O artigo 5º, inciso XXXVII, da Constituição Federal, assegura a todos os brasileiros que não haverá juízo ou tribunal de exceção. O inciso LIII reafirma que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Aí estão as garantias de julgamento por um juiz imparcial. Ou, em linguagem técnica, juiz natural que, nas palavras de Alexandre de Moraes, é somente aquele integrado no Poder Judiciário, com todas as garantias constitucionais e pessoais previstas na Constituição Federal (Direito Constitucional, 11ª. Editora Atlas, p. 108).
O juiz natural, segundo José Frederico Marques, surgiu formulado com esse nome, pela primeira vez, ao que parece, na Carta Constitucional francesa de 1814, in verbis Nul ne purra être distrait de ses juges naturels (Elementos de Direito Processual Penal, Bookseller, v. 1, p. 187). No Brasil, foi introduzido pela Constituição de 1946, artigo 141, parágrafo 26. O princípio foi mantido na carta magna de 1967, artigo 150, parágrafo 15, e na Emenda Constitucional 1, de 1969, artigo 153, parágrafo 15.
Mas a nossa história nem sempre foi assim. Tivemos o Tribunal de Segurança Nacional, que era de primeira instância, criado pela Lei 244/36, com competência para julgar os crimes políticos e, mais tarde, os contra a economia popular. Desconhecido pelos estudiosos do Direito, este tribunal de primeira instância, segundo Reynaldo Pompeu de Campos, “se constituía em um deplorável desvio das nossas tradições jurídicas” (Repressão Judicial no Estado Novo, Ed. Achiamé, p. 50).
O perigo da criação de tribunais de exceção e a importância da figura do juiz natural foram expostos com perfeição pelo diretor de cinema Costa Gravas, no filme Sessão Especial de Justiça, onde se mostra, com clareza, o tribunal criado na França ocupada pelos nazistas, durante a Segunda Grande Guerra Mundial.
Portanto, não há como defender esta espécie de forma de distribuição de Justiça, sendo o julgamento por um juiz isento, imparcial, garantia de todo acusado pela prática de crime.
A especialização de juizados, juízos, câmaras ou turmas
A vida moderna levou todas as categorias profissionais a profissionalizar-se — médicos, dentistas, engenheiros — todos compartimentam seus conhecimentos para obter o máximo rendimento. Assim é, da mesma forma, no mundo do Direito. A figura do advogado que atendia todos os tipos de causa é bonita, nostálgica, mas inviável atualmente. Policiais e agentes do Ministério Público especializam-se para dar combate eficiente à criminalidade, em suas diversas modalidades. No Judiciário, dá-se o mesmo. A título de exemplo, cita-se a especialização das varas ambientais nas três capitais da região Sul, com sucesso por todos reconhecido.
O poder público, visando dar eficiência aos crimes contra a ordem econômica, conseguiu integrar as atividades de órgãos que, até então, trabalhavam separados. Estudos e operações conjuntas da Polícia Federal, Banco Central, Receita Federal, Coaf, Ministério Público Federal e outros órgãos deram à antiga Lei 7.492, de junho de 1986, uma efetividade jamais vista. Antes disto, a ineficiência era tal que, em trabalho elogiável por seu rigor científico, a subprocuradora-geral da República Ella Wiecko de Castilho provou, por dados estatísticos, que a quase totalidade das ações penais não chegavam ao fim ou resultavam em absolvições (O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional, Ed. Del Rey, 1998).
A criminalidade moderna assume novas formas, sai da esfera individual do passado para a ação de resultados coletivos. O progresso técnico faz com que os antigos casos de estelionato assumam um papel folclórico. O crime organizado, assessorado por profissionais competentes, infiltrado em todos os Poderes do Estado, valendo-se de meios modernos como a internet, assume um papel que nada tem a ver com o que se passava há poucas décadas. Normal, pois, reação do Estado sendo oportunas as palavras de Jesús-Maria Silva Sánchez, ao apontar a vinculação do progresso técnico e o desenvolvimento das formas de criminalidade organizada, que operam internacionalmente e constituem claramente um dos novos riscos para os indivíduos (e os Estados) (A expansão do Direito Penal, RT, p. 30).
A especialização das varas em crimes contra a ordem econômica
Na trilha da evolução geral, o Judiciário houve por bem especializar varas federais em crimes contra a ordem econômica e, posteriormente, em lavagem de dinheiro. O primeiro passo foi dado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região que, com base na sua autonomia administrativa (CF, artigo 99) especializou uma vara em cada capital (RS, SC e PR).
O sucesso fez com que a iniciativa fosse objeto da Resolução 314/03, do Conselho da Justiça Federal, autorizando os TRFs a proceder tal tipo de especialização (posteriormente alterada pela Resolução 517/06). A partir de então, pouco a pouco, os TRFs especializaram inúmeras varas, inclusive em grandes centros econômicos do país, como São Paulo e Rio de Janeiro. Além desta Resolução, outra, de número 51706, permitiu a especialização em crimes de lavagem de dinheiro.
As novas varas mudaram a cultura da impunidade. De alguns anos para cá, as condenações, outrora inexistentes, passaram a figurar na jurisprudência dos tribunais federais. Pela primeira vez na história pátria, pessoas de condição social privilegiada passaram a figurar no rol dos culpados. Poucas foram, efetivamente, presas, porque as penas não são altas e possibilitam, muitas vezes, substituição por prestação de serviços. Mas muitas tiveram seus bens confiscados. Em síntese, a Justiça Criminal tornou-se eficiente.
Os juízes tornaram-se especialistas no sistema financeiro nacional, por meio de cursos de capacitação e da prática diária. Alguns passaram a ser referências no assunto, aprofundaram-se na jurisprudência norte-americana, prepararam-se para a importante missão que o Judiciário lhes reservava.
Em poucas palavras, é possível dizer que a especialização das varas é uma tentativa do Estado-Judiciário adaptar-se à criminalidade moderna. Como lembra Fábio Bittencourt da Rosa, “estamos diante de um arcabouço legislativo e dogmático construído em quase dois séculos, num espaço institucional que reclama estabilidade e garantia, que se mostra ineficaz para combater uma criminalidade que modificou seus traços, nos últimos 50 anos” (Legitimação do ato de criminalizar, Liv. Do Advogado, p. 85). E esta tentativa — reafirmo eu — deu certo.
A especialização e o juiz natural
Recentemente, respeitável decisão do Supremo Tribunal Federal pôs em discussão a hipótese de ter sido ferido, em razão da especialização das varas nos crimes contra o sistema financeiro, o princípio do juiz natural. A questão merece análise detida, face à repercussão sobre milhares de processos espalhados por todo o território nacional, diga-se de passagem, os mais importantes na área criminal. Ao contrário dos delitos individuais previstos no velho Código Penal, os crimes contra a ordem econômica atingem grande parcela da sociedade. Por exemplo, inúmeros consórcios Brasil afora quebraram, deixando milhares de investidores sem nada receber, enquanto diretores amealhavam fortunas. Óbvio que um crime como este transcende em importância um furto ou um roubo.
José Celso de Mello Filho, destacado ministro do Supremo Tribunal Federal ao analisar o princípio do juiz natural, “cuja função maior consiste em inviabilizar a ingerência dos outros Poderes do Estado, especialmente o Executivo, no exercício da atividade jurisdicional” (Constituição Federal Anotada, Saraiva, 1984, p. 342), deixa claro que o grande risco é norma constitucional ou legal que altere a competência jurisdicional, afastando de um juiz (que é o natural) o exame de um processo.
Não é o que sucede nesta especialização, onde não existe qualquer intromissão dos outros Poderes. O ato foi do Conselho da Justiça Federal, órgão de gestão administrativa da Justiça Federal. Não se invocou — e nem cabimento teria — qualquer intenção de retirar de algum juiz um processo. Por outro lado, a redistribuição foi feita apenas dos inquéritos, mantendo-se as ações penais nas varas em que tramitavam.
O princípio do juiz natural é um dos fundamentos de um Judiciário independente. Mas não pode ser levado a extremos, sob pena de prejudicar a própria Justiça, instituição que, por si só, é considerada como excessivamente formal e morosa. Assim, não pode ser reconhecido, por exemplo, na simples designação de um juiz para sentenciar processos atrasados em outra vara ou na convocação de juízes para atuar em segunda instância, como forma de colocar os serviços em dia.
No caso das varas especializadas em crimes contra a ordem econômica, poder-se-á dizer, ainda, que, tendo elas jurisdição sobre o território de todo o estado-membro, estar-se-ia excluindo, indiretamente, a jurisdição de outros juízos e, conseqüentemente, ferindo o princípio do juiz natural. O argumento não procede. Inexiste dispositivo que proíba a especialização de estender-se além dos limites de uma subseção judiciária, ou comarca, na nomenclatura que nos deu Portugal. Soluções como esta nada mais são do que uma adequação a um mundo cada vez menor e que se comunica rapidamente. Bom exemplo disto foi a criação, pelo Ministério Público de Minas Gerais, da Promotoria do Rio São Francisco, destinada a proteger aquele importante rio de uma forma coordenada, unificada e eficiente e não apenas nos limites de uma comarca.
Além do que foi dito, há um fator adicional a ser considerado. A Resolução que especializou as varas federais limitou-se a determinar a redistribuição de inquéritos policiais. Assim, todas as ações penais permaneceram nos juízos onde se encontravam. Preservou-se, portanto, o juiz competente. De resto, nada teve esta iniciativa, que é genérica (múltiplo juízos) e não um só (como o Tribunal de Segurança Nacional), o mais remoto objetivo de afastar juízes da jurisdição de um ou mais processos criminais.
As varas federais dos crimes contra o sistema financeiro nacional constituem uma importante, imprescindível mesmo, forma de combate à criminalidade moderna. Seu sucesso é uma das iniciativas do Poder Judiciário que podem ser comemoradas. Sua extinção significaria um passo atrás na eficiência da Justiça e na crença da população nas suas instituições.
Revista Consultor Jurídico