O papel do Juiz no Estado Democrático de Direito
De todas as opiniões manifestadas a respeito da recente promulgação da Lei Federal 11.464, de 28 de março de 2007, que modificou as possibilidades de concessão de progressão de regime prisional e de liberdade provisória aos acusados dos chamados “crimes hediondos”, aquelas que mais causaram espécie foram as externadas por alguns membros do Poder Judiciário, que se manifestaram em sentido contrário às alterações.
Isso porque a redação original da Lei 8.072/90, que estabelecia a proibição de progressão de regime e de concessão de liberdade provisória a esses acusados, mais do que representar qualquer tipo de efetividade no combate à criminalidade, representava, na verdade, um engessamento do exercício da judicatura criminal em nosso país.
De fato, logo no artigo 1º de sua Constituição, a República Federativa do Brasil autodefine-se como um Estado Democrático de Direito, estabelecendo, como “Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (artigo 2º, Constituição Federal).
Assim, por força do documento fundamental de sua estrutura política, legitimada e emanada pela vontade popular, a República Federativa do Brasil compromete-se em fazer realizar princípios como a democracia representativa e participativa, a proteção dos direitos fundamentais (sejam eles individuais, coletivos, sociais ou culturais), a busca da justiça social, a igualdade, a legalidade e a segurança jurídica.
Tudo isso sempre respeitando o chamado princípio da divisão de Poderes, estatuído, como já dito acima, pelo artigo 2º, caput, da Constituição, o qual determina, também, que os poderes deverão coexistir com independência e harmonia.
A partir dessas bases constitucionais da República brasileira, deve-se discutir o que significa a coexistência harmônica e independente entre os Poderes Legislativo e Judiciário, considerando como ponto de partida de análise a Lei dos Crimes Hediondos (8.072/90) e sua última modificação, introduzida pela Lei 11.464/07.
Tradicionalmente, propõe-se uma classificação dos Poderes constitutivos da União tendo em vista o momento temporal em que se localizam os fatos que serão por eles tratados. O Poder Judiciário teria uma ação voltada aos fatos pretéritos, já ocorridos, com vistas a manter a ordem e o controle social por meio das decisões jurídicas que profere. O Poder Executivo teria uma ação voltada aos fatos presentes, uma vez que é responsável pela administração conjuntural do dia-a-dia. Ao Poder Legislativo caberia a prospecção do futuro, na medida em que a promulgação de leis tem o poder de dar contornos ao modelo de Estado que se pretende construir.
Esse entendimento, ainda que permaneça parcialmente correto, vem sendo reformulado pelos sociólogos do direito, que vislumbram, para o Poder Judiciário, uma ação muito mais ampla, com participação no próprio desenho institucional do País, sustentando a democracia e atuando não só na distribuição da Justiça, mas também na redistribuição social, a partir do julgamento das demandas concretas que lhe são submetidas.
Em suma, muito mais do que a necessidade de seguir os antigos aforismos de “dar a cada um o que é seu” e de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”, o Poder Judiciário, no Estado Democrático de Direito, está sendo chamado para participar da efetiva construção do modelo de sociedade e de país pelos quais todos nós ansiamos.
Para desempenhar tão relevante função, dispõe de um artigo exclusivo na Constituição da República (artigo 95) para garantir-lhe o exercício de suas funções republicanas com a independência necessária, tendo, em contrapartida, o dever de motivar suas decisões, como forma de garantir a harmonia com os outros Poderes (artigo 93, inciso IX, da Carta Magna).
Tais colocações sobre a funcionalidade dos Poderes Legislativo e Judiciário não pautaram como deviam as discussões sobre a antiga sistemática proposta pela Lei dos Crimes Hediondos (8.072/90), no que tange à proibição de progressão de regime e de concessão de liberdade provisória, uma vez que o comando legal oriundo do Poder Legislativo afligia diretamente a própria atuação constitucional reservada ao Poder Judiciário, que é, em última análise, julgar os casos que lhe são submetidos.
Referidas proibições, previstas na malfadada lei, criavam uma disfuncionalidade no exercício do Poder Judiciário, que, amarrado numa camisa-de-força, era impedido de, ao julgar casos concretos, “dar a cada um o que é seu” e “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”, conforme as especificidades recomendassem esse ou aquele caminho. Criavam-se, com isso, casos verdadeiramente teratológicos no cotidiano da prática forense, que punham em evidência a disfuncionalidade existente.
O Supremo Tribunal Federal, sempre atento à sua missão de garantir a aplicação sistemática da Constituição da República, apercebendo-se dessas disfunções criadas pela antiga redação da Lei de Crimes Hediondos —as quais atacavam o próprio cerne das atividades institucionais do Poder Judiciário, que se via coarctado, em seus julgamentos, por uma ordem, evidentemente não-harmônica, proveniente de outro Poder constitutivo da União (Legislativo)—, julgou inconstitucional a proibição de progressão de regime para os condenados por crimes hediondos, porquanto atentatória ao princípio pétreo da individualização das penas, bem como abrandou a proibição de liberdade provisória para os acusados destes crimes, hipótese que passou a ser julgada caso a caso, considerando-se os requisitos autorizadores da prisão preventiva previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal (ameaça à ordem pública, conveniência da instrução criminal e garantia da aplicação da lei penal).
O Congresso Nacional, também atento à sua função republicana primordial de moldar o futuro da nossa sociedade e à necessidade de coexistência harmônica e independente com os demais Poderes constitutivos da União, promulgou a recente Lei 11.464, em 28 de março de 2007, pela qual ficou sanada a disfuncionalidade que havia sido criada pela antiga redação da Lei 8.072/90, uma vez que deu tratamento diferenciado e mais gravoso ao condenado por crime hediondo para que possa progredir de regime, bem como retirou do texto legal a simplória proibição de que fosse concedida liberdade provisória aos acusados pelos mesmos crimes.
Com isso, o Poder Legislativo brasileiro, demonstrando a consciência a respeito de seu papel institucional na República, pôs as coisas novamente no lugar e permitiu que o Poder Judiciário voltasse a exercer, sem óbices, sua atividade primordial de apreciar os casos criminais que lhe são submetidos, com as peculiaridades apresentadas por cada crime e por cada réu.
Essa nova redação conferida à Lei de Crimes Hediondos deu nova ênfase ao direito fundamental da pessoa humana, estatuído na Constituição da República, de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (artigo 5º, inciso XXXV), primando pela coexistência harmônica e independente entre os Poderes da União.
Daí porque a espécie que causaram as manifestações de alguns membros do Poder Judiciário, que se manifestaram contrários à nova Lei promulgada, uma vez que este novo diploma legal traz referido Poder ao centro da discussão que é sua por natureza, ou seja, a distribuição da Justiça.
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Leandro Sarcedo é advogado criminalista e mestrando em direito penal pela USP