Jorge Luiz Souto Maior
A notícia do resgate dos mineiros no Chile fez emergir na sociedade um sentimento que estava há muito tempo soterrado: a solidariedade.
É importante, de plano, deixar claro que a solidariedade é um sentimento mais profundo que a mera compaixão. A população em geral, mesmo fora dos limites territoriais do Chile, não apenas se condoeu com o sofrimento dos mineiros chilenos. Passou a se questionar como aquelas pessoas puderam ser submetidas a condições de trabalho tais que as expunham ao risco de tamanho sofrimento. As pessoas foram capazes de se colocar no lugar dos mineiros e esse é o atributo maior do sentimento de solidariedade, que nos impulsiona a análises mais sérias e a práticas concretas.
O próprio Presidente do Chile, Sebastien Piñera, disse, expressamente, que iniciaria uma revisão completa da legislação trabalhista chilena para o efeito de conferir maior segurança no trabalho “nas áreas de mineração, agricultura e indústria”. Oportuno lembrar, como destacado por Emir Sader[1], que fora o próprio irmão do presidente, José Piñera, que, no Chile, deu continuidade à idéia de “flexibilização laboral”, vinda desde Pinochet, a qual deixou muitos trabalhadores, e em especial os mineiros, sem qualquer proteção efetiva do Estado.
O evento em questão, portanto, apresenta-se como uma oportunidade de se reconstituir a própria razão de ser da legislação trabalhista: o sentimento de solidariedade.
Foi, vale lembrar, a indignação diante do abandono a que são deixadas as pessoas que trabalham para a produção de riquezas, as quais aproveitam, direta ou indiretamente, a toda a sociedade, que motivou, na história recente da humanidade, a partir do final do século XIX, com intensificação nos períodos pós-guerras, o surgimento das leis trabalhistas e, conseqüentemente, do Direito do Trabalho.
A situação vivenciada pelos mineiros chilenos e a comoção social gerada nos permitem as seguintes indagações: alguém em sã consciência viria a público neste instante para defender que as péssimas condições de trabalho dos mineiros estariam justificadas em razão das exigências econômicas do mercado? Ou dizer que a redução das garantias trabalhistas dos mineiros era necessária para aliviar a empresa do custo que tais garantias correspondiam? Não, não diria, certamente.
Como demonstra a situação a que toda a sociedade acabou sendo obrigada a ver graças ao vulto midiático atingido, o custo deve fazer parte da própria essência do permissivo jurídico e social da exploração do trabalho alheio. Não é legítimo a ninguém pleitear a utilização do trabalho de outra pessoa dentro da lógica do menor custo. Há regras da própria convivência humana a serem respeitadas, cujo descumprimento representa uma agressão a toda a sociedade, causando indignação. Assim, os direitos trabalhistas jamais podem ser vistos como custos, que possam ser simplesmente extraídos. A preservação da dignidade e a elevação da condição humana dos trabalhadores são papéis fundamentais dos direitos trabalhistas, que não podem ser postos em questão por nenhum argumento econômico.
Um abalo sísmico, de natureza econômica, das bases fundamentais do Direito do Trabalho, poderia fazer com que se atraísse para a situação refletida no caso dos mineiros chilenos uma gama enorme de obstáculos à efetivação de direitos essenciais à preservação da condição humana. Diante da experiência extraída do cotidiano da Justiça do Trabalho no Brasil, fácil imaginar os tipos de argumentos que se utilizariam para negar aos mineiros chilenos algum direito. O dono da mina (se fosse identificado) diria: “eu não sou o empregador dos mineiros”; “não fui eu quem os contratou”; “não tendo contrato com os mineiros, não tenho responsabilidade legal quanto ao ocorrido, e ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei”. O sujeito que contratou os mineiros – se fosse localizado – diria: “eu não era empregador deles”; “eles eram meus colaboradores, prestadores de serviço autônomo”. No aspecto pertinente ao acidente propriamente dito, diriam, ambos: “não temos culpa pelo ocorrido, foi uma fatalidade”; “os mineiros cometeram ato inseguro, quando não seguiram as instruções de segurança”; “e, ademais, não houve concretamente um acidente do trabalho, pois não resultou qualquer lesão”; “do evento não resultou perda da capacidade laboral”; “os mineiros estão sãos e salvos e até devem ser gratos à empresa pois ganharam notoriedade internacional – eram meros desconhecidos, agora são personalidades”; “sequer se pode dizer que houve sofrimento, muito pelo contrário, afinal, os mineiros se conheceram mais enquanto pessoas, aprendendo a explorar os seus limites de sobrevivência”.
Se acatados fossem tais argumentos, o sofrimento dos mineiros, que causou indignação internacional, seria transformado em pó, e este seria, na verdade, o momento mais trágico do evento em questão, que, provavelmente, não teria visibilidade midiática junto à comunidade internacional. O risco, portanto, é o de que a solidariedade se transforme em frívola compaixão, cuja manifestação sirva apenas a propósitos não revelados.
A sobrevivência é, por certo, o bem imediatamente mais importante, mas a sobrevida deve ser acompanhada do resgate da dignidade de cada um, sendo esta a dimensão necessária do direito. Mais do que presentes e festejos, os trabalhadores em questão precisam ver valer, em concreto, os seus direitos, que lhes pertencem não por um favor ou ato de benevolência, caridade ou compaixão de quem quer que seja. O efetivo resgate dos mineiros, portanto, ainda está por ser completado.
Cumpre verificar, ainda, que argumentos como os acima apresentados também tem sido utilizados, com freqüência, em lides trabalhistas que tratam de acidentes de trabalho no Brasil e, infelizmente, de forma não tão rara se vêem acatados, o que transforma a situação de milhões de trabalhadores brasileiros quase tão terrível quanto àquela que tiveram que suportar os mineiros chilenos. O fato é que, diariamente, no Brasil, direitos trabalhistas, cuja base existencial foi a solidariedade internacional, estão sendo soterrados a cada dia.
Assim, enquanto, no Chile, os mineiros eram reconduzidos à superfície, no Brasil incontáveis eram: os trabalhadores submersos em jornadas de trabalho de 12 horas ou mais; os “terceirizados” segregados no ambiente do trabalho, aos quais se recusam até o direito ao próprio nome; os trabalhadores no meio rural, e mesmo urbano, reduzidos à condição análoga à de escravos; as crianças e os adolescentes, até 16 anos de idade, explorados sob o pretexto de estarem sendo ajudados; os empregados submetidos a um sistema perverso de banco de horas, com alterações constantes de horários de trabalho, que lhes nega a mínima previsibilidade sobre a própria vida; empregados mascarados em PJs, cooperados ou “associados”, sem qualquer garantia trabalhista; as empregadas domésticas submetidas a trabalhar sem qualquer limitação da jornada de trabalho, sem proteção contra acidentes do trabalho, sem recebimento de salário mínimo, sem FGTS, amparo do seguro-desemprego etc; os motoristas de ônibus, caminhões ou carretas, expostos à necessidade de dirigirem dias e noites a fio, sob o risco de sofrerem graves acidentes; os estudantes utilizados como mão-de-obra barata, ou seja, sem as garantias trabalhistas integrais, sob a formalização de contratos com aparência legal como o de estágio e o de residência médica; os serventes e pedreiros trabalhando em vultosas obras sem a devida proteção jurídica trabalhista, mediante a suposição, fraudulentamente fixada, de serem empreiteiros; os trabalhadores em atividades insalubres sem as devidas proteções individuais, executando atividades com esforço repetitivo; trabalhadores sem o devido registro em Carteira; trabalhadores conduzidos às filas do desemprego sem o recebimento das denominadas “verbas rescisórias”, vendo-se obrigados, assim, a suportar os trâmites infindáveis de uma lide processual; os trabalhadores submetidos a revistas íntimas, invadidos em sua intimidade e privacidade, sob o argumento da preservação do patrimônio do empregador…
Ou seja, no mesmo momento em que a comunidade internacional comemorava o resgate formal dos mineiros chilenos, milhões de trabalhadores brasileiros continuavam soterrados na mais profunda injustiça, sem ser alvo sequer de alguma compaixão por parte dos demais membros de nossa sociedade, vez que a mídia não estava preocupada em difundir tal realidade. Não se pode deixar de consignar, por oportuno, que parte dessa mesma mídia durante muito tempo, bem ao contrário, tem se postado em estado de guerra contra os direitos dos trabalhadores, buscando abalar o status de cidadãos dessas pessoas.
E, ademais, como se está procurando dizer, mesmo uma compaixão não seria suficiente. Para alterar essa realidade, é preciso um efetivo exercício de solidariedade, que permita transportar para si as aflições, as angústias e os sofrimentos alheios, como forma de se atingir, com plenitude, a esfera da ordem jurídica. É neste sentido, como dito, que o caso dos mineiros chilenos não se resolve com o resgate de seus corpos e o mesmo efeito deve se produzir, com urgência, com relação a milhões de trabalhadores brasileiros, que merecem, até por dever jurídico, diante da incontestável vigência dos preceitos constitucionais, o empenho de nossa mais irrestrita e sincera solidariedade, que constitui o pressuposto necessário à eficácia de seus direitos. Afinal, diante de tragédias como a de lá e as de cá, a natureza essencial dos direitos trabalhistas ninguém há de negar.
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[1]. http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=564, acesso em 15/10/10.
Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí (SP), livre-docente em Direito do Trabalho pela USP e membro da Associação Juízes para a Democracia.