Por Taylisi de Souza Corrêa Leite
No fim da primeira década do século XXI, 60 anos após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, elaborada no ambiente de comoção do pós-guerra, ainda assistimos a inúmeras afrontas aos direitos humanos e à democracia, em nome da supremacia de interesses conservadores, mascarados sob o manto de uma suposta legalidade.
A celeuma em torno do processo de extradição do ex-militante italiano Cesare Battisti é apenas mais um exemplo emblemático de como a direita atua. Ele próprio, pivô de uma contenda que assumiu contornos monumentais, já declarou à imprensa não compreender tamanho drama internacional em torno de seu caso. Battisti, nos anos 1970, integrou o grupo italiano PAC (Proletários Armados pelo Comunismo), ligado às Brigadas Vermelhas, movimentos europeus revolucionários de esquerda, afeitos à luta armada.
Perseguido pelo governo reacionário da época, a cuja corrente política se liga o atual primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, o ex-militante foi condenado por crime de “organização subversiva”, e quatro homicídios, dos quais ele nega, sistematicamente, ser o autor. Não por acaso, ao requerer a extradição, o governo italiano omitiu a primeira condenação, o que, desde logo, enseja vício formal no pedido, por violação do dever de verdade processual.
Porém, para além do argumento de forma, há a clara constatação de que o governo italiano quer distorcer uma perseguição nitidamente política, solicitando a extradição de um suposto homicida, e não de um militante de esquerda. O ministro da Justiça brasileiro, Tarso Genro, coerente com sua própria história pessoal e com os princípios do Estado brasileiro, concedeu refúgio político a Battisti, entendendo que há fundado temor de perseguição política pairando sobre o fato.
Agora, a questão será dirimida pelo Supremo Tribunal Federal. Juridicamente, há um argumento invencível para a não concessão do pedido de extradição pelo Brasil — os crimes imputados ao italiano são anteriores à Lei da Anistia. A Lei Federal 6.683, de 28 de agosto de 1979, anistiou todos os brasileiros e estrangeiros que praticaram delitos até aquela data, dentro do regime de exceção da ditadura.
Isso beneficiou até mesmo os torturadores, os quais não tinham por escopo lutar por uma sociedade mais justa, como era o caso das Brigadas européias. O princípio da dupla incriminação veda a concessão de extradição se a conduta já foi anistiada pelo país requerido. No Brasil, a punibilidade de Battisti está extinta por força de lei. Se, aqui, ele jamais seria punido pela conduta, é juridicamente inadmissível sua extradição a outro país que pretende executar a pena — no caso, de prisão perpétua.
Até a sua prisão provisória, forjada pela Polícia Federal no Rio de Janeiro, é absolutamente ilegal. Mas, a despeito da força normativa de tais argumentos, não se sabe qual será a postura do STF, já que se trata de questão nitidamente política. Parte da imprensa tem denominado Cesare Battisti de “terrorista italiano”. Após setembro de 2001, o termo “terrorista” tem sido empregado por conservadores, toda vez que uma ação política incisiva contraria seus interesses. As ações terroristas, como as da Al-Qaeda, caracterizam-se por eleger alvos civis desprotegidos, sempre com o elemento surpresa, para espalhar pânico entre uma população.
Contudo, esse modus operandi não se confunde com a luta armada revolucionária, apesar desta forma de ação não ser elogiável, por apelar à violência. Aliás, o próprio Battisti, pai de família de 53 anos, reconhece o equívoco dessa via, afirmando que “caiu na cilada da luta armada”.
Terroristas são os ataques de Israel à Faixa de Gaza, o nazi-fascismo, as bombas norte-americanas em Hiroshima e Nagasaki. Mas os direitos humanos só valem para os opressores quando seus propósitos sórdidos serão alcançados. O pivô italiano abrigara-se na França, trabalhando como zelador para sustentar suas três filhas, quando o presidente francês Mitterrand lhe concedeu asilo político; todavia, ao assumir, Jacques Chirac deferiu a extradição.
Desde então, Battisti está no Brasil. Ora, o governo italiano, fortemente influenciado pela ideologia fascista que volta a assombrar a Europa, insiste em criar um incidente diplomático escabroso com o Brasil, devido à negativa de Tarso Genro. Berlusconi pediu o apoio de toda a União Européia, para incitar a animosidade entre nosso país e o velho continente, sendo prontamente apoiado pelo atual presidente da França, Nicolas Sarkozy, também de extrema direita, que quer fazer da demanda um trunfo eleitoreiro. Lembremos, portanto, meus caros, que, há muito, os interesses são os mesmos; o que muda são as estratégias.
Terror é o que causa um sistema excludente, vitimando milhões de famintos há séculos. Esperemos que, ao menos em nome da legalidade, o Supremo Tribunal Federal não reproduza o erro que cometeu com Olga Benário, conservando a respeitabilidade de nosso Estado e honrando nosso compromisso com a dignidade humana e a democracia.