Por Archimedes Marques
“Os preceitos jurídicos não são textos adamantinos, intratáveis, ensimesmados, destacados da vida, mas, ao revés, princípios vivos que, ao serem estudados e aplicados, têm de ser perquiridos na sua gênese, compreendidos na sua ratio, condicionados à sua finalidade prática, interpretados em seu sentido social e humano…” (Nelson Hungria)
O capítulo II do Código Penal Brasileiro trata dos crimes praticados por particular contra a administração em geral.
O crime de Usurpação de função pública está previsto nesse Diploma Legal como: Art.328. Usurpar o exercício de função pública. Pena – Detenção, de três meses a dois anos e multa. Parágrafo Único: Se do fato o agente aufere vantagem. Pena – Reclusão, de dois a cinco anos e multa.
A repressividade do artigo é destinada ao particular quando este pratica tal ilícito contra a administração em geral, embora para boa parte dos juristas, o próprio funcionário público possa também ser autor ou co-autor do crime.
Usurpar que é derivado do latim USURPARE, significa apossar-se sem ter direito. Usurpar a função pública é, portanto, exercer ou praticar ato de uma função que não lhe é devida.
A punição se dá quando alguém toma para si, indevidamente, uma função pública alheia, praticando algum ato ou vontade correspondente, entretanto, a função usurpada há de ser absolutamente estranha ao usurpador para a configuração do crime.
Por função, entende-se que é a atribuição ou conjunto de atribuições atinentes à execução de serviços públicos. Todo funcionário público ou assemelhado tem a sua função definida em Lei específica ou Estatuto.
O artigo 327 e seu Parágrafo único do Código Penal definem as modalidades de funcionário publico e suas equiparações ou assemelhados, quando reza no seu bojo: Considera-se funcionário público, para os efeitos penais quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal.
Por cargo, entende-se cargo de comissão ou cargo de confiança que em determinados Poderes podem ser exercidos por particulares, ou seja, por pessoas distintas do real funcionalismo público estatal, mas que por semelhança e por força de Lei, agem como se funcionários fossem.
Já as entidades paraestatais, conforme preceitua o jurista GOMES NETO, “são as chamadas autarquias, ou entidades que não são bem públicas nem bem privadas, mas intermédias, participando ora mais ora menos de uma e de outra das conceituações respectivas previstas no Código Civil.”
O crime é consumado com a prática do primeiro ato de ofício, independente do resultado, ou seja, não importando se o exercício da função usurpada é gratuito ou oneroso.
Admite-se a tentativa do crime, desde que a prática do ato criminoso exija um caminho, ou seja, haja uma vertente de intenção de lucro qualquer ou prestígio do agente ativo do delito.
No parágrafo único do artigo 328 do Código Repressivo há a figura qualificada do delito cuja pena passa a ser de reclusão de dois a cinco anos e multa para o agente usurpador da função pública que auferir algum tipo de vantagem com o seu ato criminoso.
Nesse caso, o legislador não expressa a categoria da vantagem, daí, portanto, subtender-se tratar de qualquer tipo, seja ela de cunho econômico ou não. Desde que haja vantagem auferida no ato criminoso configura-se essa qualificadora que passa da pena de detenção para reclusão.
Do mesmo crime, há, portanto, dois tipos de penas, ou seja, detenção ou reclusão, a depender do resultado, e em assim sendo, há também duas espécies diferentes de processo. Pela previsão da pena do caput do art.328 que é a detenção de três meses a dois anos, por ser uma infração de menor potencial ofensivo e por estar em acordo com o dispositivo da Lei 9.099 de 26.09.1995 o trâmite do processo corre nos Juizados Especiais Criminais, cabendo então a proposta de pena antecipada e suspensão condicional do processo, ou seja, a configuração da transação penal assim prevista. Já com o advento da qualificadora que suscita a pena de reclusão de dois a cinco anos, o processo passa a ser da Justiça Criminal comum, sendo assim, os dois benefícios citados, bem como, a transação penal, incabíveis.
No sentido de melhor explicar sobre a questão do agente ativo do crime ser um particular alheio ao serviço público não existe dúvida alguma, entretanto, quanto ao fato dele ser também um funcionário público e usurpar outra função diferente da sua, há de se acolher entendimentos de alguns conceituados juristas, ou seja, usurpar, na expressão de GUILHERME DE SOUZA NUCCI “… significa alcançar sem direito ou com fraude”, no caso, alcançar a função publica, objeto de proteção do Estado. Ensina ainda o nobre jurista, que o sujeito ativo desse delito pode ser qualquer pessoa, inclusive o servidor público, “… quando atue completamente fora da sua área de atribuição.”
Do mesmo modo, ensina o mestre JULIO FABRINI MIRABETE, que o “… sujeito ativo do crime é aquele que usurpa função pública, em regra o particular, mas nada impede que um funcionário público o faça, exercendo função que não lhe compete…”
Na mesma linha de direção entende MAGALHÃES NORONHA: “… podem também ser praticados por funcionário público que, então, não age como tal; não atua no desempenho de suas funções, e é, por isso, considerado particular.”
E ainda é do mesmo entendimento, RUI STOCO, quando leciona que ao particular “… se equipara quem, embora seja funcionário público, não está investido na função de que se trata.”
A Jurisprudência é ampla nesse sentido, embora haja decisões contrárias a esse entendimento, pois o Direito não é uma ciência exata.
Acolhendo alguns excertos da majoritária Jurisprudência pátria escolhemos a seguinte ilustração: TACR SP: “O crime de usurpação de função pública não é de natureza funcional, desde que, na previsão do art. 328 do Código Penal, praticado por particular contra a Administração. Mas pode ser cometido por funcionário público – ou assemelhado – que atue dolosamente além dos limites de sua função, comprometendo, assim, o prestígio e o decoro do serviço público”. (RT 637/276)
TJ SP: “Diz-se, com acerto, que o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa penalmente imputável, inclusive quem exerça determinada função pública, quando usurpe o exercício de outra natureza diversa”. (RT 533/317)
Há ainda o ato praticado pelo próprio agente público titular da sua função que esteja impedido de exercer sua função, que, entretanto, não pratica tal ilícito, conforme preclara JULIO FABRINI MIRABETE: “Quando aquele que pratica o ato é titular da função, mas se acha suspenso dela por decisão judicial, ocorre o crime previsto no art. 359 do Código Penal,” ou seja, crime de desobediência a decisão judicial. Entretanto, como sabiamente afirma NELSON HUNGRIA, “se a suspensão foi decretada por ato administrativo, nada mais se poderá reconhecer que uma falta disciplinar.”
Quanto à co-autoria do crime ora analisado, não há o que se discutir, pois tanto o particular quanto o funcionário publico podem assim proceder, respondendo cada qual, pelo crime dentro da sua proporcionalidade e razoabilidade.
Conclui-se pelo pensamento e entendimento majoritário de grandes juristas e estudiosos do Direito, que o funcionário público, pode sim, ser o agente principal, o agente ativo do crime de usurpação de função pública, não fosse assim, por exemplo, os Policiais praticariam atos específicos dos Delegados de Polícia, os auxiliares da Justiça praticariam atos dos Juízes, os funcionários do Ministério Público praticariam atos do Promotor de Justiça e assim por diante dentre e entre todos os Poderes Públicos, o que seria um verdadeiro caos administrativo e social.
*Dr. Archimedes Marques – Delegado de Polícia. Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Publica pela UFS
Archimedes-marques@bol.com.br
Referências Bibliográficas e sites pesquisados:
STOCO, Rui: Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2001.
NORONHA, Magalhães: Direito Penal. Saraiva. São Paulo, 1995.
PELLEGRINI, Ada Grinover. MAGALHÃES, Antonio Gomes Filho. SCARANCE, Antonio Fernandes. GOMES, Luiz Flávio: Juizados Especiais Criminais. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2002.
MIRABETE, Julio Fabrini: Código Penal Interpretado. Editora Atlas: São Paulo, 2000.
NUCCI, Guilherme de Souza: Código Penal Comentado. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2003.
GOMES NETO. F.A.: Novo Código Penal brasileiro. Editora Leia livros Ltda: São Paulo, 2000.
HIUNGRIA, Nelson: Comentários ao Código Penal. Forense: Rio de Janeiro, 1958.
JESUS, Damásio E. de: Direito Penal. Saraiva: São Paulo, 1995.
FUHRER, Maximiliano Roberto Ernesto: Código Penal comentado. Malheiros: São Paulo, 2007.
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