Banalização da prisão cautelar aumenta número de Habeas Corpus nos tribunais brasileiros

A superexposição de crimes na imprensa, principalmente os considerados bárbaros, tem um grande impacto não só na formação da opinião pública, mas também nas decisões judiciais. Mesmo com o princípio da presunção da inocência, garantido pela Constituição Federal, muitos são os casos em que um suspeito é preso cautelarmente antes de sua condenação definitiva. Como consequência, os tribunais superiores recebem cada vez mais pedidos de Habeas Corpus como forma de impedir que o cidadão seja alvo de arbitrariedades por parte do Estado.

A questão é complexa e envolve uma série de fatores, de acordo com especialistas do Direito. Alguns avaliam que a divulgação diária da violência de forma escancarada pela mídia aumenta o clamor público para a definição dos casos mesmo antes de uma solução jurídica, como forma de se combater a impunidade.

A prisão do réu durante o curso do processo deve ser considerada em caso excepcional. No entanto, para o advogado criminalista José Roberto Batochio, essa hipótese está se tornando uma regra no Brasil. “A Constituição garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado. Mas estão invertendo essa equação. Isso é uma deformidade, uma subversão de um direito constitucional. Neste quadro, o direito de liberdade, que é o mais precioso bem jurídico que integra o patrimônio do homem, está se tornando um bem jurídico de terceira categoria.”

Batochio observa que tanto o Ministério Público quanto juízes de primeira instância têm agido de forma mais dura, passando por cima de um direito constitucional, com a desculpa de se preservar a ordem pública ou mesmo por pressão da sociedade. Isso acaba provocando a banalização da supressão da liberdade. “A Justiça não pode ceder a esse tipo de pressão. Ela deve ser equilibrada, ter como base princípios humanísticos, ser impessoal. Caminhamos para um endurecimento do autoritarismo burocrático. Por isso é importante termos uma defesa técnica, que repudia esses excessos.”

Para o criminalista, os excessos nas prisões preventivas não contribuem em nada para o aperfeiçoamento social. “Isso só é possível com o respeito ao sistema de leis. E se o legislador optou, ao propor e aprovar a Constituição, por considerar que a liberdade deve ser preservada até a sentença condenatória definitiva, ressalvado casos de inafastável perigo do acusado, isso deve ser respeitado.”

Batochio destaca a postura de alguns julgadores que tentam copiar o modelo da doutrina americana nos casos de prisão cautelar decretada. De acordo com o criminalista, dos mais de 300 milhões de habitantes nos Estados Unidos, quase 3 milhões estão encarcerados. No entanto, o problema em se adotar os moldes americanos é que o Brasil vive uma realidade social e econômica diferente. Enquanto os Estados Unidos possuem recursos para manter suas instituições prisionais, o sistema penitenciário brasileiro é um verdadeiro caos. “Aqui, os presídios e cadeias são verdadeiros depósitos humanos, locais insalubres, que não permitem o mínimo de dignidade humana. O réu é tratado como um número, uma abstração. Seus direitos são cada vez menos respeitados.”

Num país em que existe uma grande dificuldade em se alocar detentos em um local com segurança e dignidade, a prisão cautelar acaba sendo pior que a pena, de acordo com o criminalista Rodrigo Dall’Acqua, do escritório Oliveira Lima, Hungria, Dall’Acqua e Furrier Advogados. Para ele, falta conscientização tanto do MP quando dos juízes de primeira instância para que a prisão preventiva seja decretada nos casos de extrema necessidade.

De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, a prisão cautelar pode ser decretada para garantir a ordem pública, nos casos em que existe o risco de o acusado, se continuar em liberdade, praticar outros crimes ou atrapalhar o curso do processo ou mesmo quando há o risco de fuga do réu. “A prisão cautelar não pode ser uma resposta antecipada ao crime, usada para não desagradar a opinião pública ou mesmo para que juízes não sejam vistos como favoráveis ao réu. Enquanto isso não ocorrer, vamos continuar com uma enxurrada de Habeas Corpus nos tribunais superiores, mesmo com a jurisprudência consolidada que garante o direito à liberdade.”

Habeas Corpus
Só neste ano, entre janeiro de setembro, o Supremo Tribunal Federal concedeu 344 pedidos de Habeas Corpus. A corte conferiu 39 deles por deficiência de fundamentação na decretação da prisão cautelar. Os números também apontam que houve um crescimento na concessão dessa medida: em 2009, foram dados 428 HC e em 2008, 355.

Por conta disso, se por um lado existe uma corrente que critica o número excessivo de prisões cautelares, há quem considere que a banalização se encontra no uso dos Habeas Corpus. É o caso do desembargador Eduardo Machado da Costa, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que já recebeu mil ações desse tipo para serem julgadas em pouco mais de um ano.

Na corte mineira, foram apresentados pouco mais de 7 mil Habeas Corpus em 2005; quase 17 mil em 2009; e, de janeiro a agosto de 2010, já são 14,5 mil. Dados do tribunal apontam ainda que só o caso do desaparecimento de Eliza Samudio já gerou 43 ações desse tipo em favor dos acusados, que continuam presos. Pelo menos 22 pessoas comuns ingressaram com Habeas Corpus em favor do goleiro Bruno Fernandes. E é por isso que o desembargador critica a previsão constitucional que admite qualquer pessoa como impetrante de HC. “A medida deve ser tratada como forma extrema para proteger aquele cidadão que foi preso sem motivação.”

Para o advogado criminalista Alberto Zacharias Toron, do escritório Toron, Torihara e Szafir, não há uma banalização do uso do Habeas Corpus, mas sim uma gama muito grande de casos em que a medida pode ser utilizada. Via de regra, o HC pode ser usado sempre que alguém entender que está sofrendo violência ou coação em relação a sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

Se o suspeito é preso em flagrante, por exemplo, e o juiz mantém sua prisão, o acusado pode pedir a liberdade provisória. Se ele não foi preso em flagrante, mas o juiz decretou sua prisão preventiva, o suspeito pode usar o HC para pedir a revogação da prisão. No entanto, Toron ressalta que a medida também pode ser usada para discutir questões de natureza jurídica, como nos casos de nulidades processuais, inépcia na denúncia, abusos processuais de juízes ou quando há a falta de justa causa para a ação penal. “O HC é um direito do réu e o advogado deve impetrar a medida caso julgue necessária. Cabe aos tribunais deferi-lo ou não.”

Nessa mesma linha, o defensor público Pedro Giberti, coordenador do Núcleo de Segunda Instância e Tribunais Superiores da Defensoria Pública de São Paulo, afirma que o Habeas Corpus é um instrumento eficaz de discussão de questões jurídicas por ser uma medida mais rápida do que outros recursos. “No Recurso Especial, por exemplo, a parte contrária pode se manifestar, depois o recurso será analisado para ser admitido, ou seja, há trâmites que tornam a apreciação do pedido mais lenta. Nesse sentido, o HC abrevia a apresentação nos tribunais superiores de questões fundamentais à defesa dos direitos de acusados ou mesmo condenados.”

Nos nove primeiros meses de 2010, 5.475 Habeas Corpus foram impetrados no Superior Tribunal de Justiça e 64 no STF pela Defensoria de São Paulo. Segundo o órgão, essa diferença de números nos dois tribunais se dá porque a Defensoria consegue procedência total ou parcial na grande maioria dos HC no STJ. Em 2009, os HCs interpostos pela Defensoria paulista no STJ representaram 20,7% de todas essas ações impetradas no tribunal.

Mesmo quando a medida é usada em ações que envolvem muitos réus e, nesses casos, o juiz é obrigado a parar o processo para analisar os pedidos de cada um, o defensor considera o uso da medida legítimo. “Nessas ações com muitos acusados, geralmente, a defesa entra com HC porque a denúncia não descreve a participação do seu cliente no crime. Fica difícil se defender se não está claro qual é a acusação.” Ou seja, de acordo com o defensor, a questão não é apenas se o HC está banalizado, mas também se os procedimentos das ações estão corretos por parte do MP e dos julgadores, o que leva os réus a recorrer.

Para o desembargador Almeida Toledo, da 16ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, muitos Habeas Corpus são impetrados em momentos do processo em que a medida não é cabível. Nos casos de execução, por exemplo, o recurso correto é o agravo de execução. “Pode haver tanto desconhecimento de quem entra com o HC, pois essa a medida pode ser usada pelo próprio preso, sem a necessidade de um advogado, ou mesmo a intenção do defensor do réu de acelerar a apreciação do seu pedido”, explicou o magistrado.

Almeida Toledo acredita que o fato do Habeas Corpus ter de ser analisado com muita atenção e rapidez, uma vez que pode se tratar de pedido de liberdade, provoca o desvirtuamento da medida. “Isso entulha os tribunais. Se houvesse uma triagem preliminar, esses pedidos cairiam drasticamente”.

No entanto, o desembargador também reconhece que existe abusos ou erros técnicos na decretação das prisões cautelares, o que também contribui para o aumento dos HC. “Acredito que é necessário, em primeiro lugar, o discernimento para quem decreta a prisão, porque, uma vez que ela é uma exceção, não pode ser determinada por deduções. Nesse sentido, acredito que o TJ-SP tem sido bastante rigoroso e criterioso”, destacou. “Num segundo momento, também é necessário mais critério nos pedidos de liminares. O que não significa que o réu não tem direito de solicitar sua liberdade provisória, mas ele deve recorrer às medidas corretas.”

Crimes hediondos
Outra questão levantada por Giberti é a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/25 de julho de 1990). Para ele, com a publicação da lei, ser suspeito de cometer um crime passou a ser uma forma de ameaça. “Esse dispositivo jurídico foi feito para combater a criminalidade, mas acabou escorregando na desmoralização do princípio da presunção da inocência. O resultado é a desconstitucionalização do processo penal.”

Dentre os crimes considerados hediondos, destacam-se, entre outros, o homicídio, o latrocínio, a extorsão, o estupro e o tráfico de drogas, modalidades de crimes que provocam revolta social. Há casos, segundo o defensor, em que os tribunais ficam constrangidos de enfrentar o clamor público. No entanto, cada caso deve ser avaliado com muito critério, segundo Giberti. “Até que ponto o pequeno traficante, por exemplo, deve ser considerado uma ameaça para que ele tenha de ficar preso mesmo antes de seu julgamento?”, questiona o defensor.

Ele deu como exemplo o Tribunal de Justiça de São Paulo, que tem uma postura rigorosa nesses casos e nem sempre considera o princípio da presunção da inocência. Como consequência, mais acusados recorrem aos tribunais superiores para garantir a aplicação de um direito constitucional. Para Giberti, a Defensoria de São Paulo deixaria de impetrar muitos Habeas Corpus se a Justiça do estado fosse mais criteriosa na decretação das medidas cautelares.

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