Desembargadores paulistas questionam constitucionalidade de lei que classifica adulteração de remédio como crime hediondo

A 9ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo suscitou incidente de inconstitucionalidade do artigo 273 do Código Penal. Para a corte, ele contraria o princípio da proporcionalidade e criou um absurdo jurídico. O caso agora vai ser analisado pelo Órgão Especial.

A justificativa é que, ainda que legalmente definida como crime hediondo, a venda de medicamento adulterado, falsificado ou sem autorização da Anvisa não tem o mesmo grau de gravidade de crimes como homicídio, estupro ou tráfico de entorpecentes, cujas penas cominadas são inferiores às previstas no artigo 273.

Foi o julgamento do recurso de um réu que fez os desembargadores se depararem com a dúvida. José Gilvan Santos foi condenado a 12 anos de reclusão, em regime inicial fechado, pelos crimes de venda de produtos piratas e importação e comércio de medicamentos sem registro.

O réu foi flagrado pela Polícia de posse de 12 DVDs e 37 CDs reproduzidos com violação de direito autoral. O material estava na loja JG Presentes. No mesmo local, a Polícia encontrou 160 comprimidos de 100 mg de Potenciem Sildenafilcitrato, 90 comprimidos de Potent 100, e 100 comprimidos de Rheumazin Forte. Todos os remédios foram fabricados no Paraguai, sem registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Os dois primeiros integram o princípio ativo do Viagra, e o último é um antiinflamatório e relaxante muscular.

Por conta dos delitos, o réu foi condenado pelo crime de violação de direitos autorais à pena de dois anos de reclusão e ao pagamento de 10 dias-multa. Quanto à venda de medicamento adulterado, considerada crime hediondo, o acusado terá de cumprir punição estabelecida pelo juiz de primeira instância em 10 anos de reclusão e 10 dias-multa.

Gilvan Santos recorreu ao Tribunal de Justiça pedindo sua absolvição, alegando insuficiência de provas. No recurso, afirmou que os medicamentos eram para uso próprio, e que ele não era o responsável pela loja onde foram encontradas as cópias piratas.

A turma julgadora não aceitou os argumentos, afirmando que as provas eram coesas e insuspeitas. “Quanto à versão exculpatória sustentada pelo recorrente ao longo da persecução penal, em relação aos medicamentos apreendidos, no sentido de que se destinavam ao uso próprio, não comporta acolhimento”, disse o relator da apelação, desembargador Nuevo Campos.

Ao descartar o argumento da defesa quando aos remédios, o relator levou em conta a quantidade e a diversidade dos medicamentos que, na opinião de Nuevo Campos, eram indicativas de comércio clandestino. Mas o relator não concordou com as penas aplicadas.

Embora não tenha feito oposição à pena fixada para o delito de venda de material pirata, ele discordou da pena para o crime de venda de medicamento sem autorização da Anvisa. Para o relator, o caso era de reconhecimento do incidente de inconstitucionalidade por conta da inovação da Lei 9.677/1998.

“A atividade legislativa, no âmbito do Estado Democrático de Direito, possui limites definidos pelo princípio da legalidade, de cuja vertente material é corolário do princípio da proporcionalidade”, justificou Nuevo Campos. Para ele, formalmente, a legalidade da inovação é inquestionável. “Entretanto, sob o prisma substancial, é inquestionável a ausência de proporcionalidade das penas cominadas com a gravidade própria das condutas descritas no tipo penal”, completou.

Ele concordou que as condutas previstas no artigo 273 do Código Penal são graves. Mas, em sua opinião, ainda que legalmente definida como crime hediondo, a venda de medicamento adulterado não tem o mesmo grau de gravidade de homicídio, estupro ou tráfico de drogas.

A Lei 9.677/1998, que alterou o artigo 273 do Código Penal, surgiu com os vários casos de falsificação de remédios ocorridos em 1998, e do forte apelo da mídia. A pressão acabou levando o Congresso Nacional a aprovar a nova regra. Depois de mais de 12 anos, há pedidos para que o Judiciário declare inconstitucional o artigo 273 do Código Penal por contrariar o princípio constitucional da proporcionalidade.

Antes da edição da Lei 9.677, o artigo 273 do CP tinha a seguinte redação: “Alterar substância alimentícia ou medicinal: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa”. Com a modificação imposta pela nova regra, o artigo prescreve o seguinte: “Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais. Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa”.

Em seguida, a Lei 9.695/1998 incluiu a infração prevista no artigo 273 do Código Penal no rol dos crimes hediondos. Ou seja, o acusado que alterar substância alimentícia ou medicinal passou a ter o mesmo tratamento dado a homicidas, traficantes e estupradores.

O problema vai mais longe. A Lei 9.677, além de aumentar desproporcionalmente a pena, incluiu os parágrafos 1º-A e o 1º-B ao artigo 273 do Código. Esses parágrafos prevêem que está sujeito às mesmas penas do caput — reclusão, de 10 a 15 anos, e multa — o agente que venha a importar, vender, expor a venda, ter em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribuir ou entregar para consumo produtos incluídos nos incisos do citado artigo.

Hoje, se uma pessoa importar produto destinado a fim medicinal sem o devido registro — mesmo que não seja adulterado —, estará sujeita a uma pena de, no mínimo, dez anos de reclusão. Além disso, a terminologia “fim medicinal” engloba produtos como shampoos e cremes de barbear.

Apelação 990.09.152620-7

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