Eduardo Oberg
O momento político hoje, face à proximidade das eleições de 31 de outubro, está embotando a discussão fundamental de questões cruciais para o acerto de contas com o futuro da nação.
Não há qualquer debate sobre o reencontro do país com a sua memória à luz do ocorrido no período ditatorial 64/85, tendo sido personagens atuantes os próprios candidatos na disputa ora em andamento. Dezenas de desaparecidos sem que se tenha resposta de seus paradeiros. Cito apenas dois por questão de espaço, sem querer olvidar nenhum outro: Rubens Paiva e Honestino Guimarães. Alguma palavra. Não. Como cidadão que preza e respeita a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da Constituição Federal (artigo 1º, III), continuo crendo ser possível um encontro com a história real, a verdade, como fizeram e estão fazendo Argentina, Chile e África do Sul. Sem vinganças, mas enfrentando tal processo político. Não se larga a memória de um país.
Tal caminho, tal conciliação, não tenho dúvida, que permita democratizar os aparelhos policiais em geral, apontando a inaceitável impunidade e a não compactuação com a arbitrariedade e a violência, demonstrando, de forma efetiva, que existe o Estado Democrático de Direito posto na lei maior como norma fundamental, em seu artigo 1º.
Há uma repetição das ações em conteúdo. A violência dos anos de chumbo ficou sem apuração, sem memória. A violência atual dos aparelhos policiais é tratada, então, como dano colateral, vez que os atingidos, em sua grande maioria, são pessoas das camadas pobres da população. Balas perdidas matam inocentes quase diariamente, onde as operações policiais são feitas, muitas vezes, com planejamento inexplicável. No início, notícias maiores nos meios de comunicação; em pouco tempo, desaparecem, nada se apura, com a responsabilidade sendo transferida aos bandidos, verbalmente, sem prova. Há um paralelo, portanto, entre tais impunidades, inclusive pelo fato que o aparelho policial de hoje possui como parâmetro o ocorrido nos anos 64/85, onde inexistiu punição, responsabilização. Manteve-se a estrutura arcaica e atrasada de antes nos tempos atuais, com melhorias pontuais, que não alteram a análise.
Registro, pela novidade, mas com cautela, embora importante, a iniciativa do estado do Rio de Janeiro com a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Mas, insisto, há de se democratizar e renovar a estrutura policial herdada da ditadura, com suas maléficas práticas e rotinas que atentam contra a democracia e os direitos humanos.
Além do grave esquecimento do resgate da memória nos anos 64/85, estão abandonando outros princípios constitucionais importantes e fundantes garantidos no artigo 5º, da lei maior, que aconselho a sua atenta leitura para a devida compreensão do que, agora, não se discute.
Não vivemos, por exemplo, em estado fundamentalista e sim, atenção, em estado laico, garantindo a todos qualquer forma de religião ou credo, inclusive, por óbvio, não possuir religião. Direito de cada um, sem patrulha, decorrente de lutas seculares da humanidade.
Pelo mesmo lado, a questão do aborto é gravíssima para estar sendo tratada apenas do ponto de vista religioso. Conforme O Globo demonstrou em recente e grave matéria, o assunto é de saúde pública, pelo número de mulheres que, quase diariamente, morrem decorrente de abortos ocorridos por variadas situações da vida, sem que se saiba a origem religiosa ou fé que aquela mulher necessitada ou morta professava. Em consequência, se há objetivo conflito de opiniões na sociedade brasileira a respeito da legalização do aborto, a Constituição Federal possui solução jurídica para a questão: realize-se um plebiscito (artigo 49, XV, da lei maior). Assim, decide-se o nó górdio, como já fizeram Estados Unidos, Itália, Portugal e tantos outros países. Não faço proselitismo nem emito opinião, apenas defendo a posição jurídica que é mais democrática, pelo voto direto, universal e secreto de todos os brasileiros. A realidade exige seriedade, sobriedade, nada de demagogia, sempre com solução na Constituição e nas leis.
A lei maior, ainda, estabelece em seu artigo 3º seus objetivos fundamentais, assegurando, em seu inciso IV, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação. Pois bem, não leram o “livrinho”. Além de o próprio estado reconhecer, para fins previdenciários, a união civil de pessoas do mesmo sexo, o Poder Judiciário vem, pouco a pouco, chancelando tais uniões, começando a existir jurisprudência relevante sobre uniões homoafetivas. Peço que vejam o direito comparado sobre o tema e as relevantes teses tratando do assunto e grupos muitos organizados em defesa dos direitos homossexuais. A Parada Gay em São Paulo é evento que aglutina mais de um milhão de pessoas; é fato.
O que discuto é o respeito mútuo que deve existir, o respeito à diversidade. Cumpram, ora, o que está na Constituição, este é o ponto, a defesa incansável do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, da lei maior). Note-se que as minhas utopias, grande parte delas, já encontram guarida na Constituição, que deve, ou deveria ser, sempre, um texto estritamente ético.
Também, no artigo 4º, da Constituição Federal, o país rege suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos, com repúdio ao terrorismo e ao racismo. Alguma palavra sobre a concessão do Prêmio Nobel da Paz ao chinês Liu Xiaobo, que está preso pela ditadura chinesa e à prisão domiciliar de sua mulher? Nenhuma. Política Internacional em geral nem pensar; o que se pensa sobre o relacionamento com Venezuela, Irã, Cuba, China, Estados Unidos, União Européia. Não se sabe.
Veja-se, pois, que não quero e não vou perder minhas utopias. Mas há um debate nacional fluido, efêmero, tangencial, que chegará ao fim do mês sem esclarecer, discutir, enfrentar o futuro à frente. Respeitosamente, o clima é de “fofoca”, pouco sério. Desalento.
Eduardo Oberg é juiz de Direito do TJ-RJ, e professor da Faculdade de Direito PUC-RJ.