Por Robinson Cavalcanti
A humanidade conviveu e tem convivido com regimes não-democráticos: monarquias absolutas, teocracias, ditaduras, aristocracias, oligarquias, que privilegiam famílias, etnias, religiões, partidos ou classes.
Com a substituição do poder personalizado pelo poder institucionalizado, surgiram os Estados Nacionais, as constituições e a democracia, como “o povo politicamente organizado”. Na maioria das vezes, o formalismo democrático e a liturgia das eleições apenas legitimam grupos, que controlam os aparelhos do Estado.
Ao povo cabe apenas escolher periodicamente, entre os escolhidos, os seus senhores. Presencia-se no Ocidente, sob a fachada da democracia, uma nova autocracia: a dos ateus e agnósticos e materialistas secularistas — netos do Iluminismo — contra a maioria religiosa dos cidadãos. Essa ideologia aparece mais nítida com o término da Guerra Fria, e pretende confundir Estado laico com Estado secularista.
Por Estado laico se entende aquele legalmente separado das igrejas, sem religião oficial, com a igualdade perante a lei, que se constitui um avanço para a civilização, e que foi uma das bandeiras do protestantismo histórico no Brasil.
O Estado secularista expressa uma ideologia militante de rejeição da religião, de sua negação como fato social, cultural e histórico, ou a considerando intrinsecamente negativa. No passado, tivemos a influência da filosofia positivista que, com sua “lei dos três estados”, advogava a marcha inexorável da história de uma etapa religiosa inferior para uma etapa superior, pretensamente científica ou positiva.
Essa filosofia marcou grande parte das ideologias contemporâneas, inclusive o marxismo, cujos regimes, oficialmente ateus, procuravam “colaborar” com esse processo histórico perseguindo implacavelmente a religião e tornando compulsório o ensino do ateísmo. O que essa elite iluminada tem dificuldade de aceitar é o fato de que, no século 21, a religião em vez de diminuir está aumentando, no que Giles Kepel denomina “a revanche de Deus”, e que dá o título do novo “best-seller” de John Micklethwait e Adrian Wooldridge, “Deus Está de Volta”.
Há todo um malabarismo intelectual para “explicar” essa anomalia, e, por outro lado, se procura promover um combate sistemático para contê-la. O antirreligiosismo teve como epicentro a Europa Ocidental, estendeu-se para a América do Norte, e se espalha pela periferia do sistema mundial, chegando até nós.
Há uma prioridade de se atacar as religiões monoteístas de revelação, porque julgam que o monoteísmo promove a intolerância e a revelação traz conceitos e preceitos autoritativos retrógrados (o pecado, por exemplo) que se chocam com as visões tidas como superiores da autonomia das criaturas. Mais particularmente, esse ataque se centra contra o cristianismo.
A intolerância para com a religião implica impossibilitar sua expressão nos espaços públicos ou que seus seguidores ajam publicamente por motivações religiosas. A religião, para seus adversários secularistas, deveria apenas ficar confinada às quatro paredes dos templos e dos lares, à subjetividade de cada um, condenada à irrelevância.
Essa elite se sente iluminada, superior, com o papel histórico de proteger as pessoas delas mesmas, de corrigir seus “atrasos” e de “educar” a humanidade, seja pelo apropriação dos aparelhos ideológicos do Estado (educação, mídia), seja pelo uso do aparelho coercitivo do Estado (leis, justiça, polícia).
Na esteira desse movimento temos tido a chatice do “politicamente correto” (moralismo de esquerda), a luta por retirar símbolos religiosos dos espaços públicos, acabar com os dias santificados, proibir a saudação “Feliz Natal” (deve-se apenas desejar “Boas Festas”), e a defesa de bandeiras como a liberação sexual, o aborto (no lugar do direito à vida, o direito da mulher a dispor do “seu” corpo), a eutanásia e a licitude das “orientações sexuais” — a chamada agenda GLSTB (gays, lésbicas, simpatizantes, transgêneros e bissexuais).
Por sua mobilização política (e não por “descobertas científicas”) se promoveu a retirada dessa anomalia do rol das enfermidades e dos ilícitos — e se instituir o casamento homossexual — e se parte para proibir os que querem deixá-la, cassar o registro de psicoterapeutas, forçar a maioria a mudar seus padrões morais e criminalizar os que não aderirem.
Enquanto a Europa e a América do Norte já evidenciam um novo ciclo de perseguição religiosa, corre no Congresso Nacional um projeto de lei que faria o autor desse artigo ser condenado a até cinco anos de prisão por escrevê-lo.
Enquanto a minoria materialista tenta forçar uma ateucracia e a minoria homossexual tenta fomentar uma heterofobia — ódio aos que insistem no seu direito de afirmar a normatividade da heterossexualidade, e de não aceitar a normalidade do homoerotismo — eles recebem o apoio (cavalo de troia) de outra minoria: o liberalismo teológico. A nós, a maioria, cabe, democraticamente, o direito à resistência!
(*) Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife (PE).