A aplicação da Lei 12.015/2009, que definiu que os crimes de atentado ao pudor e de estupro são a mesma coisa e passíveis de uma única pena, ainda é uma incógnita. No Superior Tribunal de Justiça, as turmas que tratam de processos criminais têm entendimentos opostos, assim como acontece nos Tribunais da Justiça do país. Há a corrente que defende a aplicação de penas separadas, pois entende que são crimes do mesmo gênero, mas não da mesma espécie. Outros, concluem: estupro e atentado ao pudor contra a mesma vítima, em um mesmo contexto, caracterizam apenas um crime.
A divergência no STJ começou recentemente, no dia 22 de junho, quando a 5ª Turma decidiu que o acusado deve ser condenado pelos dois crimes separadamente. Segundo a relatora do processo, ministra Laurita Vaz, em seu voto, o estupro e o atentado ao pudor não podem ser considerados a mesma coisa, pois, são crimes do “mesmo gênero, mas não da mesma espécie”. Segundo ela, é impossível reconhecer a continuidade delitiva entre as condutas.
Durante julgamento de Habeas Corpus, a 5ª Turma adotou a tese de que o novo crime de estupro é um tipo misto cumulativo, ou seja, as condutas de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, embora reunidas em um mesmo artigo de lei, com uma só cominação de pena, serão punidas individualmente se o agente praticar ambas, somando-se as penas. O colegiado entendeu também que, havendo condutas com modo de execução distinto, não se pode reconhecer a continuidade entre os delitos.
Para a ministra, “antes da edição da Lei 12.015/2009, havia dois delitos autônomos, com penalidades igualmente independentes: o estupro e o atentado violento ao pudor. Com a vigência da referida lei, o artigo 213 do Código Penal passa a ser um tipo misto cumulativo e não continuado”.
O tema foi discutido no julgamento de um pedido de HC de um homem condenado a 15 anos de prisão por estupro e atentado violento ao pudor, na forma continuada, contra menor de 14 anos. A tese foi apresentada pelo ministro Felix Fischer em voto-vista. O próprio ministro já tinha aplicado a tese em outros casos por ele relatados.
Segundo Fischer, não é possível reconhecer a continuidade delitiva entre diferentes formas de penetração. O ministro entende que constranger alguém à conjunção carnal não será o mesmo que constranger à prática de outro ato libidinoso de penetração, como sexo oral ou anal, por exemplo. “Se praticada uma penetração vaginal e outra anal, neste caso jamais será possível a caracterização da continuidade”, destacou ministro Fischer. “É que a execução de uma forma nunca será similar a da outra. São condutas distintas”, concluiu o ministro.
Crime único
A interpretação da 5ª Turma é contrário ao entendimento que prevalece na 6ª Turma e também na 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, que já proferiu decisões no sentido de que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor praticado contra a mesma vítima, em um mesmo contexto, são crime único segundo a nova legislação, permitindo ainda a continuidade delitiva.
De acordo com os ministros da 5ª Turma, esse entendimento enfraquece, em muito, a proteção da liberdade sexual porque sua violação é crime hediondo que deixa marca permanente nas vítimas. De acordo com Laurita Vaz, é importante frisar que a nova lei é benéfica para quem comete atentado ao pudor seguido de estupro. “Com a nova lei até um beijo de língua é considero estupro, porque se trata de um ato libidinoso.”
“A nova lei tem despertado manifestações da doutrina marcadas pela diversidade, talvez pela raridade do fenômeno: uma lei nova que, sem recorrer à abolitio criminis, aglutina dois tipos penais, originalmente com penas de igual valor, em um só, prescrevendo pena equivalente a de um dos crimes previstos na lei anterior. A interpretação é absurda, viola o espírito da lei e viola o princípio da juridicidade”, sustenta a ministra Laurita.
No último dia 18 de fevereiro, a 6ª Turma entendeu que agora, levando em consideração a nova legislação em vigor, o estupro e o atentado violento ao pudor, praticados contra mesma vítima, em um mesmo contexto se constitui em crime único.
O relator do feito no STJ, ministro Og Fernandes, afirmou ter havido perda de sentido na discussão outrora existente, em torno do enquadramento do fato, quando ocorre contra a mesma vítima estupro e atentado violento ao pudor, pois agora não há mais o que se falar em dois crimes, existindo crime único, razão porque a pena deve ser única sem qualquer aumento especial.
O criminalista Maurício Zanóide não se opõe à norma criada, mas diverge sobre a forma de aplicá-la e também quanto à dosimetria da pena. “Já que o entendimento é de que a lei previu apenas um crime, por que condenar por dois crimes? E por que não se basear na pena base e dosá-la em relação à gravidade do crime?”, questiona-se o advogado. Para ele, cabe ao julgador graduar as circunstâncias de orientação na fixação da pena estabelecidas no artigo 59 do Código Penal.
“Para na dosimetria considerar a situação da prática, hipoteticamente, de apenas uma forma de violência sexual ou de várias, o que não significa considerar a ocorrência de mais de um crime, igualmente não importando, na análise do artigo 59, aplicação de causa especial de aumento, mas apenas de consideração pelo julgador das características particulares de cada fato, ajustando a pena da forma que lhe seja mais adequada.”
“O que não vale é o juiz ou ministro condenar um réu por uma coisa que não foi denunciada, ou seja, ele vai aplicar a pena de acordo com a denúncia.” O advogado completa dizendo que ninguém poder ser condenado duas vezes pelo mesmo crime.
Depois da decisão da 6ª Turma, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu a continuidade delitiva entre os antigos crimes de atentado violento ao pudor e de estupro. O fato apreciado pela Suprema Corte foi praticado contra a mesma vítima dentro do mesmo contexto.
Homem e mulher
Com a sanção da nova lei contra crimes sexuais, em novembro de 2009, tanto o homem quanto a mulher podem cometer o crime de estupro. A lei altera o artigo 213 do Código Penal, ao mesmo tempo em que acrescenta o artigo 217-A, ambos relacionados ao crime de estupro. A referida lei faz mudanças no Título VI da Parte Especial do Código Penal Brasileiro. Com a alteração, o Título passou a vigorar, com a denominação, “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”.
Segundo especialistas, esta mudança além de transformar todo o sentido e significado do artigo 213, teve como consequência a revogação dos artigos 214 e 224 que tratavam do atentado violento ao pudor e da presunção da violência prevista na antiga denominação “Dos Crimes Contra os Costumes”. A cultura, em vigor desde 1940, de que só podia o homem ser a pessoa ativa e a mulher a pessoa passiva no crime de estupro ganhou nova roupagem e hoje o homem também pode ser o sujeito passivo e a mulher pode também ser o sujeito ativo em tal delito.
Antes de vigorar a lei, o Código Penal estabelecia que o crime de estupro consistia, no conteúdo do seu artigo 213: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”.
Qualquer outro ato sexual violento contra a vontade da vítima diverso da cópula vaginal entre as partes era considerado crime de atentado violento ao pudor que então dispunha o artigo 214: “Constranger alguém, mediante violenta ou grave ameaça a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”.
Assim, da junção da redação dos artigos 213 e 214 do CP, é possível observar que, com a alteração da lei em questão, que houve a supressão do termo “mulher”, e de resto agruparam-se as duas redações transformando-as em uma única: artigo 213. “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Diante do exposto, as antigas definições dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, com a nova lei transformaram-se com a citada junção das suas redações na recente definição do crime de estupro, gerando assim uma nova interpretação jurídica. Quanto à questão da tentativa e coautoria continua a admitir-se no novo dispositivo penal.
Dessa forma, especialistas afirmam que, em consequência dessa modificação, não houve alternativa para o confronto com tal modificação a não ser a revogação do artigo 214 senão a sua revogação. Mas a sua exclusão não deixou desamparo jurídico-penal à vítima do extinto delito que agora é vítima de estupro.
Meio termo
De acordo com a procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Luiza Nagib Eluf, o Judiciário estava precisando aprimorar os dispositivos que regem o assunto, corrigindo distorções antigas que tratavam homens e mulheres de forma diversa e muito desigual.
Segundo ela, a modificação que houve na Ação Penal não foi exatamente aquela que esperava. É que, anteriormente, a Ação Penal relativa aos crimes contra os costumes era, em regra, privada. Ou seja, o estupro, o atentado violento ao pudor, a posse sexual mediante fraude, o rapto e outros delitos eram de iniciativa exclusiva da vítima, com algumas exceções. Com isso, “a mulher de classe média, com possibilidade de pagar para processar seu agressor, não poderia contar com a atuação do Ministério Público para dar início à Ação Penal contra o criminoso”.
“Por essa razão, se afigurava urgente a modificação desse dispositivo para que fosse estabelecida a Ação Penal Pública incondicionada no caso de crime sexual. A nova lei, porém, não trouxe essa inovação, ficando no meio termo: determina que a Ação Penal seja pública, porém condicionada a representação.”
Luiza entende que tal alteração não é satisfatória, porque cria dificuldades na apuração dos fatos e supõe que, para a vítima de crime sexual, denunciar seu agressor poderia ser um constrangimento pelo qual talvez não quisesse passar. Assim, deixa a seu critério pedir a propositura da ação.
Aplicabilidade da lei
Além da junção dos dois crimes, discuti-se também se a nova lei é ou não aplicável aos casos julgados antes de sua sanção. Neste ponto as opiniões também são diversas.
O Tribunal de Justiça de Sergipe decidiu que um homem deveria ser condenado pelos crimes de atentado violento ao pudor e estupro. No caso em questão, o acusado pedia a revogação do artigo 214 do CP, para que a pena fosse aplicada somente nos termos da nova lei. Na ocasião, o juiz entendeu que pelo crime ter ocorrido antes da sanção da lei, esta não pode ser aplicada à pena.
Na mesma linha, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul determinou que a nova lei era inaplicável ao caso em questão, alegando que o crime e a sentença ocorreram antes da sanção da lei. Desta forma, o tribunal manteve a condenação inicial ao réu.
Neste sentido, de acordo com o procurador federal do Paraná, Adel El Tasse, em artigo recentemente publicado na ConJur, diz que é importante destacar que a nova lei é mais benéfica, pois há redução da pena final do agente que pratica a conjunção carnal e o ato libidinoso diverso da conjunção carnal contra a mesma vítima, no mesmo contexto fático, pois se antes seria condenado a uma pena aumentada, caso se adotasse a teoria do crime continuado, ou somada, na hipótese de se atender a regra do concurso material, na nova leitura do tema comporta a imposição de uma única condenação sem agravamento.
Assim como ele, o advogado Maurício Zanóide diz que é benéfico porque reduz a pena do acusado. Mas o novo sentido do crime de estupro é somente atribuído aos infratores atuais, enquanto que os outros processados ou condenados anteriormente pelo antigo crime de estupro ou pelo extinto crime de atentado violento ao pudor, por não serem beneficiados com a novidade continuam no mesmo patamar jurídico.
Neste contexto, o procurador discorda, pois segundo ele, as condenações antes ocorridas e cuja extinção da pena ainda não se tenha dado comportam revisão, assim como, devem os fatos ocorridos antes da Lei 12.025/2009, mas ainda não julgados, ser decididos com base na disciplina por ela ofertada. “Ou seja, a constituição de um único crime possibilita beneficiar, de forma retroativa, para atingir todas as situações ocorridas mesmo antes da edição da referida lei, excetuando-se apenas aquelas cuja extinção da pena já se operacionalizou.”
Segundo os especialistas, é importante ressaltar, que as mudanças trazidas pela lei são inevitáveis, pois a nossa sociedade está sempre em transformação. A sensação de impunidade aumenta na mesma proporção que a criminalidade cresce. O direito deve organizar nosso cotidiano e não torná-lo cada vez mais confuso e vulnerável ao desprezo das pessoas para com a lei, dizem em uníssono.
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