Carga tributária e meios de controle

A Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, a famigerada CPMF (Cobrança Provisória sobre Movimentação Financeira), que, há mais de 15 anos foi concebida para “salvar” a saúde pública, hoje tornou-se uma ferramenta de espionagem para fazer uma devassa em contas bancárias e delatar cidadãos e empresas, pela simples presunção de que valores que transitam sobre contas correntes constituem renda efetivamente auferida e, assim, passível de ser tributada pelo imposto de renda de pessoa física ou jurídica.

A própria Receita Federal, por intermédio de seu secretário adjunto, Paulo Ricardo de Souza, faz propaganda da função de “dedo-duro” do imposto do cheque quando afirma que “80% dos sonegadores, no caso de pessoas físicas, são flagrados graças aos dados da CPMF”.

A transformação da CPMF em tributo delator exibe a arrogância com que a tecnocracia brasileira trata a cidadania. Primeiro, urge lembrar que a Constituição Federal garante o direito do cidadão à intimidade pessoal e ao sigilo bancário, que só pode ser quebrado mediante requisição judicial.

A controvérsia se estabelece a partir do direito à proteção constitucional da propriedade e da intimidade dos dados da vida privada das pessoas e a permissão, pela Lei Ordinária 10.174/01, para a autoridade fiscal utilizar as informações para efeito de verificar a existência de créditos tributários outros, além da CPMF.

De acordo com o princípio do direito administrativo de que o agente público não poderá agir se não se amparar em instrumento legal expresso, buscou-se uma norma para quebrar o sigilo bancário.

Sem querer entrar no mérito dos instrumentos legais – até porque a matéria é objeto de análise no STF (Supremo Tribunal Federal) —importa enfatizar que os valores que passam pela conta corrente do contribuinte— e que geram a alíquota para pagamento da CPMF —não representam, necessariamente, a renda do correntista.

Imagine-se o caso de um engenheiro que usa a conta corrente para receber e pagar por obras que administra. Os valores que entram e saem podem não gerar lucros e ganhos com as transações. Por acaso, este foi o entendimento de um juiz da 1ª Vara Criminal de Campinas, ao rejeitar denuncia feita pelo Ministério Público contra um engenheiro civil que teria omitido rendimentos na declaração de imposto de renda.

O que impressiona é a capacidade da burocracia estatal de criar e multiplicar os meios de controle da vida dos cidadãos. Não bastasse o desrespeito com que o governo trata a sociedade, ao abusar do estatuto das medidas provisórias que usurpam a competência do Poder Legislativo, aparecem, periodicamente, formas vexatórias —e até leis extemporâneas— para monitorar os passos de contribuintes e intimidar os cidadãos.

Veja-se, por exemplo, o projeto que permite utilizar prova obtida de maneira ilícita —escuta judicial telefônica sem autorização judicial— em julgamentos, desde que confirmada por uma ou mais fontes. Trata-se de uma excrescência que mais lembra os ciclos do nazismo e fascismo, uma barbaridade que estimulará escutas telefônicas clandestinas. Ou seja, estamos diante de um projeto que induzirá à criminalidade. Esperemos que o Senado reveja esta idéia já aprovada pela Câmara dos Deputados.

Se a meta é a de aumentar a arrecadação, inventam-se fórmulas exóticas. Nessa esteira, esfacela-se a tripartição dos Poderes, arquitetada por Montesquieu, eis que o Poder Executivo passa a invadir funções do Legislativo e, até, a se imiscuir na seara do Poder Judiciário com instrumentos normativos próprios, como atos declaratórios interpretativos, muitos dos quais se apresentam inconstitucionais. Não por acaso, o contencioso jurídico do País é formado pela massa fenomenal de recursos que provém do próprio Executivo.

Ante a escalada burocrática e predatória comandada pelo estado brasileiro, cabe às entidades organizadas, como a OAB-SP, papel central na vigilância dos direitos inalienáveis dos cidadãos.

Não devemos aceitar o sofisma de que a invasão da intimidade é dever do Estado para assegurar a segurança pública. Só o Estado absolutista passa por cima da cidadania.

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Luíz Flávio Borges D’Urso, advogado criminalista, é presidente da OAB-SP. Foi presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abrac) e da Academia Brasileira de Direito Criminal (Abdcrim). É mestre e doutor em direito penal pela USP. Fez pós-doutorado na Faculdade de Direito Castilla-La Mancha (Espanha). Escreveu, entre outras obras, Advocacia e Justiça Criminal (Del Rey).

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