Nova lei de drogas e política pública: criminalização ou descriminalização?

Recentemente foi publicada a Nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que ameniza a sanção aplicada ao usuário de drogas. Dentre as novidades, a nova lei deixou de prever, por exemplo, a pena privativa de liberdade para o usuário, além de suprir algumas lacunas quanto à diferenciação entre as condutas de porte e tráfico.

A partir disto, a questão que se coloca é a seguinte: pode-se afirmar que a nova legislação avançou no sentido das políticas criminais contemporâneas?

Com o objetivo de responder a esta questão, pretende-se, neste artigo, traçar uma análise crítica acerca da nova lei: em um primeiro momento será feita a comparação com as leis anteriores, focando sempre o usuário de drogas para posteriormente refletir sobre as inovações trazidas pela nova lei e, por fim, tratar de alternativas viáveis para a redução do consumo de drogas, além da esfera penal.

As leis anteriores (Lei 6.368/76 e Lei 10.409/02) disponibilizavam ao usuário de drogas, primário, que fosse encontrado na posse de substâncias entorpecentes, a opção de escolher entre a pena de prisão e o tratamento.

A principal crítica que se faz à questão do tratamento é a de que nem sempre aquele que está portando a substância entorpecente é um dependente de drogas que necessite de tratamento. Nestes casos, medidas de caráter educativo seriam mais eficientes, mesmo para aquele que esteja fazendo o uso pela primeira vez.

Em lugar da pena privativa de liberdade, a nova lei prevê que poderão incidir sobre o usuário as penas alternativas de advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Em caso de descumprimento destas medidas, o juiz poderá se valer de multa e admoestação verbal. O juiz poderá determinar ao Poder Público que coloque, gratuitamente, à disposição do infrator estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado. Não há mais a opção obrigatória entre a pena de prisão e o tratamento. Com a nova lei, o tratamento passa a ser uma opção do usuário, independentemente de aplicação de qualquer pena.

As diferenças entre usuário e traficante ficaram mais nítidas. Em lugar de prever as condutas de adquirir, guardar e trazer consigo substância entorpecente para uso pessoal (artigo 16 da Lei 6.368/76), que confundia as condutas dos usuários e traficantes, a nova lei reconhece ao usuário as condutas de ter em depósito; transportar; semear, cultivar e colher plantas destinadas à preparação de substância que cause dependência física ou psíquica.

A nova lei também esclareceu como o juiz deve avaliar se a droga encontrada destinava-se ao uso pessoal do agente, atentando para a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente.

Uma vez que a pena privativa de liberdade foi substituída por penas alternativas, pode-se concluir que a nova lei inova ao procurar amenizar a sanção aplicada ao usuário de drogas, sem, entretanto, descriminalizar a conduta.

O consumo de drogas não deixou de ser crime porque a pena a ser imposta pelo Estado ainda existe, invadindo a esfera individual do usuário. Não há que se falar em ilícito civil ou administrativo tendo em vista a natureza da sanção: penas alternativas têm caráter penal.

O que significa tratar determinada conduta como crime? Significa que haverá uma sanção administrada pelo direito penal. Será que é legítima a interferência do direito penal sobre a esfera pessoal do usuário de drogas? A quem a sua conduta atinge, senão ao próprio usuário e à sua saúde?

O bem jurídico que estaria sendo protegido pelo crime de consumo de drogas, na nova lei, seria a exposição da saúde pública a risco, uma vez que o usuário estaria difundindo tal conduta. Assim, admitir que o usuário de drogas é potencialmente perigoso para a sociedade implica na possibilidade de se utilizar o mesmo raciocínio à hipótese dos supermercados que vendem bebidas alcoólicas, que se usadas em excesso podem causar dependência1.

É necessário, entretanto, lidar com a questão das drogas de modo mais amplo, não apenas da perspectiva do direito penal e da criminalização da conduta do usuário. Nesta nova perspectiva do problema, não caberia ao direito penal o principal papel na redução do consumo de drogas, visto ser um instrumento muitas vezes simbólico que não atinge resultados concretos. Descriminalizar não significa desregulamentar.

O tratamento administrativo, como o dado às drogas lícitas, é uma possível alternativa, uma vez que drogas ilícitas não são submetidas a controle algum, que possa incidir na redução dos danos associados ao uso.

Exemplo deste controle pode ser observado no comércio de cigarro, composto por substâncias cujos teores são regulamentados, a fim de reduzir os efeitos da dependência (relacionado à nicotina), da ação carcinogênica (que pode ser causado pelo alcatrão) e de problemas no sistema cardiovascular (ligados ao consumo de monóxido de carbono).

A esfera administrativa abrange medidas como a fiscalização do teor da substância presente nos produtos comercializados, a restrição de propagandas de incentivo ao consumo, entre outras. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, é a responsável por exercer esse papel de regulamentar, controlar e fiscalizar a produção e comércio de medicamentos e suas substâncias ativas, bebidas, cigarros e derivados do tabaco, alimentos e outros bens e produtos que possam colocar em risco a saúde pública.

A partir disso, pode-se questionar se a única alternativa para lidar com as drogas seria a criminalização do usuário, uma vez que esta alternativa não extingue o consumo de drogas, como pretende uma política proibicionista.

Deve-se ter como finalidade a redução do consumo de drogas a limites socialmente suportáveis, o que é possível a partir de um programa de redução de danos, em que o consumo de drogas passe a ser visto como questão ligada à saúde pública e não à criminalidade. Se a intenção é reduzir o consumo de determinada droga, a solução é o controle e a prevenção, que se faz a partir da regulamentação (administrativa, por exemplo) e da informação (como, por exemplo, campanhas educativas que incidam sobre os potenciais usuários).

É simplista acreditar que a criminalização de certa conduta, que não faz vítimas além do próprio consumidor, contribua para a redução do consumo de drogas. Políticas públicas voltadas à redução de danos seriam uma alternativa ao tratamento dado hoje, pois busca a gradual descriminalização do consumo de drogas e a sua posterior regulamentação por outros instrumentos que não o penal.

A Nova Lei de Drogas, embora seja um passo no sentido das políticas de redução de danos, não é suficiente para tratar efetivamente o problema de saúde pública que envolve o consumo de drogas. A opção pela criminalização desta conduta além de estigmatizar o usuário, isenta a substância de qualquer tipo de controle, aumentando as chances de comprometer a saúde daquele que consome. Não basta amenizar as penas aplicadas aos usuários, mas extinguí-las.

Paralelo a isto, deve-se disponibilizar tratamento aos dependentes e ampliar a forma de lidar com o problema, o que pode ser feito na esfera administrativa.

Ignorar os problemas referentes ao uso de drogas, mantendo esta conduta criminalizada, não significa extinguir o problema, nem mesmo reduzir a sua incidência.

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Cláudia Scabin é aluna do 5° ano da faculdade de direito da PUC-SP e pesquisadora em criminologia, direito e processo penal da Escola de Direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas)

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