MP pode dar pareceres diferentes no mesmo caso

Recentemente, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça se deparou com um impasse: o Ministério Público atua nos processos como instituição única e, portanto, com um pensamento só ou cada promotor que atua no caso pode dar um parecer diferente? O julgamento na corte terminou empatado, mas, para as associações de promotores, a resposta é clara: os promotores podem sim agir de acordo com a sua cabeça.

Foi o que aconteceu num dos principais processos nas mãos do Supremo Tribunal Federal. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 foi ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) para que seja liberado o aborto de fetos anencéfalos. Em agosto de 2004, a Procuradoria-Geral da República deu seu paracer contra a ação. Para o então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, o aborto não pode ser permitido. Em julho deste ano, chegou novo parecer da PGR. Dessa vez, quem assina é a procuradora-geral interina, Deborah Duprat. Ao contrário de Fonteles, ela defendeu o aborto e, consequentemente, a procedência da ADPF.

Para as associações de promotores, não há nada de errado na discordância dos pareceres. O presidente em exercício da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Wellington Cabral Saraiva, como o Direito não é uma ciência exata, é perfeitamente compreensível as divergências nas interpretações dos membros da instituição. “A divergência é algo absolutamente normal. Se não houvesse, não precisaríamos também de tribunais superiores para discutir e revisar decisões das instâncias inferiores.”

Saraiva defende que o fato de haver duas posições da instituição sobre um mesmo tema não tira a credibilidade do MP e nem causa insegurança jurídica porque todas as manifestações são submetidas ao Judiciário, que é quem decide. “Os próprios tribunais mudam de opinião ao longo do tempo. O Supremo, por exemplo, editou recentemente a súmula das algemas, contrariando uma posição adotada por ele mesmo durante décadas”, argumenta. Para Saraiva, a discussão que se travou no STJ está equivocada porque o Judiciário não está vinculado à postura do Ministério Público e vice-versa. O MP denuncia e cabe ao juiz acolher ou não, observou.

José Carlos Cosenzo, presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), também defende a autonomia de cada membro da instituição. Para ele, houve um grande erro de interpretação por parte do ministro Nilson Naves entre princípio institucional e prerrogativas dos membros do MP. A independência funcional é um princípio estabelecido ao membro e não à instituição, diz Cosenzo, e nada impede que os membros tenham posicionamentos diferentes num mesmo processo.

Cosenzo ressalta que a independência funcional do promotor que assume um processo não fica submetida ao colega que atuou anteriormente na causa. “As opiniões podem ser diferentes desde que respeitem o principio da legalidade.” Para ele, se prevalecesse o entendimento de que não podem ser aceitos pareceres diferentes do MP, a figura do Procurador de Justiça seria de mero fiscal da lei. Cosenzo destaca que, na segunda instância, o procurador tem de se manifestar não como fiscal da lei, mas como Ministério Público, e pode divergir do promotor de primeira instância. “Caso o STJ não resolva o impasse, o MP deve ingressar com Recurso Extraordinário no Supremo, pois essa posição contraria os dispositivos constitucionais.”

O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Mozart Valadares Pires, também se manifestou a favor da autonomia de cada promotor, embora reconheça que a divergência entre os membros do MP pode tirar o crédito do MP perante a opinião pública. “Discordar, interpretar de maneira diferente é algo natural. Nas turmas do STJ, também existem posicionamentos diferentes sobre uma mesma matéria.”

Origem do debate
Os ministros da 6ª Turma do STJ discutiram se o MP pode se manifestar em determinada fase processual pela desclassificação de um crime e, posteriormente, por atuação de outro promotor, pedir a condenação por um crime mais grave. A discussão sobre essa possibilidade terminou empatada em dois a dois no tribunal. Os ministros, no entanto, aplicaram o entendimento mais benéfico ao réu e anularam acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Lá, os desembargadores aplicaram sanção mais grave aos réus depois de a sentença de primeira instância desqualificar o crime de associação para o tráfico de drogas.

Os dois réus foram denunciados por tráfico e um deles, também por porte ilegal de armas. O juiz de primeira instância desqualificou o delito de tráfico para uso de substância entorpecente e manteve a acusação de porte de armas, depois de consultar o Ministério Público sobre a possibilidade. O promotor que atuava no caso, mesmo depois de ter apresentado a denúncia, foi favorável à desqualificação. Em seguida, em recurso de apelação, o Tribunal do Rio revisou essa decisão com base em parecer de outro promotor e condenou ambos os acusados a três anos de reclusão em regime fechado por associação ao tráfico. Por isso, a defesa recorreu ao STJ.

A defesa alegou que, se a opinio delict — base com que o promotor se convence da justa causa para oferecer a Ação Penal — pudesse ser revista pelo promotor que sucedeu o anterior, os princípios do Ministério Público como unidade e sua indivisibilidade estariam completamente esvaziados, pois o órgão teria tantas opiniões delitivas quantos fossem seus integrantes. São princípios do MP a independência, a unidade e indivisibilidade: seus membros atuam como se fossem um, disse a defesa.

O relator do caso no STJ, ministro Paulo Gallotti, entendeu que mesmo o promotor tendo entendido que, na fase de alegações finais, a hipótese não seria de levar a uma condenação por tráfico, não existe obstáculo para que outro membro interprete os fatos de forma diferente e peça a condenação. O ministro Nilson Naves, que abriu a divergência, afirmou não ter dúvidas quanto à independência funcional do MP, mas disse ver com reservas essa irrestrita liberdade. Ele assinalou que uma coisa é a independência, outra coisa é o interesse em agir em determinados momentos processuais.

HC 39.780

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