Cidadania ameaçada. Polícia e MP querem afastar juízes de inquéritos.

Encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados o projeto de lei N.º 4.254 de 1998 — proposta de modificação do atual sistema processual penal — visando subtrair o procedimento investigatório criminal — Inquérito — do crivo do Poder Judiciário, impondo que se movimente esse procedimento unicamente entre o Ministério Público e a Polícia, com seu encaminhamento ao Judiciário apenas na oportunidade do oferecimento da denúncia.

Alegam, os seguidores dessa corrente, ser o trânsito do inquérito pelo Judiciário, no decorrer das investigações, mero elo burocrático, prejudicial à celeridade do procedimento investigatório. Alega-se ainda que, com a Constituição de 1988, passou o Ministério Público a exercer o controle externo da atividade policial, e em conseqüência, o relacionamento entre a autoridade policial e o titular exclusivo da ação penal pública deve se estabelecer sem intermediações burocráticas.

Essa proposta vem, agora, de ser prestigiada pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça, ao apreciar procedimento de controle administrativo nº 599, apresentado perante o Colegiado com o objetivo de anular, parcialmente, Provimento da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Paraná, editado em face de “termo de ajuste de conduta” celebrado entre o Ministério Público do Paraná e o Tribunal de Justiça daquele Estado da Federação.

As razões para a edição ato impugnado perante o CNJ são praticamente as mesmas que fundamentaram o encaminhamento do Projeto de Lei 4.254/98 ao Legislativo, tendo em vista que autoriza essa distribuição dos inquéritos diretamente aos integrantes do Ministério Público, “…a fim de evitar a intervenção desnecessária do Juízo na fase administrativa da tramitação, uma vez que a atividade jurisdicional nessa fase é meramente burocrática e gera duplicidade de trabalho”, nas palavras do relator do procedimento, Altino Pedrozo dos Santos, integrante do Conselho Nacional de Justiça. Afirma ainda, o ilustre Conselheiro, que o Supremo Tribunal Federal já expressou entendimento no sentido de que a intervenção do Juiz, nessa fase investigatória que precede a propositura da ação penal, seria desnecessária e meramente burocrática.

Assim, para que se dê maior agilidade no andamento do procedimento investigatório instaurado na Polícia, otimizando o trabalho dos promotores, assevera-se que essa “providência adotada revela importante marco no dinamismo e celeridade processual, tema atual e recorrente, na medida em que a melhor administração da justiça atende ao interesse público”.

Na estrutura do nosso sistema processual penal, a instrução criminal tem natureza preservadora (da inocência e da justiça) e preparatória (dos meios de prova). Assim, os atos praticados no inquérito policial possuem dupla função — a primeira, a de formar o corpo do delito — isto é, coligir os elementos corpóreos que digam respeito ao delito — e a segunda — mediante dados sensíveis captados do corpo de delito, apontar a responsabilidade criminal pelo evento, por uma operação intelectual aferidora da intenção do agente ao infringir o preceito legal. (Canuto Mendes de Almeida).

Por esse motivo, correta a assertiva de que “iniciada uma investigação, com a instauração do inquérito, estabelece-se entre o Estado e o indiciado (ou suspeito) uma situação de litigiosidade” (J. Frederico Marques), passando, o indivíduo, a ser considerado objeto de investigação, e detendo a autoridade policial liberdade discricionária de investigação, sob pena de se mutilar a função da polícia.

Assim, a liberdade investigatória só encontrará limites quando a atividade policial possa representar injusta lesão a direitos individuais. Em decorrência, como objeto de investigação, o indivíduo sofre, necessariamente, um abalo em sua cidadania, podendo ser submetido a constrangimentos lícitos, pois autorizados por lei, e dentre outros, prestação de depoimentos, submissão a perícias e reconstituições; ver decretada as quebras do sigilo de suas contas bancárias, do sigilo fiscal, do sigilo dos registros telefônicos; ser identificado criminalmente, se já não tenha sido civilmente; ser indiciado como autor de delito — tendo portanto sua vida, pública e privada, exposta, ao menos, aos agentes da instrução criminal.

Em países de excelente nível de democracia, a atuação do Poder Judiciário encontra-se presente já na fase das investigações preliminares, a fim de assegurar ao indivíduo que as atividades investigatórias permaneçam subordinadas à ordem jurídica.

Esse também o motivo porque entre nós, a Polícia, ao atuar como órgão da persecução penal, coligindo os elementos “para a restauração da ordem jurídica violada pelo crime, em função do interesse punitivo do Estado” — passa a ser conceituada como Órgão Auxiliar do Poder Judiciário — a polícia judiciária — e a esse Poder vinculada, embora o produto dessa atividade seja dirigido ao Ministério Público, titular da ação penal.

No Brasil, o Código de Processo Penal, editado em 1941, manteve o sistema anterior — implantado pelo Decreto n.º 4.823 de 22/11/1871 — conferindo a formação da culpa à autoridade policial (Art. 4º, in fine), condicionando, entretanto, a autuação do procedimento investigatório ao conhecimento do juízo competente (juiz natural), dentro de determinado prazo — de 30 dias quando o indiciado se encontrar solto, e de 10 dias, se ele estiver preso (Art. 10 do CPP).

Quando o Inquérito é encaminhado ao Poder Judiciário, a atuação investigatória do Estado em torno do indivíduo, ou dos fatos que o envolvem, se torna pública, pois registrada em arquivos passíveis de serem acessados pelo público em geral, inclusive pelo indiciado, se a autoria dos fatos já for conhecida. O procedimento investigatório poderá mesmo ser sigiloso, mas restará registrado perante o órgão judiciário competente, seu rito submetido, doravante, a controle externo, podendo o investigado defender-se dessas acusações ou ter acesso aos autos — exceto em relação à matéria sigilosa.

O Poder Judiciário, assim, também em nosso sistema, restou, de alguma forma, presente na fase investigatória, cabendo ao juízo coibir de ofício, ou a requerimento do indiciado, os eventuais excessos ou desvios dos agentes policiais, ou ações ou omissões, ilegais ou abusivas, emanadas de todo e qualquer personagem estatal no decorrer das investigações.

O Poder Judiciário, também em nosso sistema, restou, assim, de alguma forma, presente na fase investigatória, e essa presença se estratifica exatamente no momento em que os autos de inquérito são distribuídos ao juízo competente, depois de esgotado o prazo legal de 10 ou 30 dias de sua instauração, cabendo a esse juízo coibir de ofício, os eventuais excessos ou desvios dos agentes policiais, ou ações ou omissões, ilegais ou abusivas, emanadas de todo e qualquer personagem estatal.

Essa afirmativa encontra fundamento no próprio texto legal — o vigente Código de Processo Penal de 1941 — pois o legislador pátrio, à época, ao inscrever: (a) prazo para o término do inquérito; (b) a remessa do inquérito ao juízo competente e (c) a proibição do arquivamento de inquéritos na esfera administrativa — deixou claro não ter em mente o estabelecimento de hierarquia entre as instituições envolvidas nessa tramitação, ou o intuito de enlaçar o juízo em atividades menores, administrativas. Assim agiu em homenagem aos direitos e garantias do indivíduo — a fim de assegurar ao cidadão a certeza de que as investigações que contra ele forem iniciadas serão necessariamente submetidas ao Judiciário, e que essas investigações não restarão eternamente pendentes nas gavetas da administração, como verdadeiras espadas de Dâmocles sobre suas cabeças; assim também para que o juiz competente tenha pronto conhecimento de qualquer ato ilegal, arbitrário ou abusivo praticado pelo Estado — por seus agentes — e principalmente para preservar, o inocente, de acusações levianas.

Também porque a formação da culpa é parte preliminar do processo criminal e porque, por ela “…o Juiz competente conhece a existência, natureza e circunstâncias do delito, e quem seja o delinqüente” (Joaquim Ignácio Ramalho — Elementos do Processo Criminal — 1826 — Tipografia 2 de Dezembro — apud Princípios Fundamentais do Processo Penal — J. Canuto Mendes de Almeida, p. 38).

Ressalte-se ainda o fato de ter a Constituição Federal de 1988 entregue ao Ministério Público o controle externo da atividade policial sem fazer, entretanto, da Polícia, uma instituição subordinada ao parquet. O texto constitucional demonstra, na realidade, achar-se a ação policial submetida a duplo controle externo: pelo Ministério Público, a quem compete fiscalizar a correta busca da prova, e a efetiva observância, pelas autoridades policiais, dos direitos e garantias dos cidadãos envolvidos naquele procedimento — quer na posição de investigado, quer na posição de vítima — e pelo Judiciário, controle externo que pode ocorrer a priori (somente o juízo competente poderá decretar prisão preventiva) ou a posteriori, como, por exemplo, na concessão de ordem de habeas corpus, de ofício, em face de ato ilegal ou abusivo.

Daí porque, o encaminhamento do Inquérito Policial — da Polícia para o Ministério Público — mediante passagem dos autos pelo Judiciário — não se traduz em “extensão de um procedimento administrativo”, travestindo, como querem muitos, o juízo, em autoridade meramente administrativa, “intermediadora” da atividade dos demais órgãos participantes daquele procedimento. A passagem dos autos de inquérito pelo Judiciário é rito garantidor da cidadania.

Atente-se, ainda, que vem o Supremo Tribunal Federal exigindo, nas ações que originalmente perante ele tramitem, que o inquérito lhe seja encaminhado, por entender, aquela Suprema Corte de Justiça, que lhe cabe, privativamente,“a supervisão” das atividades desenvolvidas no inquérito. Aliás, não faltam acórdãos nesse sentido.

Que a Câmara dos Deputados debata essa matéria, compreende-se perfeitamente, pois é nesse palco que devem ser definidas as formas com que o Estado — em um Estado de garantias — deve relacionar-se com o cidadão, especialmente quando a ação do Estado acaba por atingir a cidadania, ainda que na defesa da sociedade.

Entretanto, a definição desse tema pelo Conselho Nacional de Justiça — matéria sabidamente submetida à reserva legal — pois desvencilha a atuação investigadora do Estado do controle pelo juízo competente — é matéria que efetivamente refoge à atuação e em especial à atividade normativa (ou mesmo “homologatória”) desse nóvel colegiado.

A ânsia desburocratizante, que tudo quer sintetizar, enxugar, em homenagem à economia, à celeridade, apenas coloca em evidência o quanto o congestionamento da Justiça, patrocinado pelo próprio Estado, aliado ao clima corporativista que se sucedeu à Constituição de 1988 — hoje, as garantias constitucionais das instituições são vistas como privilégio de seus membros, e não instituídas, como o foram, para colocar esses organismos públicos fora da influência do governo e de seus agentes, e para que exerçam seus misteres com isenção e espirito de justiça — poderão desvirtuar rotinas processuais asseguradoras de direitos e garantias individuais e mantenedoras do próprio Estado Democrático de Direito.

Espera-se, em homenagem aos princípios republicanos, que a Câmara dos Deputados, por onde ainda hoje tramita esse Projeto de Lei, o Ministério Público — instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado, que detém a incumbência da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis — e a Ordem dos Advogados do Brasil — que historicamente sempre esteve na vanguarda da defesa dos direitos e garantias do indivíduo — voltem atentamente os olhos para essa situação anômala que se criou em torno do sistema processual penal vigente, e que atinge o âmago das garantias individuais.

Enquanto isso, estará o cidadão — em especial o paranaense — e futuramente tantos outros, conforme se homologuem novos “termos de ajustamento de conduta” — distante da imparcialidade — característica do Poder Judiciário — e assim, enfraquecido, diante do sistema investigatório do Estado.
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Delza Curvello Rocha
Subprocuradora-Geral da República
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* Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico em 18 de agosto de 2007.

Fonte: Escritório Online

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