SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Noção de Ordem Jurídica; 3 A Lição de Eros Roberto Grau; 4 Conflitos na Concretização; 5 A Retórica (Ponderação) como Critério Revelador da Norma e da Solução dos Conflitos Normativos e Principiológicos; 6 A Concretização da Norma Segundo o Princípio da Proporcionalidade ou Razoabilidade; 7 Regras de Competência e de Modificações de Competência na Esfera Processual; 8 Conexão e Competência Absoluta ou Privilegiada; 9 A Conexão e as Ações de Consumo; 10 Conclusões.
1 Introdução
Debate-se, no momento, na justiça brasileira, um caso de considerável repercussão envolvendo milhares de ações singulares e dezenas de ações coletivas e gerando diversos conflitos de competência entre juízes e tribunais, tanto na esfera estadual como federal e até nos juizados especiais. Em todas as causas, porém, a questão deduzida em juízo é unicamente de direito e envolve um único tema: a legalidade, ou não, da cobrança, pelas concessionárias de telefonia fixa, da tarifa de assinatura autorizada pelo contrato firmado com a Anatel.
Duas correntes estão se formando no seio do Superior Tribunal de Justiça: a) uma que nega a possibilidade de reunião das ações singulares com as coletivas, ao argumento de que não há litispendência entre elas e aos consumidores estaria assegurado o direito de agir com independência fora dos juízos coletivos; e b) outra não vê obstáculo intransponível no caso à aplicação da regra geral de reunião das ações conexas, desde que não resulte prejuízo efetivo para os consumidores, individualmente.
De início, deve-se ponderar que a ausência de litispendência não tem nenhuma repercussão sobre a reunião de processos, já que a autorização do CPC para a medida se baseia no pressuposto da conexão, que por sua vez se define em função de questões comuns nos diversos processos, e não com base na configuração técnica da litispendência (CPC, arts. 102 a 105).
Argumenta-se, ainda, contra a aplicação das regras da conexão ao atual conflito, com a circunstância de que estas estariam restritas ao campo da competência territorial (relativa), enquanto o foro das ações singulares de consumo se submeteria a normas de ordem pública, criando competências privilegiadas, muitas vezes tratadas como absolutas.
É preciso levar em conta, de fato, que as regras traçadas literalmente pelo Código de Processo Civil, acerca da modificação de competência por força de conexão de causas, restringem-se aos problemas surgidos em torno das competências territoriais e, portanto, relativas.
Para as competências absolutas e para aquelas que possam ser qualificadas como privilegiadas, nem sempre se encontra regra literal a aplicar. A solução há, pois, de ser buscada junto aos princípios, já que não é racional concluir que o fenômeno da conexão, por ter sido expressamente regulado para a competência relativa, não possa, de forma alguma, acontecer com a absoluta ou com as privilegiadas.
A análise a que a seguir se procederá levará em conta que as normas jurídicas, na atual formulação da Ciência do Direito (após sua ruptura com o positivismo) não mais se confundem com as leis, e abrangem tanto as regras preceptivas quanto os princípios. E, além de tudo, o trabalho legislativo nunca pode ser visto como algo acabado e definitivo. Reclama sempre uma atividade complementar do aplicador que desempenha, ao lado da interpretação, um labor criativo, de sorte que os enunciados aplicáveis aos problemas da vida concreta são produtos individualizáveis, e efetivamente individualizados, segundo as necessidades da cultura do meio em que as normas (regras e princípios) irão incidir.
Havendo regras legais, a aplicar, a operação se torna fácil, dado o conteúdo determinado do preceito normativo. Não havendo norma enunciada em preceito específico, nem por isso o ordenamento jurídico deixará de atuar 1, já que os princípios podem, por uma forma de concretização, tornar-se normas de dever ser, tanto como as regras preceptivas.
2 Noção de Ordem Jurídica
Os interesses em torno dos quais gira a ordem jurídica (ou o Direito) constituem não apenas direitos individuais, mas, também, bens coletivos dotados de força própria. Observa Alexy, diante dessa realidade, que a experiência mostra a freqüente ocorrência de colisão entre uns e outros, cuja solução deve ser buscada por meio da ponderação 2.
Com efeito, a ordem jurídica não se resume a um sistema homogêneo de normas. Em seu bojo instalam-se, além das normas propriamente ditas, os princípios e vários elementos normativos e não-normativos, todos intervinculados a regras estruturais e a valores ideológicos, que nunca se estabilizam e, ao contrário, sujeitam-se a constantes oscilações e mutações 3.
Só se faz realmente ciência do Direito quando racional e honestamente se empenha o jurista na análise metódica do universo jurídico, que obviamente não se resume à apuração dos textos legislados. Sem a visão metódica do sistema, corre-se o risco de reduzir-se o direito a “papel velho sob as penas do legislador” 4.
O direito, na sua visão moderna, não é uma ciência desenvolvida sobre “textos normativos”; é uma ciência de “normas”, no dizer de Friederich Müller. É certo, porém, que “norma não é apenas o texto codificado da norma, que, muito pelo contrário, aparece em cena como dado de entrada do processo denominado concretização, que por sua vez está sujeito à pressão da decisão e deve ser realizado a serviço de uma decisão jurídica exigida. A ciência jurídica pode ser caracterizada de forma ao menos igualmente pertinente como ciência da decisão” 5.
Trabalhando com os textos legislados e com todos os demais elementos que influenciam sobre a concretização do Direito, chega-se, diante dos casos e conflitos da convivência social, à norma efetiva, que os operadores do direito fixam por meio de enunciados. Não é só o texto legal que influi na concretização do Direito, pois o enunciado (em que a norma se manifesta) assume significado produzido tanto por dados de linguagem, como por dados reais (empíricos e não lingüísticos). O significado atual da norma sofre um processo de comunicação que depende do “entorno lingüístico”, mas também de “numerosos fatores contextuais e situacionais”, os quais “desde sempre se encontram incluídos no processo de produção de enunciados” 6.
Em outros termos, a concepção pós-positivista da teoria do Direito vê a norma jurídica não como o texto já contido no código legal. “Este contém apenas formas preliminares”, ou seja, “os textos das normas”. Estes, por sua vez, se diferenciam sistematicamente da norma jurídica, a ser primeiramente produzida, i. e., “trazida para fora” em cada processo individual de decisão jurídica 7.
A norma, sujeita sempre a um processo concreto de enunciação, não pode ser pesquisada fora do contexto sobre o qual haverá de atuar. “O âmbito da norma pertence constitutivamente a ela. A norma jurídica se transforma assim em conceito complexo, composto por programa da norma e âmbito da norma. E ‘atividade concretizante’ não é mais sinônimo de tornar mais concreta uma norma jurídica genérica que já estaria contida no código legal; ao contrário, significa, a partir de uma ótica e reflexão realistas, construção da norma jurídica no caso individual a ser decidido, sendo que os elementos do trabalho textual se tornam crescentemente ‘mais concretos’ de uma fase a outra” 8.
O trabalho do jurista foge do exame restrito do texto da norma, para atuar sobre o eixo norma-caso, de forma realista, envolvendo texto da “narrativa do caso”, texto do “conjunto de fatos” profissionalmente reformulado, textos das “normas na codificação”, textos do “programa da norma e do âmbito da norma”, texto da “norma jurídica” e da “norma de decisão (parte dispositiva da decisão)” 9.
Naturalmente, o jurista não age, na concretização da norma, sem atentar para uma necessária hierarquia entre os elementos manuseados, caso haja conflito entre eles, a qual começa pela supremacia daqueles que decorrem da ordem constitucional e daqueles que se colocam mais próximos do texto da norma.
“Compreendida paradigmaticamente em novos termos, a norma jurídica não é apenas o texto lingüístico primacial, mas um modelo ordenador materialmente definido. E a normatividade não é nenhuma propriedade substancial dos textos no código legal, mas um processo efetivo, temporalmente estendido, cientificamente estruturável: a saber, o efeito dinâmico da norma jurídica, que influi na realidade que lhe deve ser atribuída (normatividade concreta) e que é influenciada por essa mesma realidade (normatividade materialmente determinada)” 10.
A norma jurídica não dorme placidamente nos textos legislados. Há de ser trabalhada e concretizada pelo operador do direito. Concretizar, para a mais atual ciência do Direito, “não significa aqui, portanto, à maneira do positivismo antigo, interpretar, aplicar, subsumir silogisticamente e inferir. E também não, como no positivismo sistematizado da última fase de Kelsen, ‘individualizar’ uma norma jurídica genérica codificada na direção do caso ‘individual’ mais restrito. Muito pelo contrário, ‘concretizar’ significa: produzir, diante da provocação pelo caso de conflito social, que exige solução jurídica, a norma jurídica defensável para esse caso no quadro de uma democracia e de um Estado de Direito. Para tal fim existem dados de entrada – o caso e os ‘pertinentes’ textos de norma – e meios de trabalho” 11, como o âmbito material e o âmbito da norma (fatores de concretização: históricos e sistemáticos, genéticos e de política constitucional) 12.
3 A Lição de Eros Roberto Grau
O intérprete, no campo do Direito, como adverte Eros Roberto Grau, “produz a norma jurídica” de que necessita para solucionar casos concretos (reais ou imaginados). Não se limita a interpretar (no sentido de compreender) os textos normativos, mas também procura compreender (interpretar) os fatos. Afinal, a operação conclui por uma decisão, na qual se exprime “a norma de decisão” 13.
Esclarece Eros Roberto Grau:
“O fato é que a norma é construída, pelo intérprete, no decorrer do processo de concretização do direito. O texto, preceito jurídico, é, como diz Friedrich Müller, matéria que precisa ser ‘trabalhada’.
Partindo do texto da norma (e dos fatos), alcançamos a norma jurídica, para então caminharmos até a norma de decisão, aquela que confere solução ao caso. Somente então se dá a concretização do direito. Concretizá-lo é produzir normas jurídicas gerais nos quadros de solução de casos determinados (Müller)” 14.
Daí a conclusão de que:
“A concretização implica num caminhar do texto da norma para a norma concreta (a forma jurídica), que não é ainda, todavia, o destino a ser alcançado; a concretização somente se realiza em sua plenitude no passo seguinte, quando é definida a norma de decisão, apta a dar solução ao conflito que consubstancia o caso concreto. Por isso sustento que interpretação e concretização se superpõem. Inexiste, hoje, interpretação do direito sem concretização; esta é a derradeira etapa daquela” 15.
4 Conflitos na Concretização
Entre normas não há conflito que perdure, uma vez que a eficácia de uma implica a invalidação da outra que com ela entre em colisão. É entre os princípios que os bens coletivos podem gerar conflitos dos quais não resulta invalidade, mas, apenas uma ordem de preferência. Aplica-se o critério da proporcionalidade para definir in concreto qual deles terá precedência ou de que maneira ambos serão harmonizados.
A ordem jurídica, como já se afirmou, não gera apenas direitos individuais, mas também produz bens coletivos, que representam situações de vantagem proporcionadas a toda comunidade de forma indivisível. Exemplo típico de bem coletivo é a segurança jurídica, é também o devido processo legal, bem como a forma republicana do Estado e todas as demais tutelas proporcionadas indivisivelmente à comunidade.
Entre bens coletivos e direitos individuais, a precedência prima facie é em favor dos direitos individuais, porque a normatização social no estado democrático de direito leva em conta antes de tudo, o indivíduo. Isto, porém, não implica que as posições dos indivíduos não possam ser eliminadas ou restringidas em favor de bens coletivos, mas sim que isto se dê quando seja possível uma justificação adequada ou suficiente. Ou seja: não há sempre e invariavelmente uma precedência substancial dos direitos individuais sobre os interesses coletivos. A precedência dá-se apenas em regra, mas não de forma absoluta e inexorável.
Explica Alexy:
“La precedencia prima facie no excluye desplazamiento de derechos individuales por parte de bienes colectivos. Exige simplesmente que para la solucion requerida por los bienes colectivos existan razones más fuertes que para la requerida por los derechos individuales” 16.
É, segundo Alexy, por meio da ponderação que se define a colisão entre “direito individual” e “bens coletivos com força própria” 17. Desde, portanto, que haja uma justificativa séria para valorizar o bem coletivo, este é que prevalecerá no cotejo com o direito individual.
5 A Retórica (Ponderação) como Critério Revelador da Norma e da Solução dos Conflitos Normativos e Principiológicos
A partir de Viehweg, com sua tópica e jurisprudência, abriram-se novos rumos e horizontes para a Ciência do Direito contemporâneo. O conhecimento do direito deslocou-se das posições formalistas do positivismo para o terreno da “nova retórica”, onde se abrem as “vias argumentativas”. A palavra de ordem entre os juristas passou a ser “pensar e repensar o problema, vinculando, como nunca talvez se tenha feito, as soluções normativas à praxis e à realidade” 18.
Enriquecida a tópica (técnica de conceber o direito a partir da discussão dos problemas de revelação e concretização do direito) da metodologia moderna da ciência do direito forjado pela doutrina alemã, foi possível definir-se “uma nova fundamentação do direito”, no dizer de Bonavides.
A realidade de onde o jurista extrai dialeticamente a norma não é apenas o texto do legislador. Engloba necessariamente uma perspectiva unitária de forma e substância que proporciona uma compreensão integrativa do fenômeno normativo. A ordem jurídica é dinâmica, aberta, permeável, mutável e evolutiva. O jurista não pode se restringir a um modelo estático na concretização. Deve agir de modo a perceber toda a complexidade e dinâmica do processo normativo.
Ao procurar a norma a ser aplicada ao caso concreto (e é em função da realidade e não da pura teoria que o direito se manifesta), a primeira imposição da realidade é que a ordem jurídica não é homogênea: nela figuram regras configuradoras de um amplo projeto ou programa de organização da convivência social. Neste programa convivem normas ora preceptivas ora organizacionais (isto é, normas que criam direitos individuais e normas que estruturam o funcionamento do sistema jurídico), e os princípios (isto é, os critérios gerais de optimização do ordenamento, que tanto podem atuar como fator de definição do melhor sentido a ser dado às normas em sentido restrito, como podem funcionar com força normativa, se não há regra preceptiva explícita a aplicar) 19.
A atual Constituição democrática da Alemanha fala, por exemplo, na sujeição da atividade judicial à “lei e ao direito”, rechaçando a visão estreita do positivismo acerca do princípio da legalidade. Deixa evidente que “o direito não é idêntico à totalidade das leis escritas” 20, e que se não é correto que os tribunais estejam autorizados a julgar contra legem, estão certamente credenciados a não aplicar leis editadas com infração aos princípios constitucionais hierarquicamente superiores às normas comuns.
O mais importante, a se extrair da constatação de que há no direito algo mais do que a lei, é que à atividade judicial se reconhece uma “função criadora” e não apenas repetidora do direito escrito. A relevância maior dessa maneira filosófica de compreender o Direito se manifesta nas situações em que os textos disponíveis são de sentido impreciso ou duvidoso. As regras metodológicas devem atuar, então, para desvendar o sentido e alcance dessas normas. Podem, no entanto, conduzir a resultados múltiplos. Ao operador do direito, compete, então, proceder à concretização da norma de maneira criativa procurando fazê-lo com recurso a meios e fontes que ultrapassem o simples texto legal 21. A decisão do caso concreto não extrapolará a ordem jurídica, mas também não se reduzirá à lei. Nos limites ditados pelas fontes do Direito, criará a norma concreta, através de “critério objetivo, idêntico para todos”, equivalente a verdadeiro ato de “legislar dentro do espírito do sistema”. O aplicador do direito, utlizando-se da jurisdição procede a “juízos de valor” em “conformidade ao sistema” 22.
A função dos princípios é optimizar o sistema 23; não é o de superar a norma 24. Em regra, o princípio gera bem coletivo (situação de interesse geral ou coletivo), o que nem sempre equivale a situação revogadora de direitos individuais conflitantes. A norma individual diferente do princípio geral indica apenas que ao legislador pareceu, in casu, necessário ou conveniente excluir determinando interesse do alcance do princípio. Nem sempre o bem coletivo prevalece sobre o direito individual. Se o intuito do legislador é tutelar o bem coletivo com preferência sobre o direito individual isto deve ficar claro dentro do sistema e deve apoiar-se em justificações racionais aceitáveis dentro da visão sistemática e concreta do ordenamento jurídico.
6 A Concretização da Norma Segundo o Princípio da Proporcionalidade ou Razoabilidade
Segundo remansosa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, “todos os atos emanados do Poder Público estão necessariamente sujeitos, para efeito de sua validade material, à indeclinável observância de padrões mínimos de razoabilidade” 25. Ou seja:
“As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (…)
A exigência de razoabilidade qualifica-se como parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais” (grifos do original) 26.
O princípio da razoabilidade funda-se na necessidade de que o exercício da autoridade pública – em qualquer de suas manifestações – seja contido por coeficientes racionais capazes de detectar e coibir eventuais abusos de poder. A formulação e aplicação da lei, não pode ignorar o princípio da proporcionalidade, que é “essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, a garantia do due process of law” 27.
Para que a concretização de uma norma jurídica e sua aplicação prática se dêem em harmonia com a proporcionalidade e razoabilidade exigidas pelo Estado Democrático de Direito é preciso que o operador do direito (hermeneuta e aplicador) busque encontrar o sentido compatível com as exigências da validade jurídico-material das manifestações de poder do Estado. Para tanto, a análise será feita em função de seu conteúdo intrínseco, o qual passa a depender, essencialmente, da observância de determinados requisitos que pressupõem “não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para consecução dos objetivos pretendidos (…) e a necessidade de sua utilização (…)”, de tal modo que “um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (…)” 28.
Gilmar Ferreira Mendes, estudioso do tema em exame, registra que, no atual Direito Constitucional alemão onde, como entre nós, repelem-se todas as manifestações do excesso de poder legislativo, por meio da imposição do princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, tais princípios assumem “qualidade de norma constitucional não escrita, derivada do Estado de Direito” 29.
Tendo em conta o clássico princípio da interpretação das leis conforme a Constituição – segundo o qual o intérprete deverá definir o sentido e alcance da norma de maneira a harmonizá-lo com a Constituição 30 – o recurso aos critérios de proporcionalidade e razoabilidade, por sua essencialidade na ordem constitucional, torna-se instrumento não só para aferir a validade da norma infraconstitucional, como para interpretá-la ou concretizá-la. É claro que, sendo possível encontrar-se, segundo as regras típicas da hermenêutica, mais de um sentido ou várias aplicações para uma lei, hão de prevalecer apenas o sentido e a aplicação que sejam compatíveis com a Constituição e os princípios que dela decorrem 31.
Fora do sentido harmonizável com a ordem constitucional, a lei ou será totalmente inválida, – porque nenhum ato de poder no Estado Democrático de Direito pode rebelar contra a supremacia da Constituição – ou sofrerá um processo de redução hexegética, que preservará apenas o sentido compatível com a Constituição.
Mesmo fora do cotejo com a Constituição, a hermenêutica na esfera infraconstitucional continua atrelada ao princípio racional da proporcionalidade e razoabilidade, sob a inspiração do critério da denominada interpretação teleológica, consagrada, em larga escala pelo art. 5º da Lei de Introdução 32. Com efeito, incumbe ao intérprete procurar “o fim, a ratio do preceito normativo, para a partir dele determinar o seu sentido, ou seja, o resultado que ela precisa alcançar com sua aplicação” 33.
Nessa técnica, o intérprete deve agir visando a captar “o sentido normativo”, por meio da identificação dos “fins para os quais se elaborou a norma”, à luz das regras da técnica lógica próprias para as operações jurídicas. Essa técnica, levando em conta que o escopo e a razão da lei são indicadas pelas exigências sociais, conduzirá à compreensão de que “o fim prático da norma coincide com o fim apontado pelas exigências sociais (fim social), tendo-se em vista o bem comum” 34, como quer o art. 5º da Lei de Introdução.
A interpretação de qualquer enunciado de Direito não pode se restringir ao objetivo de simplesmente tornar claro o texto. Tem ela de “revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta” 35.
Para desempenho dessa missão, o intérprete não encontra instrumental suficiente na lógica formal e nos raciocínios do tipo matemático. Adverte Recaséns Siches:
“… a lógica tradicional ou físico-matemática não é adequada para tratar a vida humana nem seus problemas práticos; por conseguinte, tampouco, para os jurídicos, entre os quais figura a interpretação do direito”.
E continua o filósofo do direito contemporâneo:
“Para tudo quanto pertença a nossa humana existência – incluindo a prática do direito – há que se empregar um tipo diferente de logos, que tem tanta dignidade como a lógica tradicional: há que se utilizar do logos de lo humano, a lógica do razoável, a qual é razão, tão razão como a lógica tradicional, porém uma razão impregnada de pontos de vista estimativos, de critérios de valoração, de pautas axiológicas” 36.
A técnica da proporcionalidade e razoabilidade, portanto, sempre se apresentará como instrumento importante para fazer com que a interpretação de qualquer tipo de norma se fixe nos limites de sua natural finalidade, censurando os desvios e excessos desnaturadores de seus reais objetivos.
Com o correto emprego do critério interpretativo fundado na razoabilidade, o operador da lei impede a desfunção social de sua aplicação destorcida e abusiva sobre situações fáticas que, na verdade, não estariam alcançadas por seu real objetivo.
Em qualquer situação, portanto, os critérios da razoabilidade e proporcionalidade são importantes para compreender os objetivos da norma e equacioná-los com os direitos individuais e com os interesses sociais (bens coletivos), de modo a não prejudicar ilegitimamente nem a esfera privada nem a pública de atuação da lei.
7 Regras de Competência e de Modificações de Competência na Esfera Processual
A garantia do devido processo legal – e em seu bojo a figura do juiz natural – configura sem dúvida, um bem coletivo, de supremo destaque na organização constitucional do Estado de Direito Democrático.
Em função dessa garantia, todos os indivíduos, indistintamente, quando recorrem à tutela jurisdicional, têm assegurado o direito de ter sua pretensão apreciada e julgada pelo juiz competente, neutro e confiável (juiz natural). Na organização da competência, todavia, o legislador ora leva em conta interesses privados, ora interesses públicos. Assim, ao dividir uma comarca em diversos juízos (varas), com jurisdição sobre questões de natureza diferente, as normas legais inspiram-se em interesse público da jurisdição, gerando situações identificadoras de bem coletivo. Quando, porém, determinam competência de foro, visam geralmente a facilitar a defesa do demandado, ou seja, tutelam apenas interesses ou conveniências individuais.
Daí porque as competências ratione materiae se apresentam como inderrogáveis e o mesmo não acontece com as territoriais. Pelo interesse público aquelas são absolutas e estas, relativas.
Por outro lado, o Código de Processo Civil expressamente admite que a competência relativa (territorial), fixada com base no foro da parte (ora do autor, ora do réu), ou no foro do fato objeto do litígio, possa ser alterada, em prejuízo da definição legal, tanto por outras regras do Código como por vontade das partes.
As alterações voluntárias decorrem do foro de eleição (fixado por cláusula de contrato) ou da ausência de manejo da exceção de incompetência relativa no prazo legal (arts. 111 e 114 37 do CPC).
Dentre os diversos casos de alteração legal de competência, sobressai a conexão:
“A competência em razão do valor e do território, poderá modificar-se pela conexão ou continência…” (art. 102).
“Havendo conexão ou continência, o juiz, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, pode ordenar a reunião de ações propostas em separado, a fim de que sejam decididas simultaneamente” (art. 105).
Qual o fundamento (ratio) da regra que autoriza a modificação de competência por conexão? É, além da economia processual, sobretudo a preocupação de evitar o risco de decisões conflitantes sobre a mesma questão apreciada em processos diferentes. Esse inconveniente é nocivo ao nome e ao prestígio da jurisdição estatal. Daí porque, embora versando o art. 105 sobre competência relativa, dispõe ele sobre matéria de ordem pública, já que ligada ao interesse da jurisdição e não do litigante.
Às vezes, fala-se em mera faculdade do juiz e não em obrigação de promover a reunião das ações conexas, ao argumento de que o art. 105 usa o verbo poder e não dever para disciplinar tal cumulação objetiva de processos. No entanto, só se entende como possível uma certa discricionariedade porque o fenômeno da conexão nem sempre gera o risco de decisões conflitantes. É que a comunhão de causas pode acontecer por meio de elementos mais ou menos remotos, e assim, mesmo havendo elementos de intervinculação não há questões comuns nos diversos processos cuja solução provoque o risco de conflito de decisões.
Quando, porém, a causa de pedir envolve o mesmo ponto controvertido, é irrecusável o perigo de os juízes diferentes chegarem a conclusões diversas. Nessa hipótese, a conexão torna obrigatório o julgamento comum e o juiz não terá a faculdade de reunir, ou não, as causas conexas; terá o dever legal de assim agir, até mesmo de ofício, como prevê o art. 105 do CPC 38.
8 Conexão e Competência Absoluta ou Privilegiada
Em virtude de a conexão estar disciplinada pelo Código de Processo Civil apenas no campo da competência relativa, costuma-se afirmar sua inaplicabilidade às competências absolutas, como a da Justiça Federal, que seriam improrrogáveis 39.
Decerto, a competência absoluta não pode ser deslocada para o juiz que não a tem para a causa. Não há embaraço, todavia, para que a causa de competência relativa seja conectada com outra de competência absoluta, desde que não reste prejudicada a competência absoluta, obviamente. Por exemplo: a Justiça Federal não tem ordinariamente competência para julgar o ato ilícito praticado por particular. Mas se este estava a serviço do Poder Público Federal, a vítima pode reunir, por conexão, pedidos (ações), indenizatórias voltados tanto contra a União como contra a empresa por esta contratada. O mesmo acontece com o funcionário causador direto do dano a particular: a ação ajuizada na Justiça Federal pode cumular pedidos contra a União e seu agente. É, ainda, o que acontece com o contrato de seguro, quando a Administração demanda indenização por ato culposo praticado por um particular e este, por sua vez, propõe ação regressiva incidental contra a seguradora.
Esse fenômeno de atração da causa conexa pelo juízo de competência absoluta foi analisado por Andrioli, para quem, se o juiz da primeira causa for absolutamente incompetente para a segunda, a prorrogação deverá ser feita para o juiz desta e não daquela. Haverá, então, uma inversão no critério cronológico de determinação da competência comum 40.
Se há alguma resistência à conexão entre feitos que originariamente correriam na justiça estadual e mais tarde viessem a ser deslocados para a justiça federal, nenhuma objeção se pode fazer às prorrogações acontecidas em processos que naturalmente se comportam na competência dos diversos órgãos da Justiça Federal.
Se à Justiça Federal compete processar ação civil pública sobre determinada matéria e se outra ação de igual natureza corre perante a justiça estadual, não há dúvida alguma de que, por conexão, não há de pensar-se na reunião perante o juiz estadual, mas nada impedirá que tal se dê perante o juiz federal.
Os mesmos fundamentos que servem para justificar a conexão diante de competências absolutas e relativas, prestam-se também para autorizar o desvio de causas aforadas segundo competência privilegiada, quando sofrem os efeitos de ordem pública provocadores da reunião de causas conexas. Em outros termos, o fato de um foro ser definido em lei com o propósito de privilegiar certos demandantes não o torna absoluto e não impede que sofra a influência das regras gerais da conexão e continência.
9 A Conexão e as Ações de Consumo
A dúvida levantada diz respeito à reunião de ações singulares de consumidores com ações coletivas. Resiste-se à reunião porque isto prejudicaria o direito individual do consumidor de demandar no foro de seu próprio domicílio (Código de Defesa do Consumidor, art. 101, I), e de permanecer fora do alcance do juízo coletivo (idem, art. 104).
Cumpre, porém, ter em conta que, embora regulada por norma de ordem pública, a competência estabelecida para a ação singular de consumo é tipicamente territorial e, por isso, não pode ser qualificada de absoluta. Nesse sentido, é claríssima a autorizada lição de Kazuo Watanabe, um dos autores do projeto que se converteu no atual Código de Defesa do Consumidor:
“O foro do domicílio do autor é uma regra que beneficia o consumidor, dentro da orientação fixada no inc. VII do art. 6º do Código, de facilitar o acesso aos órgãos judiciários. Cuida-se, porém, de opção dada ao consumidor, que dela poderá abrir mão para, em benefício do réu, eleger a regra geral, que é a do domicílio do demandado (art. 94, CPC)” 41.
A fixação da regra que privilegia a opção do consumidor para demandar em seu próprio foro – que nem sequer é exclusiva da lei consumerista, pois, em matéria de legislação por dano vigora, também, nas ações comuns reguladas pelo CPC (art. 100, parágrafo único) – não muda a natureza da competência, que continua desenganadamente a ser territorial e, por isso mesmo, relativa 42. Segundo Arruda Alvim, a regra do art. 101, I, do CDC, não é, em si, nem mesmo uma regra de ordem pública, “no sentido de que, querendo esse autor, poderá propor a ação no domicílio do fornecedor de produtos ou de serviços”. Só se lhe reconhece caráter de ordem pública “para o fim de inadmitir-se que a seu respeito haja eleição de foro” 43.
Na mesma linha é o magistério de Sálvio de Figueiredo Teixeira, que também ensina estar a competência prevista no art. 101, I, do CDC, enquadrada “no critério territorial, sendo relativa portanto” e submetendo-se, enfim, à disciplina de prorrogação e modificação prevista no CPC para a espécie 44.
Diante desse quadro, ainda que se adotasse uma supremacia para a regra do art. 101, I, do CDC, tornando-a geradora de um privilégio de ordem pública para o consumidor, há de ter-se em conta que com a intervenção da União ou de alguma autarquia federal, não haverá como manter a ação singular no foro estadual do domicílio do autor. Aí, sim, interferirá uma regra de ordem pública que arrastará o feito para a Justiça Federal, de maneira inexorável, porque comandada por preceito constitucional, instituidor de competência absoluta (CF, art. 109, I), e não mais relativa, como aquela estatuída pelo CDC 45.
Uma vez deslocado o feito singular de seu foro originário e vindo a cair dentro do campo único da Justiça Federal não representará mais o art. 101, I, do CDC, obstáculo algum à reunião dele com as ações coletivas que, sobre o mesmo objeto já tramitam perante a referida Justiça. Aí, simplesmente, operará a regra do art. 105 do CPC, devendo unificarem-se ações coletivas e singulares para que o julgamento de todas se dê numa só sentença.
Restariam as ações singulares em que a Anatel não interferiu ou não pôde interferir (como por exemplo, as que correm pelos Juizados Especiais). Mas, ainda nesses casos, e ad argumentandum, mesmo que se considerasse absoluta a competência fixada em benefício do consumidor nas ações singulares, razões militariam em prol da reunião obrigatória das milhares de ações que envolvem uma mesmíssima questão de interesse nacional e federal, pondo em crise um serviço público federal controlado por ente integrante da Administração Pública da União (é esta a hipótese da Anatel e dos contratos por ela firmados com as concessionárias, a que se aludiu na introdução desse estudo).
Não se pode, à evidência, pretender colocar num pedestal supremo interesse individual dos consumidores, a ponto de subjugar notório interesse da gestão de serviço público essencial, e até mesmo de ignorar o interesse e a importância do papel da jurisdição na solução da crise retratada nas peculiaridades do caso sub examine.
Com efeito, a natureza das competências em conflito (absolutas, relativas ou privilegiadas) não diminuiria a relevância do problema e a necessidade de solucioná-lo segundo regras ditadas pelo interesse público e o bem comum. A gravidade da crise processual não poderia ser, segundo penso, enfrentada de maneira direta e inflexível a partir simplesmente da análise das regras de manutenção e alteração expressamente traçadas pelo CPC.
Na verdade, não há regra que tenha disciplinado de forma direta e detalhada um conflito complexo como o ora analisado. Nem por isso pode o aplicador do Direito optar pela solução cômoda da afirmação da inviabilidade de reunião das ações apenas em função da suposta lacuna legal e do privilégio com que os autores de algumas das ações contam na escolha do respectivo foro. Sua solução há de ser procurada à luz dos critérios modernos de concreção e ponderação, para fixar norma concreta que acaso tenha ficado aparentemente à margem dos textos normativos disponíveis.
O direito – repita-se – não se limita ao que os códigos legais estabelecem de forma expressa. Há, segundo Müller e Alexy, o âmbito do texto da norma e o âmbito material sobre que a norma deve atuar. A realidade exerce influência relevante sobre a concretização da norma, especialmente quando se atua à base de princípios (bens de interesse público ou coletivo) e a lei não forneça regras expressas e exaustivas para a hipótese em jogo.
Nessa ordem de idéias, a conexão, mesmo estando regulada expressamente com vistas às competências relativas, justifica-se por razões que notoriamente não se ligam a interesses privados, mas que se preocupam com bens coletivos, quais sejam, a economia processual e a prevenção de risco de conflito de julgamento.
Se ordinariamente o interesse individual pode se apoiar numa regra de competência que assume até mesmo o caráter de competência absoluta ou privilegiada, não pode essa circunstância impedir que a conexão, pelas peculiaridades do caso concreto, seja enfocada e acolhida por fundamentos outros distintos daqueles que atuaram na fixação da regra individual de competência e que, agora, colidem com princípios de ordem pública capazes de justificar o deslocamento das ações singulares para outro juízo.
A regra do foro do domicílio do consumidor e a opção pelo Juizado Especial levam em conta o que ordinariamente acontece e se destinam a facilitar a defesa de seus direitos em juízo, os quais podem ser tratados autonomamente mesmo em face da existência de ação coletiva sobre o mesmo tipo de evento. O interesse, portanto, é eminentemente individual, embora tratado em lei de ordem pública.
O caso concreto ora cogitado, porém, gira em torno de um conflito inegavelmente nacional e tanto as ações coletivas já reunidas, como as milhares de ações singulares já propostas não discutem fatos, mas uma questão eminentemente de direito, de sorte que não havendo instrução probatória a realizar, qualquer juiz que tenha de julgar qualquer das milhares de ações terá simplesmente de pronunciar-se sobre a mesma e única tese de direito: a licitude, ou não, da cobrança da assinatura dos telefones fixos, autorizada a todas a concessionárias pelos contratos firmados com a autoridade nacional competente (a Anatel).
Trata-se de um conflito jurídico único e nacional. Não é lógico e muito menos razoável, dentro da metodologia contemporânea do direito, impor uma concretização de norma para o mesmo e único conflito que leve a Justiça brasileira a processar e julgar repetidamente, por mais de cem mil vezes (e a prosseguirem as demandas individuais, certamente se chegará aos milhões de causas, porque mais de 40 milhões de assinaturas de telefones fixos existem no País), a mesma demanda sob o mesmíssimo fundamento jurídico.
Impende considerar, ainda, que a reunião das ações singulares e coletivas não representará, na espécie, prejuízo algum para as pretensões individuais dos consumidores. Primeiro, porque com a intervenção da Anatel, a grande maioria das ações singulares terá de ser deslocada do foro do domicílio do autor para se submeter à competência constitucional da Justiça Federal; segundo, porque, versando as causas sobre uma questão puramente de direito, não há necessidade de instrução probatória, nem qualquer outra exigência que o consumidor tivesse melhor condição de realizar no procedimento individual. Os feitos pendentes tendem, maciçamente, a julgamento antecipado de mérito, proferível, portanto, logo após a litiscontestação, o que, como é óbvio, minimiza o prejuízo que se poderia imaginar decorrente do deslocamento de um juízo a outro, dentro da justiça federal.
Num momento em que se acaba de incluir entre os direitos fundamentais declarados pela Constituição, o direito ao julgamento das causas em prazo razoável e à adoção de medidas efetivas de aceleração do julgamento dos processos (CF, art. 5º, inc. LXXVIII, com a redação da EC nº 45, de 08.12.04), soa absurdo manter a tramitação concomitante, em juízos distintos, de mais de cem mil ações exatamente iguais envolvendo um único problema cujo caráter nacional é impossível negar.
Para se tutelar apenas o interesse individual dos consumidores, e insistir em não se reconhecer o cabimento da reunião das ações conexas com as ações coletivas já agrupadas na Justiça Federal, estar-se-á anulando todo o interesse público envolvido na busca de um funcionamento melhor da Justiça nacional. A avalanche de causas, que só tenderá a crescer até atingir níveis jamais imaginados, resultará num lamentável incremento do já notório atravancamento dos serviços judiciários, afetando todos os níveis da Justiça brasileira, desde os juízos de 1º grau das justiças estadual e federal, dos juizados especiais, tribunais de justiça e tribunais regionais federais, até o Superior Tribunal de Justiça, caudatário final dos milhares, senão, dos milhões de processos, que fatalmente terão franquia para tramitar livremente por todas as instâncias da Justiça nacional.
Não se trata de reconhecer apenas o exagerado e intolerável ônus de defenderem-se as concessionárias e a Anatel de um volume inusitado de causas esparramadas por todos os quadrantes do País – o que já justificaria, por si só, uma providência capaz de obviar o inadmissível ônus ao acesso à tutela jurisdicional – mas de reconhecer inconvenientes muito mais relevantes aos interesses da própria jurisdição. À evidência, não há como não ver os gravames seríssimos que a não aplicação dos princípios de ordem pública da conexão estariam a acarretar, no caso concreto, aos interesses públicos dos serviços judiciários e da Administração Pública no setor da telefonia.
Como manter uma gestão racional de um serviço público único com feitio nacional prestado a dezenas de milhões de usuários, submetidos ao controle unificado de um só órgão federal, se a todo instante decisões de causas individuais podem estar interferindo no contrato e no preço do serviço de telefonia? É impensável o caos que restará implantado na administração contábil e econômica do importantíssimo serviço público pela só possibilidade de determinar, ao alvedrio de cada um dos milhares de juízes do País, os assinantes que devem e os que não devem se sujeitar ao preço fixo da assinatura telefônica.
A norma de competência específica para o incomum problema criado pela controvérsia nacional de que aqui se cogita, não pode ser pesquisada e concretizada sem atentar para os gigantescos inconvenientes de ordem pública que forçosamente haverão de ser ponderados e contornados.
Merece, em suma, aplicar-se à hipótese sub examine, a douta conclusão doutrinária de Teori Albino Zavascki, segundo a qual, entre a ação coletiva e a ação singular do consumidor não há litispendência, em face da não similitude dos pedidos, como, aliás, resulta claro do art. 104 da Lei nº 8.078/90. “Há, isto sim, conexão (C. Pr. Civ., art. 103), a determinar o processamento conjunto, perante o Juízo da ação coletiva, de todas as ações individuais, anteriores ou supervenientes” (grifamos) 46.
Tudo conspira, enfim, para demonstrar que só a reunião das ações coletivas e singulares, no grande litígio nacional implantado em volta da cobrança de assinatura dos serviços de telefonia fixa, atenderá às exigências de economia processual e de coibição de milhares de julgamentos tendentes a gerar um fatal e inaceitável conflito de decisões num segmento socioeconômico do mais alto interesse público.
10 Conclusões
O caso sub examine é um convite à análise do papel dos tribunais, na aplicação e reelaboração das leis, de modo a que as aproxime de seus verdadeiros fins sociais, conformando-as, ao longo do tempo, sempre, ao sistema e aos princípios que o permeiam (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 5º) 47.
José Puig Brutau ensina que as decisões judiciais devem ter por missão fazer progredir o Direito, isto é, “adaptar, à evolução das circunstâncias, a ordem jurídica formulada” 48. Nunca se pode esquecer que a aplicação das normas jurídicas, nascidas como resposta ao estímulo produzido por fatos, não se compadece com o conceptualismo que insiste em converter certas idéias em “princípios a priori, com validade absoluta, isto é, universal e necessária”. A norma jurídica “é um pedaço da vida humana objetivada que, enquanto esteja vigente, é revivida de modo atual pelas pessoas que a cumprem ou aplicam e que, ao ser revivida, deve experimentar modificações para ajustar-se às novas realidades em que e para que é revivida” 49.
Assim, deve o juiz sempre buscar interpretar a norma “ao influxo de supervenientes princípios científicos e práticos, de modo a adaptá-la aos novos aspectos da vida social, pois já não se procura a mens legis ao tempo mais ou menos remoto em que foi elaborada a lei, mas no espírito evoluído da sociedade e no sentido jurídico imanente, que se transforma com o avanço da civilização” 50.
O jurista não está autorizado a saltar por cima das normas vigentes; ao contrário, tem a obrigação de ser-lhes fiel. Mas dentro deste marco por elas estabelecido, deve sempre orientar sua atuação, na solução dos conflitos concretos de modo a realizar a justiça, conforme a ordem jurídica vigente 51.
É, ademais, indispensável não se esquecer da importância do valor do resultado, visto que o Direito é apenas uma parte da cultura global e, por conseguinte, o preceito da lei deve, “na dúvida, ser interpretado de modo a ajustar-se o mais possível às exigências da nossa vida em sociedade e ao desenvolvimento de toda nossa cultura” 52.
Diante dessas considerações, é forçoso concluir que, no quadro de início delineado as ações civis públicas não podem deixar de ser reunidas, como aliás já vêm sendo feito, seja em razão das regras específicas que regulam a matéria, seja em observância dos princípios e garantias constitucionais em jogo na hipótese. E a esse respeito não há maior controvérsia no seio do Superior Tribunal de Justiça.
Quanto às ações individuais, há aqueles que entendem como cabível apenas a sua suspensão (CPC, art. 265, IV). Não seria, porém, bastante suspendê-las para aguardar-se o julgamento das ações coletivas, mesmo porque o problema persistiria, visto que a sentença da ação coletiva não faz coisa julgada para o consumidor que a ela não tenha aderido, se o julgamento for de improcedência da demanda coletiva.
As peculiaridades do caso sub examine, que o tornam sui generis e que retratam interesse público prevalente sobre o particular, recomendam solução a ser tomada além das regras ordinárias de competência e sob o influxo dos princípios inspiradores da alteração de competência por força de conexão. Não se trata apenas de aplicar, de forma imediata, as regras dos arts. 102 e 105 do CPC (embora esteja convencido de que seu cabimento na espécie seja induvidoso), mas, sobretudo, de extrair das razões históricas, lógicas e jurídicas que as inspiraram um princípio que, ponderado in concreto, permita fixar uma solução razoável para um problema recente, peculiar às relações de massa, que a lei não chegou a normatizar pelo menos de forma completa e expressa.
Ademais, com o surgimento desses problemas já relatados, o risco de lesão à ordem pública e à segurança jurídica justificou, inclusive, a edição da MP 2.102-27, de 27.01.01, que busca, justamente, dar solução aos conflitos da espécie ora em cogitação. Referida medida provisória fez incluir no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública, Lei nº 7.347/85, o parágrafo único que reza: “a propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto”. A regra é salutar e deve ser aplicada não só às causas conexas que se sucederem, mas também, por analogia e em virtude dos princípios gerais já invocados, inclusive de ordem constitucional, às ações conexas em curso, conferindo uniformidade, respeitabilidade e segurança jurídica à composição judicial do conflito de caráter e interesse nacionais.
Ainda que o art. 2º da Lei nº 7.347/85, em sua atual redação, não faça referência expressa às ações singulares de consumo, a busca da concretização da norma de decisão, diante de uma situação especial como a ora examinada, segundo a ponderação dos interesses e dos valores envolvidos, conduz a um resultado de prevalência da regra pertinente aos efeitos da conexão processual, fundados sabidamente na ordem pública, sobre a regra que privilegia a escolha do foro pelo consumidor, segundo suas conveniências individuais.
A opção contrária, isto é, a de sobrevalorizar a franquia legal conferida ao consumidor em detrimento da reunião da ação singular com a ação coletiva conexa, conduziria, num caso como o ora agitado, a uma exegese afastada do sistema principiológico constitucional do Estado Democrático de Direito.
Ao desprezar o risco concreto de numerosíssimas decisões conflitantes, diante de um grave problema de cunho nacional, fatalmente estariam sendo ignoradas pelo menos duas garantias constitucionais de suprema relevância: a da segurança jurídica e a da igualdade perante a lei.
Com efeito, não se pode ter como respeitada a segurança jurídica, quando o Poder Judiciário se mostra conivente, conscientemente, com a possibilidade de contradição previsível entre os pronunciamentos de seus órgãos, sem tomar a medida processual a seu alcance para evitar mal de tamanha gravidade e repercussão. A condição sine qua non para que a ordem jurídica inspire segurança aos jurisdicionados é a que permite aos destinatários das normas jurídicas contar, em face delas, com um resultado prático claro e previsível, o que, obviamente, não acontece quando a conduta dos responsáveis pela concretização da norma permite o esfacelamento da sua exegese, com indiferença ao que daí possa advir.
Da mesma forma, o desprezo pelo problema das contradições exegéticas de uma mesma norma em processos que correm em juízos diferentes, atenta contra a garantia da igualdade de todos perante a lei. É justamente para obviar tal atentado contra a ordem constitucional, que o direito processual instrumentaliza o instituto da conexão e continência, impedindo que o prestígio do Judiciário, como intérprete e guardião da lei, reste comprometido no emaranhado de posições e decisões contraditórias.
A regra que, – no campo das competências territoriais principalmente, mas que se impõe também sobre outros critérios de determinação de competência -, preconiza a reunião e o julgamento conjunto das ações conexas, está muito mais próxima dos princípios maiores da Constituição do que a regra que beneficia o consumidor com a possibilidade de escolher o foro de seu domicílio para demandar contra o fornecedor. Inspira-se aquela, incontestavelmente, na necessidade de tutelar um bem coletivo de grande peso na ordem constitucional, enquanto esta última não vai além da preocupação de conferir certa comodidade individual ao litigante.
Se, ordinariamente, o consumidor faz jus a um tratamento benéfico em juízo, esse princípio há de ceder quando interesses do bem comum afinados com princípios maiores da Constituição se manifestem com maior peso nas circunstâncias do caso sub examine.
O Colendo STJ já teve a oportunidade de enfrentar no julgamento do Recurso Especial 399.900-DF questão exatamente igual à ora analisada e, socorrendo-se dos mesmos valores jurídicos já ressaltados neste parecer, concluiu que a norma do parágrafo único do art. 2º da Lei de Ação Civil Pública aplica-se à conexão tanto entre ações coletivas como entre estas e as ações individuais; seja em relação às novas demandas ou àquelas já em andamento:
“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA (…) IDENTIDADE DAS AÇÕES NO QUE SE REFERE À PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE E DO PATRIMÔNIO PÚBLICO. CONCEITO ABRANGENTE DE CONEXÃO.
… a interpretação do preceito normativo do parágrafo único do art. 2º da Lei nº 7.347/85 e do art. 103 do Código de processo Civil não conduz ao entendimento de que somente existe relação de conexidade entre duas ações civis públicas ou que seja imprescindível aferir a relação temporal entre a propositura de uma e de outra.” 53
Discutiu-se, no referido caso, o concurso entre uma ação individual já em andamento, visando a anular ato jurídico do poder público, e uma posterior ação civil pública que também atacava o ato objeto da primeira demanda, acusando-o de lesivo ao meio ambiente. Mui corretamente, o STJ reconheceu a vis atractiva da ação coletiva, e o acerto do acórdão local que reunira as causas com apoio no art. 103 do CPC. Proclamou que não se tratava “de mera afinidade jurídica entre as demandas, porquanto o elemento de ligação não se adstringe a um ponto comum de fato ou de direito, mas a uma inequívoca identidade entre o objeto de ambas as ações, qual seja, a proteção do meio ambiente e do patrimônio público.” Daí a conclusão:
“Deveras, não se compraz com a teoria do processo de resultados ações processadas em apartado e que, em tese, possam gerar decisões conflitantes, mormente quando o bem precipuamente tutelado é o bem público” 54.
Inevitável se mostra, então, concluir que sem embargo do privilégio que se confere ao autor das ações singulares, enquanto consumidor, a escolha do foro por ele exercida redunda em competência territorial e por isso mesmo relativa. Logo, estando presentes as razões lógicas e de ordem pública que impõem a reunião de causas conexas (singulares e coletivas), esta será a medida que não poderá deixar de ser observada, mormente, numa situação como aquela aqui retratada e analisada na exposição que se acaba de fazer.
——————–
Humberto Theodoro Júnior
Advogado; Professor Titular da Faculdade de Direito da
UFMG; Desembargador Aposentado do TJMG; Doutor em
Direito.