Sob o risco de incorrer em exacerbado reducionismo, podemos asseverar que a medida de segurança constitui a resposta jurídico-penal, apresentada pelo Estado, aos atos praticados pelas pessoas que não possuem consciência acerca destes atos. Se, por um lado, a definição apresentada é incompleta e imprecisa – mormente por não contemplar, em seus limites, a exata dimensão da inimputabilidade –, de outro, constitui a síntese da legitimação da existência das medidas de segurança.
Sem embargo, a existência das medidas de segurança é consectário lógico da busca pela harmonização de dois valores contrapostos, atinentes aos atos praticados pelos inimputáveis. O primeiro dos valores é a noção, presente no imaginário coletivo, da impossibilidade de se punir um ato praticado por alguém que não possui consciência dos seus atos. Agride o bom senso imaginar que o Estado poderia punir alguém que não sabe o que faz.
Sob outro prisma, agride o bom senso, de igual sorte, a idéia de que os atos, praticados por estas mesmas pessoas, pudessem remanescer sem uma resposta estatal efetiva. Se adotarmos por paradigma a concepção, sufragada por Garofalo, de que crime é aquilo que afronta os mais basilares princípios de solidariedade social, haveremos de concluir que a exclusão da tutela estatal dos atos delituosos praticados por aqueles que não possuem discernimento, ou capacidade de determinar-se consoante esse discernimento, culminaria no generalizado sentimento de impunidade.
Relevante deixar consignado que o mais deletério dos efeitos colaterais ocasionados pela impunidade é o que corresponde ao fomento das vinganças, das mais variadas matizes. Afirma Luigi Ferrajoli que a função primordial da pena é a preventiva. De acordo com ele, todavia, a pena objetiva não apenas prevenir a prática de crimes perpetrados pelo condenado (prevenção especial), mas também, prevenir crimes que eventualmente possam ser provocados contra o condenado (prevenção geral negativa) [01]. Em resumo, a pena, corolário do monopólio estatal da violência, há de prevenir reações arbitrárias, públicas e privadas, ao delituoso, na medida em que dissemina a noção de término da impunidade.
Este, o segundo valor a orientar a existência das medidas de segurança: a imperiosidade de se eliminar o sentimento de impunidade, de molde a, dentre outras coisas, proteger o inimputável de reações arbitrárias, públicas e privadas, tais como os “justiceiros” ou “grupos de extermínio”.
Em suma, ante a contraposição de dois valores relevantes (impossibilidade de se punir quem não possui consciência dos seus atos e necessidade de se conferir resposta estatal a estes mesmos atos, com vistas a prevenir reações arbitrárias contra o agente), legitima-se a existência das medidas de segurança, que objetivam harmonizar estes valores.
Estabelecidas tais diretrizes, podemos endossar o coro, prevalecente na doutrina, no sentido de que as medidas de segurança devem possuir função preventiva, sendo, todavia, destituídas de função retributiva [02]. Esta conclusão parece ser óbvia, haja vista o fato de que, como dito, um dos valores a ser observado quando do advento da medida de segurança é a impossibilidade de se punir o ato praticado pelo inimputável.
Estas as razões que conduzem respeitável plêiade de penalistas a conferir natureza terapêutica (leia-se: não punitiva) às medidas de segurança. Com efeito, no plano da abstração normativa – sem incorrer em maiores valorações acerca da concreção fática – sendo certo que as medidas de segurança não se destinam a “retribuir o mal praticado” e sim a prevenir a prática de novos delitos, não se lhe pode atribuir natureza punitiva.
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2. AS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO CÓDIGO PENAL
Dispõe o Código Penal que as medidas de segurança aplicam-se aos inimputáveis e aos semi-imputáveis. O mesmo diploma normativo fornece o conceito de inimputabilidade, ao asseverar ser inimputável aquele que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (art. 26).
Prossegue o Código estabelecendo que semi-imputável – também chamado, doutrinariamente, de fronteiriço – é aquele que possui, embora reduzida, capacidade de entendimento ou de determinar-se conforme este entendimento, aliada à perturbação da saúde mental ou ao desenvolvimento mental incompleto ou retardado.
Como consabido, com a Reforma de 1984, nossa legislação desvinculou-se do sistema do duplo binário, que possibilita a aplicação cumulativa da pena e da medida de segurança ao semi-imputável, adotando o sistema vicariante, que não permite tal cumulação. Desta forma, ao inimputável, isento de pena, aplica-se a medida de segurança. Ao semi-imputável, reduz-se a pena de um a dois terços, pena esta que deverá ser convertida em medida de segurança se o condenado necessitar de especial tratamento curativo (art. 98).
Como visto, o reconhecimento da inimputabilidade pressupõe a existência de dois requisitos cumulativos, quais sejam, a enfermidade mental (doença ou perturbação da saúde) aliada ao comprometimento da capacidade de entendimento ou determinação. Significa dizer que a só patologia psíquica é incapaz de conferir a qualificação de inimputável ao agente, na medida em que referida patologia pode não influenciar, sobremodo, no caso concreto, a capacidade de entendimento ou determinação do enfermo.
A aplicação da medida de segurança pressupõe a prática de um injusto penal (fato típico e antijurídico). Por óbvio, a só enfermidade mental, ainda que associada a visíveis sinais de periculosidade, por parte da pessoa, não possui o condão de deflagrar o processo de cominação da medida de segurança, sob pena de não serem observados os ditames do direito penal do fato, e sim do autor, o que colide com os paradigmas que regem o direito penal moderno.
Relevante salientar, neste passo, que o inimputável não comete crime, pois que ausente estará um dos elementos que integram o seu conceito analítico, qual seja, a culpabilidade. Se é certo que a culpabilidade compõe-se da potencial consciência da ilicitude, da exigibilidade de conduta diversa e da imputabilidade (já que, desde o advento do Escola Finalista o elemento volitivo – dolo/culpa – já não integra a culpabilidade), a inimputabilidade exclui a culpabilidade [03].
Desta forma, inimputáveis não cometem crimes, e sim fatos típicos e antijurídicos, razão pela qual opta o Código Penal por utilizar a expressão “fato previsto como crime” (art. 97, caput).
Uma vez constatada a prática deste fato típico e antijurídico, será o inimputável submetido ao processo penal, regularmente instaurado, como se imputável fosse, com a peculiaridade da provável deflagração do incidente de insanidade mental. Aferida por laudo pericial, e reconhecida pelo magistrado (após oportunizar as partes manifestar-se sobre o laudo), a inimputabilidade, deverá o inimputável ser absolvido (e não condenado, pois não há crime), sendo-lhe, em seguida, aplicada a medida de segurança, que pode ser de internação ou de tratamento ambulatorial [04].
As medidas de segurança podem ser cumpridas em três locais distintos, a saber: no que concerne às medidas de internação, hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou outro estabelecimento adequado (art. 96, I – CP), apenas para o caso de inexistência do primeiro estabelecimento apontado; já no que diz respeito ao tratamento ambulatorial, poderá a medida ser cumprida tanto em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico quanto em local com dependência médica adequada (art. 101 da Lei de Execuções Penais).
Por fim, e ingressando no tema que ora nos interessa, o Código Penal estabelece às medidas de segurança um prazo mínimo, que varia de 01 (um) a 3 (três) anos, asseverando, ainda, no que concerne ao seu prazo máximo de duração, que este será indeterminado, perdurando enquanto não averiguada, por perícia médica (realizada periodicamente ou, a qualquer tempo, se o determinar o juiz da execução, uma vez findo o prazo mínimo cominado), a cessação da periculosidade.
Depreende-se deste dispositivo legal que é a periculosidade a base de sustentação e manutenção das medidas de segurança. Esta concepção remonta aos escólios da Escola Positiva, sobretudo aos trabalhos de Garofalo, que sustentava a noção de periculosidade como base da responsabilidade penal [05].
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3. LIMITE TEMPORAL DA MEDIDA DE SEGURANÇA (PRAZO MÁXIMO)
Dispõe o Código Penal que a medida de segurança possui prazo indeterminado. Em que pese haver fomentado discussões de respeitável envergadura doutrinária, a questão em apreço caminha para a sedimentação do entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal.
Em resumo, podemos asseverar que duas correntes doutrinárias digladiavam entre si, em derredor deste tema: a primeira, dispondo que efetivamente não há que se falar em prazo máximo para o cumprimento da medida de segurança, pois esta há de perdurar até a cessação da periculosidade do agente, o que, de regra, coincide com o término da doença ou perturbação da saúde mental que o aflige; para a segunda corrente, a medida de segurança deveria possuir lapso temporal adstrito a limites estabelecidos previamente, sob pena de se consagrar, por via transversa, a institucionalização da pena de caráter perpétuo.
Como se vê, o ponto crucial do embate circunscreve-se à natureza da medida de segurança. Isto porque, uma vez reconhecido o caráter punitivo da referida medida, o dispositivo da legislação penal que prevê prazo indeterminado sem fixar limite quantitativo do cumprimento da medida estaria afrontando o dispositivo constitucional que proscreve a existência das penas de caráter perpétuo. Como é óbvio, se não houver limite de pena, a medida perduraria até findar-se a patologia e, sendo certo que esta pode ser incurável, a medida de segurança estender-se-ia até o fim da existência do inimputável, consagrando a medida de natureza perpétua.
De outro lado, aqueles que sufragam a impossibilidade de se fixar limite temporal à medida de segurança – devendo ser cumprida a medida por prazo indeterminado, até quando terminar a doença ou perturbação da saúde mental – não negam a possibilidade de que esta venha a possuir caráter perpétuo. Contra-argumentam, contudo, que não se trataria de uma pena de caráter perpétuo, porquanto a medida de segurança possui natureza terapêutica, e não punitiva, não havendo que se fazer confusão entre os institutos.
Não será demasiado ressaltar que a primeira das teses se subdivide em duas vertentes: a primeira, perfilha o entendimento de que o limite temporal das medidas de segurança é aquele cominado em abstrato para a execução das penas privativas de liberdade, 30 (trinta) anos (art. 75 do Código Penal); a segunda vertente sustenta a posição de que o limite a ser obedecido é aquele cominado em abstrato ao fato específico praticado pelo inimputável, se acaso imputável fosse. Desta forma, cometido homicídio simples por um inimputável, não poderia, por exemplo, a medida de segurança de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico perdurar por prazo superior a 20 (vinte) anos (art. 121, caput, CP).
Já não é novidade que o Supremo Tribunal Federal acolheu a primeira das teses, reconhecendo a natureza punitiva da medida de segurança e fixando-lhe o limite temporal das penas. [06] No bojo deste precedente, o Min. Sepúlveda Pertence assevera, em seu voto, expressamente que “ao vedar as penas de caráter perpétuo, quis a Constituição de 1988 (art. 5º., XLVII, b) se referir às sanções penais e, dentre elas, situam-se as medidas de segurança”. Mais que reconhecer o limite temporal das medidas de segurança, sob pena de consagrar-se a adoção da pena de caráter perpétuo, determinou expressamente o STF que este limite deve coincidir com aquele preconizado à execução das penas privativas de liberdade, insculpido no art. 75 do CP.
No que concerne à delimitação do lapso temporal atinente ao cumprimento das medidas de segurança, aderimos ao entendimento consagrado pelo STF.
Com efeito, no que concerne à atribuição da natureza da medida de segurança (se terapêutica, punitiva ou mista), há de ser considerada não apenas a abstração normativa, mas também a concreção da realidade fática. Nestes termos, não se pode olvidar que, conquanto destine-se eminentemente à busca da cura da patologia que aflige o inimputável, a medida de segurança possui, sem dúvida, características que a assemelham em muito às penas convencionais.
Não se está a referir aqui aos requisitos para cominação das medidas de segurança (que também estão em relação muito estreita com as penas, sendo exigida a prática de fato típico e antijurídico, a inexistência de causas extintivas de punibilidade, etc), mas sim às circunstâncias em que são cumpridas, merecendo relevo a questão da privação da liberdade, no caso das medidas de internação compulsória.
Ainda numa apreciação direta da concreção fática relativa à questão, cumpre referir que os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico possuem, no mais das vezes, estruturas de funcionamento claudicantes e deficitárias, de todo incompatível com o alcance de um tratamento eficiente. Demais disso, relevante destacar que quando da aplicação da medida de segurança, é o inimputável sujeito à jurisdição da justiça penal.
Por estas razões, não se pode deixar de reconhecer a correção em se atribuir natureza punitiva às medidas de segurança, ainda que não se exclua a sua finalidade terapêutica (donde chegar à inarredável conclusão de que as medidas de segurança possuem natureza mista). Possuindo natureza mista, é de se reconhecer efetivamente a impossibilidade de se executar medida de segurança por tempo indeterminado, sob pena de consagrar-se, como consabido, a pena de caráter perpétuo, abolida do ordenamento jurídico nacional.
Demais disso, se um limite há de ser observado, este limite há de ser o fixado para o cumprimento das penas, em geral, não havendo que se falar em observância dos prazos cominados aos crimes em abstrato. Isto porque o que fundamenta a existência da medida de segurança é a periculosidade do agente, e não a gravidade em abstrato do crime (rectius: fato típico e antijurídico, na medida em que lhe falta a culpabilidade). Desta forma, utilizar-se como parâmetro de cumprimento da medida de segurança a pena, em abstrato, que seria cominada ao agente se fosse este imputável, consagraria a subversão dos fundamentos que a legitimam.
3.1. A Questão da Continuação do Tratamento
Como visto, atribuir à medida de segurança prazo indeterminado equivaleria a convertê-la em pena de caráter perpétuo, razão pela qual há de ser-lhe fixado o prazo máximo de 30 (trinta) anos. Todavia, não se pode perder de vista o fato de que, ao término da execução da medida de segurança, o inimputável pode necessitar continuar o tratamento que lhe fora imposto por determinação judicial.
Razoável reconhecer-se que, malgrado não possa subsistir a medida de segurança que lhe fora imposta, sob pena de afronta a direitos fundamentais que lhe são assegurados, deva o Judiciário resguardar a manutenção ou busca da higidez psíquica do inimputável, em casos que tais. Relevante salientar que a questão a ser apreciada é a necessidade de continuação do tratamento, em benefício do próprio inimputável que, neste caso, deverá necessitar dele.
Desta forma, argumentos atinentes à subsistência da periculosidade do agente não poderão ser considerados senão como consectários da questão crucial que será a necessidade da continuação do tratamento psiquiátrico como forma de resguardar ou alcançar a integridade física e moral do inimputável e, sobretudo, a sua higidez psíquica.
Subtrair-se o julgador a tal decisão seria a consagração da afronta aos direitos elementares do portador de patologia mental, até então sob a tutela estatal. Sem embargo, considerar finda a medida de segurança para, simplesmente, encaminhar ao convívio social uma pessoa que necessita do amparo e tratamento psiquiátrico para a prática de atos, por vezes os mais simplórios, da vida em sociedade é atitude que não se pode conceber.
Sem receio de incorrer no óbvio ululante, é relevante deixar consignado que a imprescindibilidade do tratamento deverá ser constatada por laudo médico devidamente fundamentado, documento idôneo a embasar a decisão judicial, após oportunizar-se regularmente às partes a manifestação acerca do seu teor.
Fixadas estas premissas, quais sejam, a existência de um limite temporal para as medidas de segurança e a possibilidade de se determinar a continuação do tratamento psiquiátrico já iniciado após o advento deste limite, impõe-se a questão de se saber em que termos e condições essa continuação ocorreria.
O STF enfrentou a questão no mesmo precedente em que deixou consignada a obediência ao prazo de 30 (trinta) anos para as medidas de segurança. Na oportunidade, asseverou referido Tribunal que cessada a medida de segurança, dever-se-ia proceder na forma do art. 682, § 2º do Código de Processo Penal ao processo de interdição civil do paciente no juízo competente, na conformidade dos arts. 1796 e segs. do Código Civil. Restou consignado ainda, no célebre precedente, que, até que fosse efetivado o referido procedimento, deveria ser a paciente mantida no hospital em que se encontrava por força da liminar anteriormente deferida, que determinava a continuação do tratamento em hospital psiquiátrico da rede pública.
De antemão, convém esclarecer que a decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal possui méritos incontestes, dentre os quais o reconhecimento do término da tutela penal após a cessação da medida de segurança. Sem embargo, em que pese o voto do Ministro Sepúlveda Pertence aludir expressamente à “incontroversa persistência da periculosidade da paciente”, reconheceu que o término da medida de segurança, face o advento do lapso temporal de 30 (trinta) anos, possui a inarredável conseqüência de extinguir a tutela penal, na medida em que determina, a decisão em apreço, a remessa do tratamento à esfera cível.
Todavia, com a devida vênia ao entendimento esposado pelos cultos Ministros no precedente em comento, perfilhamos o entendimento, repudiado na decisão, de que ao inimputável, em casos que tais, é possível determinar-se a internação em hospital da rede pública para que seja continuado o tratamento psiquiátrico de que necessite. Como já asseverado, permitir o julgador, em tais condições, que o inimputável retorne ao convívio social sem que possua mínimo suporte para tanto, consagraria violação a direitos basilares. Nesta senda, temos que, determinar a continuação do tratamento em hospital especializado, além de possuir o mérito de retirar a tutela penal ao inimputável, possibilita, de forma efetiva, a realização de um tratamento psiquiátrico imprescindível.
3.2. Prazo Máximo Para Semi-Imputáveis.
Conquanto não nos seja estranha a opinião dissonante, reputamos que, no que concerne ao semi-imputável, os mesmos fundamentos hão de se fazer presentes, devendo ser observada a continuidade do tratamento em hospital especializado. Consoante já asseverado, aos semi-imputáveis aplica-se a pena – dentre os parâmetros cominados em abstrato para o delito – diminuída de um a dois terços, por meio de sentença penal condenatória. Apenas na hipótese de necessitar o condenado de especial tratamento curativo será a pena convertida em medida de segurança.
Tendo em vista estas disposições, tende a doutrina a adotar por parâmetro, quando da execução da medida de segurança, o limite da pena originalmente cominada. Desta forma, se o semi-imputável foi condenado a uma pena de 05 (cinco) anos, não se poderia compeli-lo a cumprir uma medida de internação até o limite máximo de 30 (trinta) anos (ou, pior, prazo indeterminado, conforme dispõe o Código Penal).
Reputamos correto o entendimento acima esposado. Com efeito, não se pode perder de vista que quando da cominação da sanção penal o condenado possuía parcial imputabilidade, razão pela qual fora adotada, como paradigma, a culpabilidade do agente, e não a sua periculosidade. Tal constatação justifica o fato de lhe haver sido cominada a pena e não a medida de segurança.
A superveniente necessidade de especial tratamento curativo não desnatura o fato de que, quando do cometimento do crime, o agente possuía parcial capacidade de entendimento acerca do caráter ilícito do seu ato, e de determinação conforme este entendimento. Desta forma, a superveniente imperiosidade do especial tratamento curativo, sem que haja o agente cometido qualquer ato novo, não possui o condão de subverter os fundamentos que legitimam a sanção penal, transmudando-a de culpabilidade para periculosidade.
Em suma, legitimar esta mudança seria a consagração do agravamento da sanção penal aplicada ao semi-imputável (pois, não custa lembrar, a medida de segurança possui também caráter punitivo) sem que haja perpetrado qualquer novo ato típico e antijurídico, pela só razão de necessitar, por fato superveniente, do especial tratamento curativo.
Desta forma, tendo o réu semi-imputável sido condenado, por sentença penal condenatória transitada em julgada, a 5 (cinco) anos de reclusão, o advento da necessidade de especial tratamento curativo, devidamente constatada por laudo médico, após o transcurso do lapso temporal de 2 (dois) anos, poderá converter a pena em medida de segurança até o limite máximo de 3 (três) anos, prazo máximo previamente estipulado para o cumprimento da pena.
Todavia, e ratificando nosso entendimento, deverá o magistrado, ao cabo do prazo da execução da medida de segurança, determinar a continuidade do tratamento em hospital especializado, após indicação de laudo médico neste sentido.
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4. PRAZO MÍNIMO
Como visto, além de ter sido bastante explorado pela doutrina, o precedente do Supremo Tribunal Federal parece ter sedimentado o entendimento acerca do assunto atinente ao prazo máximo de execução das medidas de segurança, muito embora tópicas dissensões doutrinárias grassem na seara penal.
Todavia, não se debruçaram os penalistas com o mesmo empenho à questão relativa ao prazo mínimo de cumprimento da medida de segurança. Como visto, dispõe o Código Penal que o prazo mínimo da medida de segurança será de 1 (um) a 3 (três) anos. Significa dizer que, ao sentenciar, o magistrado deverá absolver o inimputável (que não pode ser condenado) e cominar-lhe a medida de segurança, fixando-lhe, desde já, um prazo mínimo, entre os parâmetros mencionados.
A despeito de permanecer tal disposição incólume, impassível de críticas mais contundentes, sufragamos o entendimento de que estabelecer-se previamente este prazo mínimo de cumprimento colide com os fundamentos e objetivos almejados pela medida de segurança.
Basta lembrar que é a periculosidade o fundamento da manutenção das medidas de segurança. Esta periculosidade encontra-se umbilicalmente associada à patologia psíquica (doença ou perturbação da saúde mental) que aflige o inimputável. Ocorre que, ao proferir sua sentença (absolutória imprópria), o magistrado, de regra, não possui elementos de cognição idôneos a aferir a possível manutenção da patologia em comento pelo prazo em que se comina a medida de segurança. Neste sentido, basta destacar que os laudos periciais produzidos no incidente de insanidade mental, deflagrado no curso da instrução, adstringem-se a confirmar a inimputabilidade do agente, sem que haja maiores alusões ao lapso temporal necessário ou indicado à cura da enfermidade.
Em resumo, na prática, pode ocorrer de o magistrado fixar período mínimo de 3 (três) anos de cumprimento da medida de segurança e, ao cabo de menos de 1 (um) ano, haver sanado a doença ou perturbação da saúde mental que originava a periculosidade do agente, única razão para a subsistência da medida de segurança. A despeito disto, assevera a legislação em apreço que as perícias periódicas, destinadas a averiguar a cessação da periculosidade do inimputável apenas poderão ser levadas a cabo ao término do prazo mínimo fixado.
Nestes termos, a manutenção da medida de segurança sem que haja enfermidade mental e periculosidade a serem tratadas constitui resquício de uma anacrônica concepção retributiva, dissociada, por completo, dos paradigmas a serem observados quando da implementação do instituto.
Demais disso, não se pode olvidar que, na prática, estes prazos mínimos são fixados pelo julgador com supedâneo na gravidade abstrata do delito cometido, o que, como visto, é equivocado.
Imperioso destacar, ainda, que, com o advento da reforma psiquiátrica, institucionalizada com a edição da Lei 10.216/2001, ganhou reforço a tese, ora defendida, de que não se pode conceber a fixação dos prazos mínimos das medidas de segurança – ou, ao menos, considerá-los óbices intransponíveis à determinação de perícia médica apta a aferir a insubsistência da periculosidade da pessoa submetida à medida de segurança, sobretudo a de internação.
De antemão, convém esclarecer que referida Lei – sob a influência do movimento antimanicomial, que, por seu turno, se pauta na antipsiquiatria – positivou a tese de que a medida de segurança de internação adstringe-se a casos excepcionais, consagrando a necessidade de aferição casuística, não apenas da periculosidade do inimputável, mas da viabilidade de sua recuperação mediante a adoção da internação, em qualquer circunstância [07].
No que concerne especificamente à medida de segurança de internação, mais relevante ainda é o fato de a Lei em apreço condicionar sua existência a uma utilidade terapêutica, determinando expressamente que se não realizará internação quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem suficientes (art. 4º. caput). Afigura-se razoável constatar, destarte, que estabelecer previamente um prazo mínimo a ser observado para o cumprimento da medida de segurança conflita com esta disposição, na medida em que, uma vez dissipada a doença ou perturbação da saúde mental, já não subsistem razões que legitimem a internação, porquanto inexistente qualquer utilidade terapêutica. Estabelecidas essas premissas, podemos reiterar que a medida de segurança, em casos que tais, está imbuída de um ranço retributivo.
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5.CONCLUSÕES
Em conclusão do que foi exposto, podemos asseverar que: (i) as medidas de segurança, a par da sua natureza terapêutica possuem também atributos punitivos, constituindo verdadeiras modalidades de sanção penal; (ii) tendo em vista esta punitividade que lhe é subjacente, à medida de segurança há de ser aplicado um limite temporal máximo, sob pena de se consagrar uma pena de caráter perpétuo, vedada pela Constituição Federal; (iii) este limite temporal deve ser aquele fixado para o cumprimento das penas privativas de liberdade, 30 (trinta) anos, e não aquele cominado em abstrato para cada espécie delituosa, porquanto as medidas de segurança fundamentam-se na periculosidade do agente e não na gravidade do delito; (iv) ultrapassado o limite máximo para cumprimento da medida de segurança, e subsistentes razões que indiquem a imprescindibilidade do tratamento terapêutico, deve o magistrado determinar sua continuação em hospital especializado, cessada a tutela penal sobre o inimputável; (v) o mesmo tratamento há de ser aplicado ao semi-imputável; (vi) a existência de prazo mínimo para o cumprimento das medidas de segurança encontra-se em descompasso com a resposta estatal almejada aos atos praticados pelos inimputáveis, consagrando resquício retributivo, não albergado pelos princípios que orientaram a reforma psiquiátrica, positivada pela Lei 10.216/2001.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Notas
01″Quero dizer que a pena não serve apenas para prevenir os delitos injustos, mas, igualmente, as injustas punições. Vem ameaçada e infligida não apenas ne peccetur, mas também ne punietur. Tutela não apenas a pessoa do ofendido, mas, do mesmo modo, o delinqüente contra reações informais, públicas ou privadas. Nesta perspectiva a pena ”mínima necessária” de que falavam os iluministas – compreendido ”pena” no sentido genérico de reação aflitiva a uma ofensa – não apenas um meio, constituindo, ela própria, um fim, qual seja aquele da minimização da reação violenta ao delito.” (Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. Alii. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 309).
02Assevera, contudo, Paulo Queiroz: “Tampouco cabe dizer que as penas têm natureza retributivo-preventiva e as medidas de segurança têm natureza só preventiva. Primeiro, porque, pelo que já se disse, tanto as penas quanto as medidas de segurança pressupõem fato típico, ilícito, culpável e punível, de modo que, desse ponto de vista, as medidas de segurança constituem, também, uma retribuição a uma infração punível. Segundo, porque no essencial, as medidas de segurança perseguem os mesmos fins assinalados à pena: prevenir reações públicas ou privadas arbitrárias contra o criminoso inimputável (prevenção geral) e prevenir a reiteração de crimes (prevenção especial).” (Direito penal: parte geral. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 422).
03Não é demasiado ressaltar, todavia, que militam em favor do inimputável as causas excludentes da culpabilidade, que não estejam diretamente ligadas à imputabilidade penal, tais como a coação moral irresistível, a obediência à ordem hierárquica, a embriaguez completa decorrente do fortuito ou da força maior, etc. Caso assim não fosse, o inimputável estaria sujeito a tratamento assaz gravoso, em relação aos detentores da plena imputabilidade penal.
04 A despeito da literalidade do art. 97 do Código Penal [“Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial”], sufragamos o entendimento de que a cominação da medida de segurança não deve levar em consideração a gravidade em abstrato do delito, senão a periculosidade do agente e, sobretudo, a eficácia do tratamento, devendo a internação ser utilizada residualmente, quando laudo médico circunstanciado a indicar como melhor tratamento a ser utilizado ao inimputável (cf. nosso Medida de segurança: caráter residual da internação. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1494, 4 ago. 2007. Disponível em:
05 “Para Garofalo, o criminoso tem a própria natureza degenerada, apresenta deturpação psicológica, a qual nominou anomalia moral. Fundamental, e inserido na idéia de anomalia moral, é o fato de o critério para a fixação da pena ser o proposto com a nomenclatura de temibilidade. A temibilidade constitui o grau de perversidade, ou mal, existente no criminoso. É de se observar que a concepção, que demanda a consideração do estado de perigo apresentado pelo delinqüente, influenciou o Direito Penal contemporâneo, sendo desenvolvida com o nome de periculosidade”. (Adel El Tasse. Medida de Segurança: reflexões sobre o sistema adotado no Brasil. in Rogério Sanches Cunha (org.). Leituras Complementares de Execução Penal. Salvador: JusPodivm, 2006. p.44).
06 HC 84219/SP, Rel. Min. Marco Aurélio.
07 ARAÚJO, Fábio Roque da Silva. Medida de segurança: caráter residual da internação. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1494, 4 ago. 2007. Disponível em:
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Fábio Roque da Silva Araújo
Juiz Federal na Bahia. Mestrando pela UFBA.