Controvérsia acerca da imunidade tributária das entidades filantrópicas

Prescreve o § 7º do art. 195 da CF:

“§ 7º São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei”.

A imperfeição técnica redacional tem gerado dúvidas, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência.

Para os agentes do fisco o preceito constitucional estaria cuidando de uma isenção, porque a Lei nº 8.212/91, em seu artigo 55 traça os requisitos para a fruição da isenção dessas entidades beneficentes.

Deve-se afastar, desde logo, a interpretação de baixo para cima. O texto constitucional deve ser interpretado de conformidade com o conjunto de normas constitucionais privilegiando os princípios expressos e implícitos.

Trata-se de entidades beneficentes que integram o chamado terceiro setor, isto é, aquelas que figuram entre o poder público e o setor privado, secundando a ação do Estado no campo assistencial. Apesar da distinção terminológica, essas entidades beneficentes são as mesmas instituições de assistência social referidas no art. 150, VI, c da CF, beneficiárias de imunidade tributária, por desempenharem atividades cabentes entre as finalidades e obrigações do Estado. Trata-se, sem dúvida de caso de imunidade.

No Judiciário, ao menos, não há mais dúvida de que o texto constitucional refere-se à imunidade e não à isenção. Contudo, a Corte Suprema ainda não decidiu definitivamente quanto à natureza da lei referida na parte final daquele parágrafo 7º (Adins ns. 1902 e 2028).

Em sede de medida cautelar o STF entendeu que seria aplicável apenas o art. 14 do CTN, que estabelece os requisitos para a fruição da imunidade tributária. No mérito, contudo, há voto divergente no sentido de que o § 7º refere-se à lei ordinária, porque quando se tratar de lei complementar o texto é sempre expresso nesse sentido.

Não nos parece que possa prosperar essa linha de argumentação ao teor do disposto no art. 146, II da Constituição Federal que diz caber à lei complementar:

“…………………………………………………………….

II- regular as limitações constitucionais ao poder de tributar”.

Se a regulamentação das limitações constitucionais já está sob reserva de lei complementar claro está que o § 7º do art. 195 da CF não precisaria ser redundante.

Contudo, não é pacífica na doutrina o conceito de imunidade como limitação do poder de tributar.

O ilustre tributarista e Desembargador aposentado, Yoshiaki Ichihara, em seu livro Imunidades Tributárias resume as posições doutrinárias de diversos autores de nomeada (São Paulo: Atlas, 2000, p. 155 e seguintes).

Vejamos:

Para Souto Borges Maior a “imunidade é uma hipótese especial de não incidência constitucionalmente qualificada”.

Hugo de Brito Machado pondera que a “imunidade é o obstáculo decorrente de regra da Constituição à incidência de regra jurídica de tributação”.

José Eduardo Soares de Melo afirma que a “imunidade consiste na exclusão de competência da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para instituir tributos relativamente a determinados atos, fatos e pessoas, expressamente prevista na Constituição Federal”.

Ives Gandra da Silva Martins, por sua vez, advoga a tese de que “as imunidades, no direito brasileiro, exteriorizam vedação absoluta ao poder de tributar nos limites traçados pela Constituição”.

Para Luciano da Silva Amaro “as imunidades tributárias, a par de um complexo de balizamentos fundados na Constituição, delimitam a competência, vale dizer, traçam fronteiras do campo em que é exercitável o poder de tributar… São, por conseguinte, instrumentos definidores (ou demarcadores) da competência tributária dos entes políticos”.

Para Sacha Calmon Navarro Coelho “a imunidade é uma hetereolimitação ao poder de tributar. A vontade que proíbe é a do constituinte. A imunidade habita exclusivamente no edifício constitucional”.

Misabel Abreu Machado Herzi proclama que a “imunidade é regra constitucional expressa (ou implicitamente necessária), que estabelece a não-competência das pessoas políticas da Federação para tributar certos fatos e situações, de forma amplamente determinada, delimitando negativamente, por meio de redução parcial, a norma de atribuição de poder tributário”.

Ricardo Lobo Torres conceitua a imunidade como “limitação do poder de tributar fundada na liberdade absoluta, tendo por origem os direitos morais e por fonte a Constituição, escrita ou não; possui eficácia declaratória, é irrevogável e abrange assim a obrigação principal como a acessória”.

Para Roque Antonio Carraza “a imunidade tributária é um fenômeno de natureza constitucional. As normas que, direta ou indiretamente, tratam do assunto fixam, por assim dizer, a incompetência das entidades tributantes para onerar, com exações, certas pessoas, seja em função de sua natureza jurídica, seja porque coligadas a determinados fatos, bens ou situações”.

Paulo de Barros Carvalho, por sua vez, conceitua a imunidade como “a classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcançam situações específicas e suficientemente caracterizadas”.

Finalmente, Yoshiaki Ichihara, que resumiu as posições doutrinárias retro mencionadas, afirma que as “imunidades tributárias são normas da Constituição Federal, expressas e determinadas, que delimitam negativamente, descrevendo os contornos às normas atributivas e dentro do campo das competências tributárias, estabelecendo e criando uma área de incompetência, dirigidas às pessoas jurídicas de direito público destinatárias, com eficácia plena e aplicabilidade imediata, outorgando implicitamente direitos subjetivos aos destinatários beneficiados, não se confundindo com as normas fundamentais, vedações ou proibições expressas, com as limitações que decorrem dos princípios constitucionais, nem com a não-incidência” (ob. cit. p. 183).

Verifica-se do exposto que não há qualquer discrepância doutrinária no sentido de que a imunidade tem sede exclusivamente na Constituição Federal. Todos concordam, portanto, com a lição de Aliomar Baleeiro de que a imunidade é “disciplina constitucional de competência” (Limitações constitucionais ao poder de tributar: Rio de Janeiro: Forense, 1977).

Logo, qualquer desoneração tributária prevista na Constituição – isenção ou não-incidência – deve ser entendida como imunidade, dotada de característica da supremacia constitucional. A imunidade atua no campo da definição de competência tributária, ao passo que a isenção e a não-incidência juridicamente qualificada atuam no campo do exercício da competência tributária.

Para efeito de interpretação do § 7º do art. 195, conjugada com o art. 146, II da Constituição Federal, impõe-se examinar a questão levantada por alguns tributaristas de renome no sentido de que a imunidade não seria uma limitação do poder de tributar, mas, uma norma jurídico- constitucional que estabelece a incompetência tributária das entidades políticas componentes da Federação Brasileira. Assim entendem alguns estudiosos, aliás, com tendência de obter adesão de novos tributaristas, que não cabe cogitação de limitação do poder de tributar, porque inexistiria prévia definição de competência tributária. Argumentam que as normas imunizadoras atuam concomitantemente com as normas de competência, numa relação lógica e não temporal.

Penso, com a devida vênia, que a divergência é meramente de natureza terminológica. Não há razão, ao nosso ver, para rejeitar a conceituação clássica dada por Aliomar Baleeiro no sentido de que as imunidades são “limitações ao poder de tributar” (ob. cit.). Senão vejamos.

Primeiramente, não se pode afirmar, com precisão, que não existe prévia definição de competência. Se é verdade que a Constituição Federal como um todo é a aprovada em um único momento, não é menos verdade que seus textos são objetos de exame, discussão e aprovação em momentos distintos. Em primeiro lugar, define-se a competência dos entes Federados. Definindo-se a competência dispensa-se a definição de incompetência, pois a definição de competência contém o aspecto positivo e o aspecto negativo. Da mesma forma, definindo-se o crime dispensa-se a definição de não-crime. A conduta não tipificada na lei não constitui crime. Todos os patrimônios, rendas e serviços de qualquer pessoa seriam alcançados pela tributação por força dos princípios da universalidade e da generalidade da tributação não fora a norma imunizadora. O legislador constituinte, por razões político-sociais relevantes, colocou a salvo de tributos certos patrimônios, rendas ou serviços, às vezes, em relação a determinadas pessoas. Daí as imunidades objetivas e subjetivas.

Ao mesmo tempo que outorgou a competência impositiva que, por si só, configura uma limitação do poder de tributar, vedou o exercício dessa competência em relação a certos bens, rendas, serviços ou pessoas declarados imunes. Por isso, costumamos dizer que a imunidade representa uma sublimitação do poder de tributar.

Em segundo lugar, autores que advogam a tese da norma constitucional que define a incompetência tributária dos entes políticos, sustentam que as imunidades são normas que delimitam negativamente o campo de competência, o que pressupõe a existência prévia do campo de competência.

Ora, delimitar significa restringir o que já existe. Outrossim, afirmar que a imunidade é norma de incompetência tributária dirigida ao legislador, ao contrário da isenção ou da não-incidência, dirigidas ao contribuinte, impossibilitando ao legislador infraconstitucional o exercício da competência é o mesmo que afirmar com o Ives Gandra da Silva Martins de que as imunidades “exteriorizam vedação absoluta ao poder de tributar nos limites traçados pela Constituição”.

Como se vê, as divergências são apenas aparentes. No fundo, afirmar que a Constituição definiu a área de incompetência tributária é o mesmo que afirmar que a Constituição limitou o poder de tributação das entidades políticas em relação a certos patrimônios, rendas ou serviços declarados imunes.

Tirante as noções como imunidade implícita, desoneração de obrigações acessórias, revogabilidade das imunidades espelham posicionamentos equivocados, em todo o mais há uniformidade de pensamento acerca do conceito de imunidade tributária. As divergências, repita-se, são de natureza meramente terminológica.

Por derradeiro, é oportuno lembrar que o legislador constituinte não sacou do bolso de colete esses patrimônios, rendas ou serviços, mas outorgou-lhes a imunidade em função de escopos político-sociais relevantes, considerando, ainda, os direitos fundamentais como a liberdade de culto, a liberdade de pensamento etc. pelo que, a imunidade gera direitos subjetivos materiais aos beneficiados, insusceptíveis de supressão por Emendas (Adin nº 939 – DF, Rel. Min. Sydney Sanches, RTJ – 151/755).

Por isso, importante no exame da imunidade em epígrafe, quer seja, a das entidades beneficentes de assistência social, a interpretação teleológica, afastada por alguns doutrinadores, por entender que a imunidade resulta de mera opção política do legislador constituinte e que por isso ela pode ser revogada a qualquer tempo.

Concluindo, as entidades beneficentes de assistência social referidas no § 7º do art. 195 da CF são imunes não se aplicando dispositivos regulamentares da lei ordinária, mas apenas os requisitos estabelecidos no art. 14 do CTN.

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Kiyoshi Harada
jurista, professor e especialista em Direito Financeiro e Tributário pela USP

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