Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
A propriedade no direito norte-americano quantifica fundamentos legais do capitalismo, legitimando relações de uso e valor. Identificada por conjunto de privilégios e responsabilidades, a propriedade configura direito exclusivo de controle de bem econômico. Abstratamente outorgável a todo ser humano, cidadão ou não, a propriedade secciona concretamente o universo na axiologia do ter. Cria a categoria do have e a sub-categoria do have-not, fragmentando o mundo entre proprietários e não proprietários.
Diz-se propriedade real, real property ou realty, quando é topicamente imóvel, a exemplo da terra. Chama-se propriedade pessoal, personal property, quando se caracteriza pela mobilidade física, a exemplo de livros, utensílios, ações; por exclusão, a propriedade pessoal é toda propriedade que não é real. Essa divisão, de aparente raiz romanística, finca-se, no entanto, na common law[5], e refere-se à dicotomia entre propriedade feudal e não-feudal[6], aquela primeira de caráter fundiário e de titularidade do valido do rei.
É tangível (tangible) quando plasma valores intrínsecos à existência da coisa, a exemplo de um automóvel. É intangível (intangible) quando não assume forma material, a propósito de uma cártula que traduza cota acionária, classificação que lembra divisibilidade entre coisas corpóreas e incorpóreas na tradição da civil law. A propriedade pessoal também emerge na propriedade intelectual, dividida em direito de reprodução de obra (copyright), em marcas (trademark) e em patentes (patent).
O modelo norte-americano suscita a aquisição da propriedade pelo trabalho[9], pela sorte, pela compra e pela posse, modalidades que são incentivadas pelo espírito empreendedor calvinista, como captado por Max Weber. O trabalho seria apanágio da dignificação do homem, contemplado pela graça divina, fonte de inspiração e incentivo à realização material da terra, sinal de eleição para salvação na vida após a morte. A aquisição original (original acquisition) faz-se pela ocupação (occupancy), pelo encontro da coisa (finding), pela usucapião (adverse possession), por outorga pública (act of public authority). A aquisição derivada (derivative acquisition) faz-se pela venda (contract of sale), pela doação (donation), pela venda judicial (adjutication). São modos de transferência de propriedade e mais adiante alguns deles serão especificados.
O detentor de direito de propriedade nos Estados Unidos implementa direitos de posse, de uso, de exclusão e de alienação. O detentor da propriedade real diz-se titular de um estate, ou de um interest. Essa qualidade divide-se em quatro aspectos, relativos ao nível de controle, à duração, ao espaço físico e divisibilidade do título.
Quanto ao nível de controle, diz-se que o proprietário absoluto, aquele que exerce o maior grau de poder sobre a coisa, detém um fee simple absolute. Ele pode dispor da coisa por declaração feita em venda ou doação (deed) e por disposição testamentária (will). Também detentor de elementos possessórios, pode dispô-los, por meio de contrato de aluguel (lease). Trata-se da outorga de direito de posse a outrém, que pode assenhorar-se da coisa por determinado período de tempo. O locatário é chamado de lessee ou de tenant, o locador de landlord. Não há vedação estatutória à sublocação (sublease ou sublet), porém contratos mais recentes têm limitado substantivamente essa possibilidade.
O aluguel (leasing) pode ter finalidades residenciais ou comerciais. Não há também obrigação normativa de contrato formal, nem de uso de palavras particulares ou sacramentais. A intenção das partes, demonstradas pela autorização para uso da propriedade e regular pagamento de valores pactuados qualificam a situação. O preço combinado (rent) é pago nos valores e local indicados pelos contratantes, de acordo com limites e parâmetros de regulamentação estadual, dada a natureza local da norma de regência. Os negócios de locação (the landlord-tenant relationship) sofrem impacto de forças que variam do processo de urbanização para a emergência do interesse público vinculado à medidas erradicatórias de pobreza. Surge equação determinadora de preços e fixadora de níveis de investimento, variando o nível de controle que o proprietário exerce sobre a coisa.
Na feição clássica da common Law, o direito de propriedade é topograficamente absoluto, espargindo-se do centro da terra para a altura dos céus, to the center of the earth up to the heavens, realidade mitigada com a invenção e popularização dos aviões. O exercício do direito de propriedade não encontra limitações cliométricas, no tempo, projetando-se metafisicamente além da morte do titular original, por conta de heranças e legados.
A propriedade é exercida de forma singular (single ownership) ou conjunta (joint tenancy). Essa última modalidade subdivide-se em total (tenancy by the entirety) ou comum (tenancy in common). No primeiro caso temos marido e mulher, quando o cônjuge sobrevivente está intitulado a apoderar-se do quinhão total. No segundo exemplo exclui-se o direito do cônjuge superveniente herdar parcela absoluta, de exercer o direito de sobrevivência (right of survivorship).
O proprietário tem direito potestativo de usufruir o sossego que a coisa suscita, o quiet enjoyment of the premises, com absolutos poderes para afastar invasores e perturbadores (trespassers). A propriedade é historicamente usufruída sob e sobre a superfície (below and above the surface of the land), de modo que o titular tem direitos de explorar minerais, petróleo e gás natural.
O uso da água suscita regra geral. O proprietário, em princípio, tem direitos de usar as águas que se encontram em área sob seu domínio. O detentor de direitos ripuários (riparian rights) vale-se de águas de rios. Usa-as para irrigação, energia, recreação. Disputas surgem quando proprietários discutem o aproveitamento de água de uso comum, porque captam a mesma em pontos diferentes do mesmo rio. O direito norte-americano formulou solução que varia de acordo com a localização da área.
Nas regiões localizadas a leste do rio Mississipi, onde há mais umidade, caudalosidade e número de rios, o uso é comum[36], não há prioridade, e proprietários devem comportar-se com critérios de razoabilidade[37]. Nas áreas localizadas a oeste do rio Mississipi, que são mais secas, com poucos rios e pouca água, utiliza-se o critério de primeira apropriação (prior appropriation rule), priorizando-se os direitos daquele que chegara anteriormente[38]. A regra fora no passado pensada para incentivar a ocupação do interior; quem chegasse primeiro não se preocuparia com a falta de água[39]. Também há autorização legal para que o proprietário utilize águas vizinhas de mar, oceanos e lagos (littoral rights)[40].