Ritual informal de Juizados gerou ações infundadas

Por Luciano Pereira Vieira

Os Juizados Especiais Federais completaram sua primeira década neste dia 12 de julho, data da promulgação da Lei 10.259/2001, que os instituiu.

Muito embora a Lei 10.259 tenha entrado em vigor somente seis meses após a sua publicação, por força do que dispôs seu artigo 27, a data da promulgação desse diploma legal representou importante marco jurídico, haja vista ter representado passo importante rumo à construção de um completo microssistema normativo para os Juizados Especiais.

Desde suas origens históricas, calcadas no início da década de 1980 e inspiradas nas Small Claims Courts de Nova York[1], até o presente momento, os Juizados Especiais sempre tiveram em mira franquear ao cidadão comum o acesso à Justiça de modo simplificado, desburocratizado, menos dispendioso e célere, numa verdadeira ruptura axiológica com o modelo de prestação jurisdicional solene e formal regido pelo Código de Processo Civil.

Muito embora desde 1995 o legislador infraconstitucional já tivesse dado início à concretização do disposto no inciso I do artigo 98 da Constituição Federal, mediante a criação, no âmbito da Justiça dos Estados, dos Juizados Especiais Cíveis, é inegável que o grande salto dessa justiça especializada somente ocorreu com a criação dos Juizados Especiais Federais, por ter implicado a submissão da Fazenda Pública federal e das empresas públicas federais à sua jurisdição.

Afinal de contas, sendo fato notório que esses entes já eram muito demandados na Justiça comum federal, não se mostrava plausível mantê-los fora desse microssistema normativo, por representar, ainda que indiretamente, contribuição para o descrédito para com as instituições estatais, inclusive do próprio Poder Judiciário. Essa afirmação é decorrente da constatação de que, sem a criação dos JEFs, haveria a marginalização, por todo o país, de cidadãos que, diante da simplicidade e do diminuto valor de suas pretensões, ver-se-iam desestimulados a buscar amparo judicial para a efetivação de seus direitos perante o Estado, por parecer-lhes preferível suportar a perda desses direitos a terem que arcar com os elevados custos e a aguardar o moroso desfecho do processo civil comum.

Certamente, esse cenário representaria um fator de grave animosidade social.

A despeito disso, somente a partir da Emenda Constitucional 22, de 18 de março de 1999, a qual acrescentou parágrafo único ao já referido artigo 98[2], é que foi possível a criação, por lei federal, de Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal.

Daí termos afirmado que o advento da Lei 10.259 em 12 de julho de 2001, quase 13 anos após a promulgação de nossa Constituição Cidadã, representou importante marco jurídico para o país, porquanto importante obstáculo à efetivação do acesso à Justiça restou transposto.

É preciso, por isso, realizar um singelo balanço das conquistas, avanços e retrocessos experimentados pela Lei 10.250, bem como estabelecer as perspectivas, para um futuro próximo, das tarefas que ainda se revelam pendentes e que se mostram prementes à consecução dos objetivos maiores da criação dos Juizados Especiais Federais.

Indubitavelmente, em sua primeira década, os JEFs facilitaram o acesso à Justiça pela simplificação da dedução de demandas em face da Fazenda Pública e empresas públicas federais, algo antes somente possível perante as Varas da Justiça Federal Comum e sob o rito do solene Código de Processo Civil.

Por outro lado, essa simplificação não foi acompanhada da necessária estruturação do aparelho estatal, seja no Poder Judiciário, seja no próprio Poder Executivo. E o motivo disso é singelo: as demandas diariamente apresentadas ao Estado são sempre superiores à sua capacidade de absorção a curto e médio prazos, algo que não foi diferente no que tange aos JEFs.

Os Juizados Especiais Federais, já em seus primórdios, acabaram sendo implantados em condições muito inferiores às que efetivamente necessitavam para dar cabo à relevante missão que lhe fora atribuída pela Constituição: a de, ao menos, amainar a litigiosidade até então contida em face daqueles citados entes federais.

Atualmente, embora o Conselho da Justiça Federal venha demonstrando grande esforço em expandir o número de Juizados Especiais à medida que realiza a interiorização da Justiça Federal, consoante se infere da Resolução/CJF 102, de 14 de abril de 2010[3], certo é que eles ainda são em número muito inferior ao ideal, bem como muitos ainda carecem de quadros próprios, sobretudo nas Turmas Recursais e nas Turmas de Uniformização.

Atento a esse fato, o Conselho da Justiça Federal[4], apesar de já ter reservado 10% das vagas criadas pela Lei 12.011/2009 para essa finalidade, pretende ainda obter o aval do Conselho Nacional de Justiça para o encaminhamento ao Congresso Nacional de projeto de lei destinado à criação, dentre outros, de mais 225 novos cargos de juiz federal exclusivamente para atuação no microssistema dos Juizados Especiais Federais.

Certamente, essa necessária expansão do Poder Judiciário exigirá o mesmo esforço por parte do Poder Executivo federal a fim de expandir e aparelhar não só seus órgãos consultivos e contenciosos, concentrados na Advocacia-Geral da União, mas também a Defensoria Pública da União para fazer frente à demanda que dela advirá, sob pena de travamento do sistema.

Nesse ponto, é interessante notar que a facilitação do acesso à Justiça pelos Juizados Especiais também revelou uma faceta negativa, que precisa ser imediatamente corrigida.

Nos últimos tempos, a sua célere, informal e pouco dispendiosa ritualística, somada à quase ausência de critérios objetivos para o deferimento dos benefícios da assistência judiciária gratuita, fizeram com que houvesse um vertiginoso incremento das demandas flagrantemente temerárias e infundadas perante os Juizados Especiais, amparadas na certeza de impunidade sucumbencial.

Esse fato depõe contra os objetivos básicos da instituição dos Juizados Especiais por exigir o reconhecimento de que o próprio microssistema contribuiu não só para trazer ao Poder Judiciário aqueles que se sentiam desestimulados a exigirem seus direitos de diminuta expressão econômica perante a solene Justiça Comum, como também, de modo antagônico, trouxe a reboque alguns aventureiros judiciais que as formalidades, custos e ritualística do processo civil comum, até então, haviam conseguido impedir de bater indevidamente às portas da Justiça.

Dois outros pontos relevantes a serem analisados nesses dez anos dos JEFs são a ainda tímida, embora crescente, postura conciliatória da Fazenda Pública e a existência, ainda nos dias atuais, de magistrados e advogados pouco familiarizados com o espírito do microssistema dos Juizados Especiais.

No primeiro caso, a solução parece despontar no sentido de, uma vez inviabilizada a solução administrativa do litígio, garantir-se, com mais clareza e objetividade, que os advogados públicos possam efetivamente celebrar acordos para pôr termo às demandas judiciais sem maiores receios funcionais, sobretudo quando patente que o término da contenda atende muito mais ao interesse público do que o prolongamento irrazoável do processo. Por outro lado, ao contrário do que se verificou nos últimos anos, é necessário também que a jurisprudência dos Juizados Especiais Federais apresente uma certa estabilidade. Afinal, a volatilidade jurisprudencial dos JEFs, além de gerar insegurança jurídica, acaba se revelando um convite à perpetuação do litígio e uma velada torcida pela demora de seu desfecho pela expectativa de que, com o passar dos anos, a mudança dos membros das Turmas Recursais e das Turmas de Uniformização enseje, igualmente, uma guinada de posicionamentos até então sedimentados.

Quanto ao segundo ponto, a mudança esperada é de postura. Todos aqueles que atuam perante os Juizados Especiai
s Federais já devem ter se deparado com demandas cujo rito não discrepavam, em nada, da solene e formal tramitação processual prevista no Código de Processo Civil.

Há ainda, sem dúvida alguma, muitos magistrados que, presos às amarras do costume, alargam as fases procedimentais dos Juizados Especiais de modo desnecessário, como é o caso da abertura de prazo para réplica à contestação e para alegações finais após o término da audiência a de instrução e julgamento, deixando de enfatizar a oralidade em grau máximo e a busca pela rápida solução da lide. Igualmente, há advogados que, quando diante de magistrados familiarizados com o microssistema dos Juizados Especiais, insistem em tentar, por meio de reiterados requerimentos e manifestações, conduzir a marcha processual por uma via paralela à estabelecida pelo CPC ao denominado rito ordinário.

Por isso, partindo do princípio de que, a cada ano vindouro, os Juizados Especiais Federais estarão ainda mais presentes no dia-a-dia forense e na vida dos cidadãos comuns, é necessário um amplo esforço institucional para pôr fim à atual tímida exigência de conhecimento das normas e ritualística que regem esse microssistema para os operadores do Direito, seja nas universidades e no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, seja nos concursos públicos para provimento de cargos para a magistratura federal, Advocacia-Geral da União, Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal e para analistas e técnicos da Justiça Federal.

Nesses dez anos que se passaram para os Juizados Especiais Federais, a certeza que resplandeceu foi a de que, embora sua instituição tenha representado um grande avanço em termos de acesso à Justiça e em prol da consolidação da verdadeira cidadania, há ainda um longo caminho a ser trilhado rumo ao seu aperfeiçoamento. E isso precisa começar imediatamente. Afinal, olhar uma década à frente pode parecer um longo percurso. Entretanto, em termos institucionais, quando voltamos nossos olhos para trás, a sensação que fica é a de que o ano de 2001 estava logo ali, num passado não tão distante.

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[1] É o que se infere da revogada Lei 7.244, de 07 de novembro de 1984, que dispôs sobre a criação e funcionamento do Juizado Especial de Pequenas Causas. Sobre a evolução histórica do microssistema normativo dos Juizados Especiais, sugerimos a leitura do primeiro capítulo de nosso livro (VIEIRA, Luciano Pereira. Sistemática Recursal dos Juizados Especiais Federais Cíveis: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 01-13).

[2] O parágrafo único do artigo 98 da Constituição da República de 1988 foi renumerado para § 1o a partir da Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004.

[3] A Resolução/CJF 102/2010 dispõe sobre a localização das Varas Federais criadas pela Lei 12.011, de 04 de agosto de 2009, a qual tem por objetivo realizar a interiorização da Justiça Federal de primeiro grau e a implantação dos Juizados Especiais Federais no País.

[4] O Conselho da Justiça Federal contingenciou essas vagas com amparo no art. 7o da Lei 12.011/2009, que dispõe: “A fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo nos Juizados Especiais Federais, fica o Conselho da Justiça Federal autorizado a remanejar, de acordo com os dados de movimentação processual e com a necessidade do serviço e até o limite de 10% (dez por cento), os cargos e as funções criados por esta Lei para a estruturação das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais”.

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