Por Robson Pereira
A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul deve analisar ainda esta semana o veto parcial do governador Tarso Genro a um projeto de lei que torna obrigatória a tradução de palavras estrangeiras utilizadas em publicidade, propaganda, documentos e informativos. O veto restringiu o alcance do projeto, mas não a ponto de eliminar as polêmicas. No texto parcialmente sancionado, a necessidade de tradução permanece, inclusive no que diz respeito à internet, mas apenas para órgãos da administração pública.
Tomada ao pé da letra, palavras e expressões como home e office banking, m-banking, smartphones e smart cards, entre outras presentes na página principal do Banco do Estado Rio Grande do Sul, por exemplo, terão de estar acompanhadas da “explicação” em português. Tudo isso para “estimular a defesa do idioma pátrio e chamar a atenção para o desenfreado emprego de termos estrangeiros no dia a dia, dificultando o entendimento por parte da maioria do povo”. A futura nova lei não se aplica à linguagem falada.
Até mesmo a página oficial do governo do estado na web precisará passar por um pente fino, embora, nesse caso, a tarefa não seja das mais complicadas. Ali, quase todas as palavras e frases estão em bom português, inclusive no que diz respeito aos linques — assim mesmo, aportuguesado. Há um login que destoa e meia dúzia de outras “ameaças”, como na informação sobre o workshop gratuito no Teatro de Arena e o poster book lançado pelo Procon-RS para comemorar os 20 anos do Código de Defesa do Consumidor.
Não é a primeira e tampouco terá sido a última trincheira em defesa do português. Leis similares já foram aprovadas nas assembleias do Paraná e do Rio de Janeiro. No Congresso, desde 1999, repousa projeto de lei — pronto para ser levado ao plenário — que dispõe sobre a promoção, a proteção, a defesa e o uso da língua portuguesa em todo o território nacional. Em todos esses casos não faltaram polêmica, assim como bons e maus argumentos contra e a favor. Dos que acreditam que existe mesmo uma ameaça pairando sobre o “idioma pátrio, pressuposto básico da soberania da nação”, e dos que consideram tudo isso um exagero desproporcional, temperado com boa dose de presunção.
É fato que existe um uso indiscriminado e empobrecedor de palavras estrangeiras. O intervalo para o cafezinho virou cofee-break, o estacionamento, parking, e a presença do personal se espalha por todas as áreas do cotidiano, do trainer ao stylist, passando pelo hair e pelo shopper, entre vários outros. Nem o Senado escapou e na semana passada aprovou uma lei que simplesmente coloca o bullying no texto da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional — antes mesmo que o vocábulo seja incorporado pelos principais dicionários existentes no mercado, se é que existe tal possibilidade.
Mas se é relativamente fácil perceber o mau uso e até mesmo uma boa dose de esnobismo por trás de palavras e expressões como essas, não ocorre o mesmo quando se trata de contabilizar as baixas na suposta invasão de estrangeirismos em curso. Nem sob o ponto de vista cultural ou histórico, tampouco sob o prisma numérico. Levado ao extremo, a própria língua portuguesa seria uma invasão às línguas indígenas aqui faladas por ocasião da chegada dos portugueses. Mas isso é outra história. Por ora, ficamos com as estatísticas.
A mais recente versão do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, editado pela Academia Brasileira de Letras, registra 340 mil verbetes e utiliza cerca de 160 mil outras palavras na definição desses verbetes. Na soma, são 500 mil palavras em língua portuguesa. O VOLP também registra e contextualiza palavras ou expressões estrangeiras de uso corrente no Brasil. Bullying não está entre as 1.500, não mais do que isso, em espanhol, francês, alemão, italiano, japonês, latim e, claro, em inglês. Assim, no dicionário, a “invasão estrangeira” representa 0,3% do total. Significa que a cada 1.000 palavras, três são estrangeiras — embora nem todas sejam “abusivas”, mas sim contribuições normais de uma língua à outra.
Pelos cálculos da Academia de Ciências Portuguesas, o Acordo Ortográfico assinado pelo Brasil e os demais países de língua portuguesa (Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe) alterou 2.000 palavras (as que foram modificadas pelas novas regras para o emprego do hífen e as que foram afetadas pela extinção do trema não entram nessa conta). Como a estimativa mais recorrente aponta para 600 mil o número total de palavras existentes na língua portuguesa — 500 mil das quais já captadas pelos dicionários — 0,3% das palavras tiveram a grafia modificada com o novo acordo ortográfico. É a mesma proporção de palavras estrangeiras absorvidas pelos dicionários nos últimos anos. Se é muito ou se é pouco, não saberia dizer. Mas há alguns indícios.
Mesmo com um universo de 600 mil palavras (existem pouco mais de um milhão delas em inglês), “apenas” 1.500 são usadas pela imensa maioria das pessoas, de acordo com outra estimativa também aceita (ou pelo menos admitida) por estudiosos da língua. Dá para fazer muita coisa. A pesquisa que fiz mostrou que os jornais não precisam de mais do que 350 vocábulos para preencher uma página de noticias. Para o voto de um ministro do STF é preciso um pouco mais, cerca de 1.100 — o número de palavras diferentes utilizadas pelo ministro Ricardo Lewandowski em seu voto de 14 páginas no rumoroso caso envolvendo o italiano Cesare Batistti.
Abaixo, sugestões de leituras e consultas com o objetivo sincero de contribuir com a defesa e o bom uso da língua portuguesa:
Estrangeirismos: guerras em torno da língua – Carlos Alberto Faraco
O livro é uma crítica às tentativas de mudança na legislação, motivadas pelo “raciocínio simplista” que coloca a língua portuguesa sob ameaça do chamado estrangeirismo.
Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – Academia Brasileira de Letras
Grafia, acentuação, uso de hífen, pronúncia e aportuguesamento, com a chancela da ABL. A obra traz ainda a íntegra dos documentos que resultaram no Acordo Ortográfico de 1990 e toda a legislação correspondente.
O que Muda com o Novo Acordo Ortográfico – Evanildo Bechara
Um guia prático, abrangente e indispensável para as consultas do dia a dia, elaborado de forma clara e didática por um dos mais importantes gramáticos e lexicógrafo da língua portuguesa.
Gramática do Português Contemporâneo – Celso Cunha e Lindley Cintra
Um bom livro de gramática é como uma caixa com produtos para primeiros socorros. Convém ter sempre um por perto. Nesse, destaque para as diferenças de uso entre o idioma nacional e suas variações regionais.
Na internet:
Estatísticas das Letras, Palavras e Períodos – Universidade Federal Fluminense
Uma curiosa e prática combinação entre linguística e matemática. Escolha um texto qualquer e confira a frequência e o número de palavras diferentes utilizadas pelo autor.
Indíce do Vocabulário de Machado de Assis
As palavras (estrangeiras, inclusive) mais utilizadas por um dos maiores escritores em língua portuguesa em todos os tempos.
Oxford English Dictionary
A feijoada, a cachaça e o churrasco já estão lá, mas o futebol ainda não foi incorporado ao vocabulário inglês reunido na última edição do OED. Pelo critério adotado, um vocábulo precisa se manter em evidência no idioma inglês por um período de 25 anos até que isso ocorra.