De acordo com o artigo de número 60, a Constituição Federal brasileira pode ser alterada, desde que sejam apresentadas emendas ao texto original.
Desde que foi promulgada, em 1988, a Carta Magna já sofreu 59 alterações, incluindo as mudanças realizadas através de emendas de revisão. Mas o documento, considerado o mais moderno da história de nosso ordenamento jurídico, começa a dar sinais de desgaste, quase 20 anos depois de entrar em vigor.
A doutrina prevê a possibilidade de alteração constitucional, o que se pode chamar de poder constituinte derivado. Apesar do nome, essa prerrogativa oferece recursos limitados.
O texto está no parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição:
“não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I — a forma federativa de Estado;
II — o voto direto, secreto, universal e periódico;
III — a separação dos Poderes;
IV — os direitos e garantias individuais”.
Ou seja, as limitações para uma alteração profunda da Carta esbarram nas cláusulas pétreas de nossa legislação.
Ocorre que esse impedimento terminou praticamente engessando nossa Constituição. Em um dado ordenamento, tais cláusulas, como o próprio nome diz, impedem que nosso texto seja mais dinâmico do que é atualmente.
Dessa forma, eleva as leis em vigor a uma categoria quase mística, da mesma forma que a Lei das 12 Tábuas ou os Dez Mandamentos, que em ambos os casos se tornaram imutáveis ao se transformarem em parte da história da civilização.
O STF (Supremo Tribunal Federal) tem agido com correção nos casos em que se manifestou. Em sua jurisprudência, tem buscado pacificar o entendimento de que essas cláusulas são realmente inalteráveis, deixando claro que o Congresso Nacional sequer pode avaliar um projeto de emenda de lei que se proponha a alterar uma norma constitucional considerada pétrea.
Dessa forma, o que será considerado, por exemplo, como “direitos e garantias individuais”, ficará ao sabor do intérprete e do juiz. Nesse contexto, podem ser incluídos os direitos do artigo 5º, ou as normas trabalhistas do artigo 7º da Constituição. Mas, para que estes direitos se alterem, deve haver manifestação do poder constituinte originário, por meio de uma nova Assembléia Constituinte.
O intelectual Roberto Campos não era jurista, mas foi quem melhor percebeu a inserção dessa bizarra imutabilidade de normas. Tinha a seu favor a devida distância dos livros jurídicos, mas dizia que “a própria noção de ‘cláusula pétrea’ é uma pretensiosa construção dogmático-formal. Implica transformar os constituintes de 1988 em constituintes pentecostais. Sobre eles teria descido o Espírito Santo, sob a forma de línguas de fogo, habilitando-os a pinçar certas garantias e direitos como de eterna validade, irreversíveis por qualquer quorum e imutáveis em qualquer clima político”.
Um bom exemplo dessa necessidade de revisar as noções de cláusulas pétreas se dá pelo que a legislação determina no caso do sigilo de correspondência. Não creio que essa cláusula prevista em nossa Constituição precise ser mantida indiscriminadamente até, pelo menos, o ano de 2100.
Principalmente quando percebemos que esse tipo de proibição termina sendo um obstáculo para que a polícia faça a interceptação de cartas enviadas pelos líderes de quadrilhas dentro das penitenciárias.
O que dizer, então, da norma que impede a prescrição do crime de racismo, fazendo da injúria a um cidadão negro um crime muito mais grave que matá-lo a tiros? E os celetistas terão eternamente direito ao FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), aviso prévio e hora-extra remunerada em exagero, independentemente das taxas de desemprego e da situação do mercado de trabalho.
Não é por acaso que os EUA têm uma Constituição que vigora há mais de 200 anos. O texto norte-americano não possui partes imutáveis e dispensa o uso de palavras inúteis em sua redação, permitindo que haja uma adaptação da legislação com o passar dos anos. Garante, assim, a manutenção natural do que é essencial à própria sociedade.
Esse dilema está nas mãos do STF. Ou o tribunal revê seu entendimento e autoriza emendas, inclusive às cláusulas pétreas, em ampliação do poder constituinte derivado, ou será inevitável a realização de uma nova Constituinte em nosso país.
Não se trata apenas de buscar corrigir os insustentáveis cacarecos da Constituição atual, que se depreciou com a passagem do tempo. Se nenhuma mudança for feita, podemos correr o risco de termos apenas mais um livro inútil e empoeirado na estante. Mais que isso: uma Carta Magna que morreu de velha.
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Luiz Augusto Módolo de Paula é procurador do município de São Paulo