Por José Ademir Campos Borges
O novo Código de Processo Penal está em fase de cozimento, prestes a ser servido, mas nem todas as novidades e iguarias embutidas nele virão para satisfazer ao refinado paladar da exigente fauna jurídica e muito menos aos interesses legítimos do seu mais genuíno destinatário, isto é, a população, que, em tempos de incrementada violência, vê-se atordoada entre a sanha dos arcabuzes delinquentes e o fogo cuspido pelas metralhadoras estatais.
De fato, o legislador vivencia uma fase de excesso de preocupações garantistas, refletida numa considerável porção da comunidade jurídica, em que presenciamos estudantes e profissionais do Direito falar de modo apaixonado em “garantismo penal”, a ponto de alguns deles, quando se embrenham nesse tema aparentemente novo, sentirem-se verdadeiramente excitados, chegando os mais exaltados a confessar, sem pudor nenhum ou qualquer forma de constrangimento, que só foram conhecer o mais genuíno “orgasmo jurídico” após a descoberta desse milagre, cuja propagação no mundo ultramoderno atribui-se a Luigi Ferrajoli.
Em razão dessa onda garantista, pretende-se introduzir na sistemática processual brasileira institutos e mecanismos exóticos tendentes a enfraquecer e até vilipendiar os resultados da investigação policial, à medida que o novo modelo processual dá aos elementos reunidos no inquérito valor destituído de maior significado probante, prestigiando somente as provas produzidas em juízo, como se a verdade das coisas e dos fatos só pudessem aparecer sob o crivo do contraditório, quando se sabe que ali também grassa a solene imperfeição, especialmente por meio de provas testemunhais. Aliás, a experiência mostra que, na maioria dos casos, as versões testemunhais inseridas em inquéritos policiais coadunam-se muito mais com a verdade dos fatos do que aquelas construídas sob o crivo do contraditório. Lá, no inquérito, todos os sujeitos ligados à investigação estão mais próximos dos acontecimentos e da sua realidade crua, mergulhados no calor da ocorrência.
O fato é que, além dessa marca repulsiva do legislador aos elementos probatórios produzidos no inquérito policial, ganha relevo dentro do futuro CPP a novíssima figura do chamado “juiz de garantias”, um magistrado cujo papel não é julgar, mas fiscalizar e decidir acerca dos atos praticados ao longo da investigação policial. É, portanto, um juiz que atua antes do início da ação penal. É, por assim dizer, um juiz inserido num contexto pré-processual, figura que se traduz em novidade impraticável num país com as dimensões territoriais e as premências sociais do Brasil.
A criação dessa nova figura atesta o conhecimento e a preocupação do legislador com as misérias do processo penal, mas é preciso considerar que, uma vez instituída, servirá somente às grandes cidades brasileiras, não só porque encontramos nesse ambiente a mais pujante criminalidade, mas porque existe uma tendência de o nosso legislador e de nossas instituições prestigiarem os grandes centros urbanos, deixando as comunidades do interior distante sob o pálio do esquecimento.
Vale dizer, uma vez instituído, o juiz de garantias há de ser um juiz das metrópoles, e será mais um produto da imaginação fértil do nosso legislador, que pretende erguer no seio do nosso ordenamento jurídico uma torre de alto custo e, convenhamos, absolutamente desnecessária ao processo penal pátrio. De fato, o legislador parece ignorar a realidade brasileira e até finge desconhecer a natureza humana. Afinal, haverá alguma diferença intrínseca entre um “juiz de garantias” e o juiz que atua nos moldes da legislação atual? Evidente que não. Certamente, um juiz de garantias pouco sensato (o juiz insensato é equivocadamente equiparado pelos tolos ao juiz rigoroso) determinará ou confirmará a realização de prisões e atos dentro do inquérito muitas vezes desnecessários, de modo que se o que se busca é salvaguardar a lisura das provas produzidas no inquérito e evitar-se a prática de atos abusivos, melhor seria o Estado estruturar uma ampla e eficiente defensoria pública, para a qual, por exemplo, fosse imediatamente comunicado todo e qualquer ato que resultasse em privação da liberdade de investigados indefesos, isto é, sem advogado constituído, como já ocorre em casos de prisão em flagrante.
Realmente, se é da preocupação do legislador zelar pela prova produzida na fase pré-processual, melhor deixar essa tarefa a cargo de um defensor capacitado para fiscalizar e questionar prováveis abusos praticados durante a investigação, sem prejuízo da fiscalização concorrente do juiz e do promotor de justiça que atuarão perante o caso, os quais, é bom que se diga, têm o dever inafastável de também zelar pela correta aplicação da lei dentro do inquérito policial, procedimento inquisitivo e sigiloso, mas longe de ser um ente secreto.
Enfim, a construção de uma defensoria pública bem estruturada, certamente, dispensaria a criação desse luxo perdulário que se pretende incrustar na magistratura e, certamente, traria melhores e maiores benefícios a serviço da sociedade e ao processo penal, sem maiores entraves a investigação policial… Abaixo, pois, o juiz de garantias.
José Ademir Campos Borges é promotor de Justiça em São Paulo.