Lei poderia excluir regime especial de ISS

Por Walter Alexandre Bussamara

Nas últimas semanas, verificamos a ocorrência de um ferrenho debate tributário antecedente à alteração da redação originária do Projeto de Lei do Município de São Paulo, 144/2001, que tornaria mais restrito o Regime Especial de tributação por meio de ISS em face de sociedades uniprofissionais.

Caso tal redação primeira fosse aprovada, as sociedades de profissão regulamentada perderiam o aludido benefício sempre que (i) terceirizassem serviços próprios e (ii) caracterizassem-se como empresa ou cuja atividade constituísse elemento de empresa, num panorama em que poderia restar presumido, ainda, o caráter empresarial da sociedade conforme fosse sua estrutura ou sua forma de prestação dos serviços[1].

Por sua vez, liderando esta batalha, a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de sua seccional de São Paulo, conseguiu fazer valer os seus argumentos jurídicos contrários a tais obstáculos, com destaque ao quanto contido no artigo 16 do Estatuto da Advocacia da OAB[2], culminando com a aprovação pela Câmara Municipal da capital do substitutivo do aludido Projeto de Lei, cujas inovações, acima referidas, não mais se aplicariam “às sociedades uniprofissionais em relação às quais seja vedado pela legislação específica a forma ou características mercantis e a realização de quaisquer atos de comércio”.

Noutras palavras, prestigiou-se o conteúdo diante da forma. As sociedades puramente uniprofissionais de atividade regulamentada, continuariam, portanto, em tese[3], sob um regime especial do ISS.

Não obstante, pretendemos apontar, nestas nossas reflexões, uma outra forma de raciocinar igualmente impeditiva da exclusão do regime especial de ISS em face das sociedades uniprofissionais, tendo como ponto de partida, porém, a nossa atual Constituição Federal.

Como se sabe, a mesma não criou tributos. Estabeleceu, apenas, as suas regras-matrizes (arquétipos), distribuindo, entres as pessoas políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), uma série de competências tributárias, assentadas, por sua vez, em fatos específicos e expressos (materialidades) do mundo real.

Assim sendo, tomando-se como exemplo o imposto municipal, ora objeto destas reflexões (ISS), a Carta Suprema facultou aos diversos legisladores municipais ordinários a sua instituição, autorizando-os, em seus âmbitos territoriais, a assim procederem por meio da previsibilidade hipotética, normativa[4], da respectiva prestação de serviços para fins de recolhimento, então, do tributo, quando efetivamente ocorrida aquela prestação.

Vale dizer, quando houver a fiel subsunção do ‘fato’ à ‘norma’, estaremos diante do nascimento de uma relação jurídica tributária (da obrigação tributária). O exercício da competência tributária, portanto, seria um prius em relação ao nascimento do tributo[5].

Os limites materiais estabelecidos constitucionalmente, deste modo, acabam por perfazer a própria moldura impositiva de nosso sistema tributário, que dela não poderá se desgarrar.

Voltando ao nosso ISS, o Texto Constitucional assim prescreve: “Art. 156: Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (…) III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”.

Percebe-se aí, pois, a exata moldura que a Constituição atribuiu a tal imposto que deverá incidir sobre ‘serviços de qualquer natureza’ (enquanto obrigações de fazer), que ‘não sejam de transporte ou de comunicação’ (cuja competência é estadual) e que sejam ‘definidos em lei complementar’.

Verificados que sejam estes requisitos pela norma abstrata impositiva municipal, teremos uma tributação válida.

É com tais idéias, então, que nos sentimos confiantes em considerar plenamente indevida qualquer pretensão atual da municipalidade paulistana que viesse a restringir o alcance do regime especial de tributação, via ISS, sob sua jurisdição, das sociedades uniprofissionais, conforme previa a redação originária do Projeto de Lei 144/2011, de autoria de seu Poder Executivo.

Como já afirmamos, o exercício da competência tributária é facultativo. É uma aptidão. Se ocorrer, contudo, deverá respeitar, ipsis litteris, os ditames constitucionalmente postos. No caso do ISS, então, objeto destas reflexões, ficou condicionada a sua imposição ao respeito, primário, às definições então previstas em Lei Complementar da União Federal (art. 156, III, CF), representada, atual e preponderantemente, pelo que remanesceu do Decreto-lei 406/68 (recepcionado como Lei Complementar pela CF/88) e pela LC nº 116/03, a qual, recentemente, trouxe algumas inovações atinentes à matéria. Tais normas estariam, entendemos, na trilha do C. STJ[6], em boa harmonia.[7] Coexistem.

Assim, em relação àquelas sociedades, basicamente, foram as mesmas alcançadas por uma previsibilidade de regime especial de tributação do ISS, por meio do que a própria norma federal designou de ‘alíquotas fixas ou variáveis’.

De fato, assim dispõe o (ainda) vigente artigo 9º, §§ 1º e 3º do DL nº 406/68: “Art. 9º: A base de cálculo do imposto é o preço do serviço. § 1º: Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho. § 3°: Quando os serviços forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1°, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável”.

Ou seja, atribuiu-se, de forma incondicionada, quando devidamente configuradas, um regime especial de tributação a tais sociedades, pelo próprio instrumento normativo (Lei Complementar) que fora autorizado, para tanto, pela Constituição Federal, especialmente, no que tange às definições em torno da prestação de serviços.

Até aí, então, nenhuma censura podemos atribuir à forma[8] do regime especial previsto no atual artigo 15, caput, incisos I, II e §§ 1° e 2º da legislação municipal instituidora do ISS paulistano (lei nº 13.701/03[9]).

Não podemos concluir o mesmo, porém, no que diz respeito à redação originária do mencionado Projeto de Lei municipal nº 144/2001 no que toca ao acréscimo das restrições já acima referidas.

Com efeito, as situações excludentes do regime especial, na forma como eram pretendidas, pelo PL do município de São Paulo, antes de seu substitutivo, extrapolariam, em tudo e por tudo, o quanto regulado pela aludida Lei Complementar que ainda trata, por injunção constitucional, acerca da questão (DL nº 406/68).

Não se vê, em tal norma, qualquer condicionante para o aproveitamento do regime especial do ISS, senão a necessidade de subsunção fática ao conceito de sociedade, devidamente constituída, de profissão una e, regulamentada.

Em outras palavras, as condições constantes inicialmente do PL para que as sociedades em questão viessem a usufruir, sob um regime especial, do recolhimento do ISS, bateriam de frente, por certo, com a intentio constitutiones.

E sabemos que as mais importantes normas estão na Constituição[10].

Caso fosse convertido em lei, o referido Projeto, em sua inaugural redação, testemunharíamos uma dupla afronta em nosso ordenamento jurídico: a primeira, sob o manto da ilegalidade, à Lei Complementar já referida e, ao depois, sob a pecha da inconstitucionalidade, ao Texto Supremo que, àquela LC atribuiu o dever, justamente, de sistematização da cobrança do ISS.

Estas, enfim, nossas considerações.

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[1] Redação proposta para o art. 15 da lei municipal nº 13.701/03: “Art. 15 (…) § 2º – Excluem-se do disposto no inciso II do ‘caput’ deste artigo as sociedades que: (…) VI – terceirizem ou repassem a terceiros os serviços relacionados à atividade da sociedade; VII – se caracterizem como empresárias ou cuja atividade constitua elemento de empresa; VIII – sejam filiais, sucursais, agências, escritório de representação ou contato, ou qualquer outro estabelecimento descentralizado ou relacionado a sociedade sediada no exterior. (…) §7º. Para fins do disposto no inciso VII do § 2º deste artigo, são consideradas sociedades empresárias aquelas que tenham por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito à inscrição no Registro Público das Empresas Mercantis, nos termos dos artigos 966 e 982 do Código Civil. §8º. Equiparam-se às sociedades empresárias, para fins do disposto no inciso VII do § 2º deste artigo, aquelas que, embora constituídas como sociedade simples, assumam caráter empresarial, em função de sua estrutura ou da forma da prestação dos serviços”.

[2] Lei nº 8.906/94: “Art. 16. Não são admitidas a registro, nem podem funcionar, as sociedades de advogados que apresentem forma ou características mercantis, que adotem denominação de fantasia, que realizem atividades estranhas à advocacia, que incluam sócio não inscrito como advogado ou totalmente proibido de advogar”.

[3] Em tese, pois ainda estamos, em última análise, diante de um Projeto de Lei.

[4] A competência tributária, para Roque Carrazza, “é a aptidão para criar, in abstracto, tributos”. Curso de Direito Constitucional Tributário. 23ª ed., rev., ampl. e at.. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 483.

[5] Roque Carrazza. Idem ob. cit., p. 486.

[6] Para o STJ, “o art. 9º, pp. 1º e 3º, do Decreto-Lei nº 406/68, que dispõe acerca da incidência do ISS sobre as sociedades civis uniprofissionais, não foi revogado pelo art. 10 da Lei nº 116/2003”. REsp 713.752-PB, 2ª T., rel. Min. João Otávio Noronha, j. 23.05.06, DJU 1 de 18.08.06, p. 371.

[7] Para José Eduardo Soares de Melo, a respeito, “Não se trata de manifesto conflito de lei no tempo, porque a norma anterior (natureza especial) harmoniza-se com a norma posterior (natureza geral)”. Curso de Direito Tributário. 9ª edição. São Paulo: Dialética, 2010, p. 579.

[8] A única ressalva que fazemos, porém, é material, quanto ao seu conteúdo, vale dizer, diz respeito a um possível questionamento das sociedades uniprofissionais que não restaram alcançadas originariamente pelo referido regime especial, pleiteando-o, pois.

[9] “Art.15: Adotar-se-á regime especial de recolhimento do Imposto: I – quando os serviços descritos na lista do ‘caput’ do artigo 1º forem prestados por profissionais autônomos ou aqueles que exerçam, pessoalmente e em caráter privado, atividade por delegação do Poder Público, estabelecendo-se como receita bruta mensal os seguintes valores: (…); II – quando os serviços descritos nos subitens 4.01, 4.02, 4.06, 4.08, 4.11, 4.12, 4.13, 4.14, 4.16, 5.01, 7.01 (exceto paisagismo), 17.13, 17.15, 17.18 da lista do ‘caput’ do artigo 1º, bem como aqueles próprios de economistas, forem prestados por sociedade constituída na forma do parágrafo 1º deste artigo, estabelecendo-se como receita bruta mensal o valor de R$ 800,00 (oitocentos reais) multiplicado pelo número de profissionais habilitados. § 1º – As sociedades de que trata o inciso II do ‘caput’ deste artigo são aquelas cujos profissionais (sócios, empregados ou não) são habilitados ao exercício da mesma atividade e prestam serviços de forma pessoal, em nome da sociedade, assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da legislação específica. § 2º – Excluem-se do disposto no inciso II do ‘caput’ deste artigo as sociedades que: I – tenham como sócio pessoa jurídica; II – sejam sócias de outra sociedade; III – desenvolvam atividade diversa daquela a que estejam habilitados profissionalmente os sócios; IV – tenham sócio que delas participe tão-somente para aportar capital ou administrar; V – explorem mais de uma atividade de prestação de serviços”. Estas expressas excludentes, pensamos, já decorreriam da própria interpretação do artigo.

[10] Para Roque Carrazza, “…as normas jurídicas de mais alto grau encontram-se na Constituição Federal. (…) algumas, veiculam simples regras, ao passo que, outras, verdadeiros princípios”. Idem ob. cit., pp. 34 e 35.

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