Relação de emprego e representação comercial autônoma está se fundindo

Márcio Henrique Rafael

As mudanças de costumes e o avanço tecnológico dos meios de comunicação trazidos pela globalização tornaram cada vez mais plurais e complexas as relações entre as pessoas e entre elas, as empresas e os órgãos estatais.

Neste contexto geral de transformações, destacando-se especialmente as relações entre as pessoas e as empresas, pode-se afirmar que se torna ainda mais tormentosa a tarefa de se distinguir na prática a relação de representação comercial autônoma exercida por pessoa física e a relação de emprego, que a cada dia também se torna mais distante daquele velho modelo que a CLT veio regular em 1943.

A diferenciação entre a representação comercial executada por pessoa natural e a relação de emprego tem acentuada importância prática para as empresas e trabalhadores, uma vez que tal distinção vai nortear todo o tratamento jurídico que, sobretudo, as empresas deverão observar. Esse tratamento jurídico se refere a questões trabalhistas, tributárias, previdenciárias, administrativas e outras mais.

Ao lado do regramento legal a ser seguido caminha ainda um problema sério para as empresas, o passivo trabalhista, geralmente descortinado em ações perante a Justiça do Trabalho. O passivo agiganta-se a cada dia quando se imagina que está em curso uma relação de representação comercial autônoma, mas na prática se pode constatar sob um exame acurado a existência de uma relação de emprego. Quanto maior o número de trabalhadores nessa situação, claro, maior o passivo.

Esse passivo, basicamente, é a diferença entre tudo aquilo o que a empresa arcou perante o trabalhador considerado representante comercial autônomo e aquilo que deveria arcar no caso de um vínculo empregatício, já que a relação de emprego é mais protegida legalmente e gravitada por um número muito superior de direitos, destacadamente de natureza ou reflexo pecuniário. O passivo ainda existirá no tocante a multas e tributos em favor da União Federal.

Regulamentada pela Lei 4.886/1965, a representação comercial autônoma muito se assemelha à relação de emprego do ponto de vista legal. Tanto a representação exercida por pessoa física quanto a relação de emprego ostentam, de forma geral, como pressupostos, uma pessoa natural que trabalha pessoalmente para o tomador dos serviços mediante remuneração e de maneira não eventual.

Desta forma, resta a um último pressuposto a função de distinguir a representação comercial autônoma exercida por pessoa natural da relação de emprego, qual seja, a subordinação jurídica. E mesmo assim, ainda não é fácil a diferenciação, já que também a subordinação está presente tanto na representação quanto no vínculo de emprego, sendo decisivas as suas peculiaridades e o seu grau, verificados no caso concreto, para só assim se distinguir ao final.

A subordinação jurídica na representação comercial autônoma, prevista na Lei 4.886/65, claramente visível em seus artigos 27 e 28, que criam obrigações do representante em face do representado, é inegavelmente diminuta, ao passo que na relação de emprego, principalmente a clássica, é seu fator mais destacado e marcante. Assim, é por meio das atividades que ocorrem no cotidiano da relação entre empresa e trabalhador que se deve pesquisar a existência de uma relação de representação comercial ou de emprego.

Essa pesquisa do cotidiano da relação tem destaque especial no Direito do Trabalho, no qual vigora o princípio da primazia da realidade sobre a forma, pelo qual não importa de antemão o que as partes contratantes tenham inserido em documentos, tal como contratos, se no dia-a-dia do relacionamento se verifica a presença de pressupostos que se referem a uma outra espécie de contratação. Desse modo, pouco importa que uma empresa contrate um trabalhador mediante a assinatura de um documento contratual alusivo à representação comercial se na prática cotidiana a subordinação jurídica revele a existência de um trabalhador na condição de empregado-vendedor.

A busca daquilo que se passava no cotidiano das partes é justamente a pesquisa que a Justiça do Trabalho realiza no bojo das milhares de ações em que se pede o reconhecimento de vínculo de emprego e pagamento dos direitos correlatos. A esse respeito, a Desembargadora Maria Laura Franco Lima de Faria já teve a oportunidade de reafirmar em julgamento proferido na 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (Minas Gerais), nos autos do processo 00035-2002-052-03-00-1, que é “…tênue a diferença entre o trabalho prestado pelo representante comercial autônomo e o vendedor-empregado. A subordinação jurídica é o diferencial determinante. Contudo, também o representante comercial pode ter sua zona de atuação delimitada pela representada; pode ter que prestar serviços com exclusividade e ter que cumprir as obrigações previstas no contrato (artigo 27, Lei 4.886/65), dentre as quais pode estar estabelecido o comparecimento a reuniões mensais ou semanais, a observância de preços predeterminados e até mesmo o cumprimento de cotas mínimas.”

A emissão ou não de ordens e como são emitidas, a fiscalização dos serviços, o cumprimento de metas, o controle ou não de horários, os setores de trabalho, o uso ou não de uniformes, veículos e ferramentas de trabalho, o pagamento de combustível, diárias e hotéis, a correspondência por e-mails, a execução de serviços on-line com o programa de vendas da empresa, o exercício ou não do poder disciplinar e outras dezenas ou centenas de circunstâncias que podem ocorrer no dia-a-dia é que diferenciarão a presença da relação de representação comercial exercida por pessoa física do vínculo de emprego.

Em razão, principalmente, do avanço tecnológico dos meios de comunicação, fica a cada dia mais difícil tal distinção, eis que também a subordinação empregatícia tende a se atenuar, modificar ou se disfarçar, fazendo com que a relação de emprego e a representação comercial autônoma cheguem a um ponto de quase fusão. Com esta certeza, de que a CLT e a Lei 4.886/65 muito se aproximam e que nenhum documento pode protegê-la por si mesmo, faz-se necessário que as empresas não se preocupem apenas com as formalidades contratuais, mas, sobretudo, se resguardem mediante cuidado permanente no cotidiano, o que é bom para elas e para os trabalhadores.

Márcio Henrique Rafael é advogado, sócio do escritório Moura Tavares, Figueiredo, Moreira e Campos Advogados.

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