Leonardo Pantaleão
Recentes decisões judiciais vêm suscitando debates sobre os mais diversos temas atinentes ao direito penal e processual penal brasileiros. Cada vez mais, a sociedade busca respostas para questões que, compreensivelmente, geram perplexidades para aqueles não voltados ao mundo jurídico.
A prisão domiciliar, a seu turno, tem ocupado, recentemente, posição de elevado destaque nas mesas de debates sobre as “incógnitas” jurídicas.
Em regra, a veiculação pela imprensa em geral, escrita ou falada, sobre a concessão de benefícios aparentemente descabidos, vem seguida de desabafos, críticas e questionamentos sobre a imparcialidade das decisões emanadas do Poder Judiciário.
A concessão de prisão especial para pessoas condenadas à pena privativa de liberdade, obedece a rígidos critérios estabelecidos por legislação específica. A Lei 7.210, de 11 de julho de 1984 (LEP), definiu, em seu artigo 117, as hipóteses em que se admite tal modalidade prisional, em estreita consonância com o ideal já antes incorporado pelo ordenamento jurídico pátrio, inclusive no Código Penal (artigos 65, I; 77, parágrafo 2o; 115).
Na hermenêutica básica do conteúdo do artigo 117 da LEP, verifica-se o cabimento da prisão domiciliar para o condenado maior de 70 (setenta) anos; àquele acometido de doença grave; à pessoa (em nosso entender, tanto o homem como a mulher, haja vista a igualdade estabelecida pela Carta Magna de 1988) condenada com filho menor ou deficiente físico; e, finalmente, à condenada gestante.
Polêmica recente estabeleceu-se pela concessão da prisão domiciliar à pessoa condenada em regime fechado, uma vez que o referido dispositivo legal estatui tal possibilidade somente àqueles beneficiários do regime aberto. Seria uma concessão tendenciosa ou irregular? É assunto para se refletir…
Em que pese o texto legal estabelecer condições objetivas para a prisão domiciliar, entre elas, como se viu, ser o condenado beneficiário do regime aberto, não se pode perder de vista outros direitos do reeducando e que, sem dúvida, a nosso ver, se sobrelevam incondicionalmente ao simples interesse de punir do Estado, e que devem ser ele próprio respeitados, por também ser destinatário das normas jurídicas.
Inicialmente, com a intenção de quebrar os paradigmas daqueles que entendem que a prisão domiciliar é uma espécie de “soltura incondicional e antecipada”, é mister ressaltar que referido recolhimento não significa asseverar que esteja o custodiado dispensado das normas de conduta do regime prisional. As restrições, obrigações e horários deverão ser observados pelo reeducando, sob pena de revogação do benefício.
Em situações especiais, não pode o julgador se apegar ao rigor formal da legislação, devendo sua análise ser muito mais ampla acerca da estrutura legal e constitucional vigentes.
Parece-nos, portanto, sempre respeitando as opiniões em contrário, que o regime prisional catalogado no Código Penal e na LEP, podem ser flexibilizados, nos casos em concreto.
Ora, é cediço que um dos deveres do Estado é zelar pelos seus custodiados, sendo “assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, conforme definido no artigo 5o, XLIX, da Constituição Federal.
A própria norma infraconstitucional, ao tratar do tema, define que o “preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral” (CP, artigo 38). Como se não bastasse, a própria Lei de Execução Penal (Lei no. 7.210/84), em seu artigo 41, VII, impõe que é direito do preso “assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa” (grifamos).
Verifica-se, portanto, que mais que um direito do preso condenado ou provisório, é dever estatal assistir-lhe no tocante à sua saúde. Surge aí o cerne da polêmica ventilada. Considerando que a permissiva legal para a concessão da prisão especial (domiciliar) é inerente aos beneficiados com o regime aberto e, por outro lado, é dever do Estado constitucional e infraconstitucionalmente consagrado, zelar pela saúde do recolhido ao cárcere, como equacionar eventual conflito entre as duas diretrizes?
Parece-nos inequívoco que os direitos inerentes à pessoa humana devem prevalecer sobre qualquer outro, aplicando-se, analogicamente, as regras do artigo 117 da LEP, sempre que compatíveis com a estrutura do sistema jurídico. Se a mantença do custodiado no cárcere poderá colocar em risco sua própria vida, não tendo o Estado condições de ampara-lo com dignidade, descumprindo, assim, imposições legais, não é crível o mantenha encarcerado à espera da própria morte.
Sobreleva-se, aí, o direito à vida, que consiste no direito de não ter interrompido o processo vital, senão pela morte espontânea e inevitável. Vale dizer que a Constituição tutela a vida como o mais importante bem do homem, proibindo a pena de morte, salvo exceções normadas.
A proibição da pena capital, inclusive, constitui limitação material explícita ao poder de emenda, nos termos do artigo 60, parágrafo 4o, IV, da Constituição Federal. Nesse contexto, se a própria Lei Maior veda a imposição da pena de morte ao condenado, mesmo após o devido processo legal, o Estado deve garantir a vida do preso durante a execução da pena, mesmo que, para isso, em casos excepcionais, tenha que admitir e reconhecer sua precária estrutura carcerária, incapaz, muitas vezes, de suprir as necessidades de especial tratamento de saúde no local em que o condenado se encontra cumprindo a pena imposta.
O direito à vida, à integridade física e moral, à dignidade, entre outros, compõem os denominados direitos da personalidade. A personalidade, a seu turno, é que apóia os direitos e deveres que dela irradiam, é objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que efetivamente é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens.
O direito objetivo autoriza a pessoa a defender sua personalidade de forma tal que, alguns doutrinadores consagrados entendem que os direitos personalíssimos são direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio.
Nessa esteira, a vida humana é um bem anterior ao direito, que a ordem jurídica deve respeitar, sobremaneira. A vida não é uma concessão jurídico-estatal, nem tampouco um direito a uma pessoa sobre si mesma.
Na verdade, o direito à vida é o direito ao respeito à vida do próprio titular e de todos. Logo, o direito à vida, integrante dos direitos da personalidade, é um direito subjetivo “excludendi alios”, ou seja, direito de exigir um comportamento negativo dos outros, protegendo um bem inato.
Evidencia-se, portanto, que entre os aparentes conflitos normativos, deve, indubitavelmente, prevalecer aquele que mantém íntegros os direitos fundamentais da pessoa humana.
Logo, justificável a remoção do reeducando, ainda que em regime diverso do aberto, desde que como meio necessário para o resguardo de sua dignidade e saúde, para a constrição domiciliar.
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Leonardo Pantaleão é advogado, mestre em direito pela PUC-SP, professor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus e sócio do escritório Pantaleão Sociedade de Advogados