A relativização da coisa julgada e a tutela jurídica do patrimônio mínimo

Nas várias situações que envolvem as relações jurídicas e comerciais em geral, não raras são as vezes em que um determinado cliente chega ao escritório desesperado e quando conta a história, o advogado se depara com uma situação “quase” perdida.

Ora, mas por que quase perdida?

Justamente, porque há teses belíssimas que são levantadas pelos expoentes do Direito e que se amoldam perfeitamente aos casos concretos, desde que o advogado saiba perceber tal hipótese.

Explico.

Nos dias atuais, muito se tem falado acerca da relativização da coisa julgada, ou seja, mesmo que uma determinada ação tenha sido julgada definitivamente, ainda assim, caberia uma análise mais adequada sobre o tema, caso houvessem princípios constitucionais que fossem violados, princípios estes mais importantes na escala de institutos jurídicos tutelados pelo Estado.

Por outro enfoque, quando se fala em relativizar a coisa julgada, não se está querendo dizer que o instituto não deve ser aplicado. Ao contrário, ele é imprescindível nas relações jurídicas, de modo que, sem ele, instaurar-se-ia o caos jurídico e a insegurança nacional nas relações comerciais.

A relativização quer dizer que há direitos ou princípios fundamentais do ser humano que foram violados e merecem uma melhor análise em contraposição a coisa julgada e ao direito da parte que se beneficiou outrora.

Este é o ponto. Este é o nó górdio. Não há violação ao instituto, mas sim batalha de direitos em outra oportunidade judicial, visando a melhor solução do caso concreto.

Para melhor ilustrar o caso, vou exemplificar.

Vamos supor que uma determinada pessoa física, no passado, tenha elaborado um contrato de empréstimo mercantil em prol de uma pessoa jurídica, assinando uma cédula de crédito comercial, e tenha ofertado em hipoteca sua única residência, vindo a sofrer, no futuro, uma constrição judicial, após a pessoa jurídica não arcar com os ônus do contrato.

Pois bem, na execução, o advogado da pessoa física opôs, como defesa, embargos à execução, alegando dentre outras várias matérias, a impenhorabilidade do bem de família, com base única e exclusivamente no artigo 1º da Lei 8.009/90, sem argumentar o aspecto de que o proprietário ofereceu seu único bem imóvel (residência) em prol de um financiamento direcionado a pessoa jurídica.

O processo tomou seu rumo normal e após decisão em 1ª, 2ª e 3ª instância, os embargos foram rejeitados na sua totalidade, sendo considerada legal a penhora, face a regra contida no artigo 3º, inciso V da Lei 8.009/90.

Ou seja, a defesa dessa pessoa física não obteve resultado positivo, com formação de coisa julgada material, de modo que, de acordo com o procedimento normal do processo de execução, o credor iniciará imediatamente a tentativa de alienação judicial do bem imóvel, mediante alienação particular, ou hasta pública, ou outra forma como melhor lhe convier.

De acordo com o instituto da coisa julgada, pouca coisa ou quase nada restaria ao proprietário do bem imóvel, a não ser pagar o débito.

Mas é aí neste ponto que entra a relativização da coisa julgada que, com a junção de outro instituto jurídico, qual seja, a tutela jurídica do patrimônio mínimo, podem fazer toda a diferença.

E, para quem leu a formosa obra intitulada “Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo”, de autoria do festejado Dr. Luiz Edson Fachin, sabe muito bem do que estou a falar.

Aliando-se estes 2 (dois) conceitos jurídicos, se tem uma universalidade imensa de matérias para se cogitar numa eventual ação anulatória.

Primeiramente, há que se atentar para o fato de que determinada matéria jurídica, sob o enfoque de que o único bem imóvel não foi ofertado em prol da entidade familiar e sim de terceiro, não foi agitada nos embargos à execução, motivo pelo qual é perfeitamente viável sua discussão em outra ação, de acordo com o disposto nos artigos 468 e 469, inciso I do Código de Processo Civil.

A verdade dos fatos e o fundamento técnico jurídico utilizado outrora não é o utilizado numa eventual ação posterior, não havendo que se falar em coisa julgada (art. 469, II e I CPC), ou então, deve haver uma relativização da coisa julgada, porque a situação real não foi contada e não foi debatida, bem como o processo ainda se prolonga no tempo, não havendo resolução até o presente momento.

O artigo 469, inciso I e II do Código de Processo Civil diz o seguinte: “art. 469) Não fazem coisa julgada:
I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da senteça;
II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;”

Nesse contexto, o fundamento para relativizar a coisa julgada, está na sensível violação aos Princípios Constitucionais da Proporcionalidade, da Razoabilidade, da Propriedade, e da Dignidade da Pessoa Humana, os quais se enquadram dentro da Tutela Jurídica do Patrimônio Mínimo.

Desse modo, a cláusula contratual em si, de constituição da hipoteca, e posterior penhora são nulas de pleno direito, haja vista a aplicação da regra constante no artigo 1º da Lei 8.009/90 e não aplicação da exceção contida no artigo 3º, inciso V da referida lei.

O ato do devedor, pessoa física, de oferecer em garantia hipotecária determinado bem imóvel, foi somente no intuito de levar adiante a efetivação do negócio jurídico entabulado entre as partes, fato este, de conhecimento e, normalmente, de total imposição da instituição financeira, não podendo haver supedâneo legal que faça com que a regra jurídica insculpida na supracitada lei, seja desconsiderada e invertida em favor do banco.

Assim, quando há manifestação da vontade viciada, é lógico que a garantia em questão não merece vingar, diante de princípios fundamentais encartados na Carta Magna, quais sejam, o da Liberdade e da Igualdade (art. 5º, caput e inciso II da CF).

Ademais, há que se ressaltar que o direito sobre a penhorabilidade ou não sobre o bem de família, trata-se de matéria de direito indisponível, pois o caráter de preservação da entidade familiar, vem suplantar quaisquer tipos de discussões a título de mera vontade pecuniária, delimitando o campo de atuação da vontade das partes envolvidas no negócio.

Determinada matéria é tutelada pelo Estado, tendo em vista que o cidadão, muitas vezes em seu cotidiano, enfrenta situações deveras difíceis e constrangedoras, não dispondo totalmente de livre capacidade para com os seus atos.

Uma melhor análise do Direito necessita ser efetuada em casos desse jaez, pois o que está em jogo é a própria Dignidade da Pessoa Humana.

Os códigos e as leis não podem ficar adstritas tecnicamente a situações que beiram a insanidade mental dos mais favorecidos.

O Direito deve andar e caminhar sempre em prol do HOMEM, como ser que é, titular de direitos e personalidade com atributos patrimoniais mínimos de dignidade.

Na visão de Carlos Fernandez Sessarego, na obra Derecho y Persona, este traça aspectos eminentemente humanísticos em relação a tutela do Direito e sua relação com o patrimônio em si, os bens dos seres humanos.

No Brasil, como já dito, em obra brilhante intitulado de Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, e talvez a melhor do gênero, o festejado Dr. Luiz Edson Fachin segue a mesma linha do escritor espanhol ao proclamar que o ser humano deve ser protegido de si mesmo, ou seja, deve receber a tutela do Estado, acima de qualquer coisa, outorgando-lhe o mínimo de dignidade possível.

Em outras palavras, não devemos ficar amarrados a ideia de lei aplicável indistintamente as situações existentes, mas sim, a justa aplicação do Direito, conforme os sujeitos envolvidos no caso e os bens em jogo, tais, como a vida, honra e patrimônio mínimo para proporcionar dignidade e decência ao homem, sendo atributo da personalidade deste.

O ser humano é maior e deve ser respeitado na sua condição mínima de ser e ter, pelo menos o mínimo para sua sobrevivência e dignidade perante outrem.

A coisa julgada neste caso não é razoável sob o ponto de vista constitucional e tampouco produz efeitos produtivos a sociedade como um todo, pois ela dilacera uma família e o sentimento maior que traz consigo todo ser humano, que é a honra, o respeito e a dignidade na sua vida cotidiana em sociedade.

É humilhante um pai de família ter que abandonar sua casa, único bem que adquiriu ao longo dos anos de trabalho árduo e incessantes para sobreviver nesta selva.

As decisões não podem mais ser imutáveis ao ponto de cometer injustiças atrozes à dignidade do ser humano, ferindo princípios constitucionais basilares.

Não é Proporcional ao direito da instituição financeira de receber um crédito de terceiro, já devidamente constituído, a perda do Direito à Propriedade da pessoa física e a Garantia ao Mínimo de Dignidade Possível do Ser Humano (art. 5º, XXXV e LIV da CF), pois aquele fundamento constitucional é de menor importância em relação a estes últimos fundamentos constitucionais.

Em confronto de direitos, o melhor direito, o direito mais justo e humano deve prevalecer.

É aqui que também entra a máxima de Eduardo Couture, que disse: “Luta pelo Direito, mas quando encontrares o Direito em confronto com a Justiça, luta pela Justiça.”

Por isso que esse princípio é sempre utilizado pelos Vigorosos Magistrados de assaz envergadura moral e jurídica, os quais sempre julgam com bom senso e são normalmente adeptos ao bom e irretocável sentimento de Prudência e Justiça!

*Éderson Ribas Basso e Silva é advogado na cidade de Umuarama-PR, formado pela UNIPAR e especialista em Direito Processual Civil pela UFPR

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