Atribui-se a Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista, a seguinte frase: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.
No Direito, às vezes, ocorre algo semelhante, mas não como uma mentira deliberada. Repete-se à exaustão certos enunciados jurídicos que mesmo sem maiores ponderações sobre aquilo que se está afirmando, tais enunciados acabam considerados verdade sacrossanta e incontestável.
Longe da intenção deliberada e direcionada de Goebbels em ludibriar, na área jurídica ocorre algo bem mais próximo daquilo que observou Santo Agostinho ao reparar que “quem enuncia um fato que lhe parece digno de crença ou acerca do qual forma opinião de que é verdadeiro, não mente, mesmo que o fato seja falso”, ou seja, não há má-fé, mas sim uma apreensão irreal da realidade, na maioria dos casos em decorrência da falta de análise mais detida ou simplesmente por preguiça mental de se debruçar com mais cuidado sobre determinado caso, afinal é muito mais fácil lançar mão de um enunciado já pronto do que estudar a fundo um problema até se obter a prova real da solução.
Um bom exemplo disso é o enunciado sempre repetido de que “Não cabe usucapião de terra de devoluta” ou “Não cabe usucapião de bem público”.
Mas será que realmente é assim, será verdade que aquele que por anos e anos a fio tem ou teve a posse, sem qualquer objeção de fato ou questionamento judicial, de uma área rural ou mesmo um terreno urbano não poderá adquirir a propriedade plena e definitiva do imóvel por usucapião simplesmente por estarem localizados em área considerada terra devoluta ou pertencente ao Estado?
Em verdade, dizer que não se pode adquirir a propriedade por usucapião de imóvel localizado em área considerada como devoluta é um mito a ser desmascarado, principalmente na região oeste do nosso Estado, onde, alguns anos atrás, de uma hora para outra, como num passe de mágica, grandes áreas de terra passaram a ser consideradas devolutas. Mas isso é tema para outra ocasião.
Primeiramente vale esclarecer que dentre estes bens integrantes do domínio público existem aqueles que estão afetados a um fim público, e outros não. Assim, uma rua é exemplo de bem afetado a um fim público, pois é óbvia a sua destinação de servir a coletividade, no caso, como via de passagem de veículos e pessoas. Mas outros existem, embora considerados públicos, simplesmente não estão destinados à nada, como abandonados. Essas seriam as devolutas, que não pertencem ao particular e tampouco encontram-se destinadas a fins administrativos específicos, isto é, são terras não aplicadas ao uso comum (ruas, praças, etc.) nem ao uso especial (museus, escolas, etc.), como áreas sem dono. Não estão registradas como públicas!
Ora, então se a terra não está registrada como pública, não pode ser tida como presumidamente pública por tratar-se de terra devoluta, mas sim, nos termos da lei civil é terra de ninguém e portanto, usucapível.
Somente quando houver prova cabal, por parte do ente público de que a terra em questão é pública, não haverá a possibilidade de aquisição da propriedade plena pela usucapião. Não existe presunção de que determinada área de terra seja pública.
Em suma, cabe ao Estado, provar que a terra é pública e não ao particular. Então, se o Estado não lograr êxito em provar que o imóvel o qual está se pretendendo adquirir a propriedade plena por meio da usucapião lhe pertence, caso a parte interessada preencha os demais requisitos exigidos em lei (intenção de domínio, ausência de oposição e tempo de posse), tal pretensão haverá de lhe ser deferida em juízo, como aliás repetidas vezes já decidiu o Supremo Tribunal Federal.
Mas e se houver esta prova de que o imóvel, embora não afetado, é bem público, ou seja, e se o Estado tiver alguma prova de que o imóvel lhe pertence (por exemplo, um registro imobiliário), será que cai por terra qualquer possibilidade de usucapião?
De fato, a Constituição diz em seu art. 183, parágrafo 3º que “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”, regra repetida no art. 102 do Código Civil. À primeira vista, portanto, parece claro que nessa situação, isto é, quando houver prova de que o imóvel possa ser considerado “bem público”, teriam toda razão aqueles que gostam de entoar o mantra, para eles sagrado: “não cabe usucapião de imóvel público”.
Porém, não é bem assim.
O direito real de propriedade pode ser analisado de acordo com os direitos exercidos pelo proprietário sobre seu bem. O art. 1.228 do Código Civil elenca tais direitos como sendo os de usar, gozar, dispor e reivindicar o bem. A faculdade de usar (utendi) consiste no poder de servir-se da coisa, explorando-a diretamente ou por intermédio de terceiro. Gozar (ius fruendi), compreende o poder de extrair do bem todos os rendimentos que ela é capaz de produzir. Assim, posso usar meu imóvel de modo a alugá-lo, e dele gozar os rendimentos dessa locação, percebendo os aluguéis (frutos civis). Dispor (ius abutendi) consiste no poder de desfazer-se da coisa, aliená-la a terceiro, seja a título oneroso ou gratuito. E por fim, reivindicar é a prerrogativa do proprietário de excluir a ingerência de terceiros sobre coisa sua, é o poder de buscar a coisa que esteja indevidamente em mãos alheias.
Destarte, propriedade plena é a reunião, na pessoa de seu titular, de todos os poderes acima mencionados.
Justamente por essa possibilidade de desdobramento dos poderes inerentes à propriedade plena é que nosso ordenamento permite que a pessoa adquira somente parcelas deles, como é o caso do usufruto, por meio do qual se pode conferir a alguém todos esses poderes, menos o de dispor e do reivindicar.
Nessa linha, também é possível por meio da usucapião adquirir tanto a propriedade plena como parcelas desse direito de propriedade, notadamente aqueles consistentes em usar, gozar e ter fruição sobre a coisa, exercendo sobre ela o chamado domínio útil.
Ora, então determinado imóvel, ainda que conste alguma prova de ser pertencente ao Estado, se o mesmo não está afetado a nenhuma destinação pública, como abandonado fosse, não exercendo diretamente o Estado sobre ele o direito de propriedade, ou pela destinação ao uso comum, ou especial, ou pelo conferimento de poder de uso ou posse a alguém, se um particular dele se apossa e o utiliza, por exemplo, para moradia, este é quem de fato está a usar e a gozar do imóvel, exercendo sobre ele o domínio útil.
Neste cenário, implementadas os condições de qualidade e de tempo de posse exigidos em lei, poderá esse possuidor pleitear a usucapião do domínio útil do imóvel, sem que isso signifique qualquer infração à regra constitucional, pois o bem não deixará de pertencer ao Estado, apenas seu domínio útil (seu uso) será de titularidade do particular. Não haverá aquisição da propriedade plena, mas apenas de parcela desse direito real de propriedade. Haverá um desdobramento dos poderes de proprietário, mas o Estado continuará sendo seu titular, tornando-se nu-proprietário, e o particular exercendo o domínio direito sobre o bem.
Nesse sentido foi o entendimento do legislador ao estabelecer no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) que o Estado deverá se valer, como instrumento de política urbana, dentre outros, da concessão de direito real de uso e da concessão de uso especial para moradia (art. 4º, inciso V, alíneas “g” e “h”). Ora, então se o próprio Estado contempla o dever de conceder esse direito real de uso e moradia sobre seus bens, inclusive como forma de concretizar o direito fundamental de moradia (art. 6º da Constituição), nada impede que o particular adquira tal direito real por meio da usucapião.
Com esse escopo de implementar o direito fundamental à moradia, a Lei 11.977/2009, que traçou as bases legais do programa “Minha Casa, Minha Vida”, trouxe normas a respeito da legislação fundiária de assentamentos urbanos, estabelecendo em seu art. 46 que “a regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. E dentre essas medidas jurídicas, a lei inclusive instituiu uma interessante nova espécie de usucapião, porquanto para essa nova modalidade, dispensou a propositura de ação judicial, facultando àquele que tenha obtido do poder público um título de “legitimação de posse”, requerer diretamente ao oficial de registro de imóveis, a conversão desse título em registro de propriedade (“Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal”).
Note-se que a legitimação de posse, no termos do art. 59 dessa mesma lei, é um direito conferido em favor do detentor da posse direta para fins de moradia.
Ora, se quem exerce a posse direta para fins de moradia de um imóvel público (evidentemente um imóvel não afetado) pode obter legitimação dessa posse, e empós, decorridos cinco anos, a propriedade plena desse imóvel mediante simples requisição ao oficial do registro de imóveis, evidentemente nada impede, caso seja necessário diante de uma inércia do poder público, que busque obter tais direitos pela via judicial.
Portanto, tudo isso conduz à conclusão de que mesmo tratando-se imóvel considerado público, é perfeitamente possível sobre ele incidir a usucapião, pelo menos para obtenção de uma parcela menor do direito de propriedade que é o direito de uso especial para moradia.
O uso dessas medidas jurídicas aqui discutidas resolveria a situação de muitos moradores da cidade de Primavera (SP), onde já há bastantes anos várias famílias exercem a posse para fins de moradia de casas construídas pelo Estado para os trabalhadores empregados na construção da hidrelétrica de Porto Primavera, sendo que de tempos em tempos são importunados pela CESP com ameaças de retomada dos imóveis, despejos, etc.. Não consta que tais imóveis tenham regular titulação, de maneira que esses moradores podem regularizar a situação de suas casas por meio da usucapião, livrando-se de uma vez por todas dos eventuais dissabores que CESP tenta causar, seja porque não há prova de que esses imóveis sejam públicos, seja porque, pelo tempo de posse, independentemente de trataram-se de imóveis públicos ou particulares, têm direito ao domínio útil ou ao uso especial de moradia.
Com cuidado, nem sempre uma mentira contada mil vezes será verdadeira.
Paulo José Castilho é advogado em São Paulo