias vão ficar a descoberto, especialmente pela péssima distribuição dos médicos no país, concentrados no Sul-Sudeste. E será que esse PL contempla o chamado estado de disponibilidade, também conhecido como plantão de retaguarda ou à distância?
Várias especialidades médicas não necessárias no cotidiano de um pronto-socorro, por exemplo, e os hospitais fazem uma escala de referência para várias áreas da medicina, com os médicos à disposição para chegar rapidamente ao local, caso convocados. Mas eles podem até estar em casa, que pode ser ao lado de seu local de trabalho. Isso também pode ser considerado exaustão?
Resumindo: há que se concordar com a limitação das horas de trabalho do médico, como nos exemplos citados de países do exterior. Mas enquanto o Brasil não se tornar a Dinamarca do Sul, mesmo com toda a boa intenção, serão os pacientes que poderão sofrer com falta de médicos, e os mesmos com menor possibilidade de trabalhar, por necessidade, não por serem argentários. País difícil o nosso…
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Celio Levyman, 47 anos, é formado em medicina pela Faculdade de Ciências Médicas de Santos. É mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Foi conselheiro e diretor do Departamento Jurídico do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.