Embaixada deve provar que bens não servem a penhora

A imunidade do Estado estrangeiro frente às decisões do Poder Judiciário nacional não é absoluta. Em relação a processos trabalhistas, o Tribunal Superior do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal já decidiram que as embaixadas e consulados submetem-se às leis brasileiras que regulam a relação de trabalho e emprego.

Mas, quando uma embaixada é condenada em ação trabalhista, dificilmente o trabalhador consegue executar a sentença. Ou seja, ganha, mas não leva. Isso porque apesar de a imunidade ser relativa, não se podem penhorar bens que estejam relacionados diretamente com a representação consular ou diplomática.

Uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região pode começar a mudar esse quadro. Os desembargadores da 3ª Turma do tribunal decidiram que não basta à embaixada declarar que suas contas bancárias e seus imóveis estão vinculados à missão diplomática. Tem de comprovar, de forma clara, que os bens indicados para penhora têm relação direta com a atividade de diplomacia.

A decisão foi tomada no dia 4 de julho, em processo movido por um ex-empregado da Embaixada da Namíbia no Brasil. Os juízes inverteram o ônus da prova e decidiram que a embaixada tem de exibir “de forma detalhada os valores que compõem o seu orçamento e as despesas efetivadas e pendentes com as atividades de representação diplomática”.

O relator da causa, desembargador Douglas Alencar Rodrigues, afirmou que a Namíbia não apresentou qualquer proposta para pagar a dívida da condenação que lhe foi imposta. Limitou-se a responder que os bens indicados pelo trabalhador não poderiam ser objeto de penhora porque servem à missão diplomática.

Para o juiz, o comportamento é lamentável e “não se coaduna com os valores éticos e com o princípio da boa-fé que devem nortear a conduta dos Estados em suas relações com a comunidade internacional, tampouco demonstra o compromisso da Executada para com a efetiva proteção que deve conferir aos direitos humanos”.

De acordo com o desembargador, não se cogita a hipótese de penhorar bens relacionados à atividade diplomática da embaixada. Mas é necessário verificar se todos os bens e valores de suas contas estão relacionados com essa atividade. O governo da Namíbia pode recorrer da decisão.

Alencar Rodrigues também frisou que “a aplicação de institutos processuais da legislação nacional, relativos aos critérios e parâmetros de distribuição do ônus da prova, não configura infração a qualquer preceito da legislação internacional, relativo à imunidade de execução”.

Com a decisão, o processo deve retornar à primeira instância para que o juiz dê andamento à execução e notifique a República da Namíbia para que ela comprove que todos os recursos presentes em suas contas bancárias e os imóveis indicados à penhora estão destinados às atividades de representação diplomática.

Leia a decisão

TRT 00611-2008-001-10-00-5 AP – ACÓRDÃO 3ª TURMA/2011
RELATOR: Desembargador Douglas Alencar Rodrigues
REVISORA: Desembargadora Heloísa Pinto Marques
Agravante: Elcio Ferreira da Silva
Advogado: Júlio César Borges de Resende
Agravado: República da Namíbia
Advogado: David Coly
ORIGEM: 01ª VARA DO TRABALHO DE BRASÍLIA/DF
Classe Originária: Ação Trabalhista – Rito Ordinário
(Juiz MAURO SANTOS DE OLIVEIRA GOES)

EMENTA:

1. ESTADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. FASE EXECUTIVA. CARÁTER RELATIVO. BENS AFETADOS ÀS ATIVIDADES DE IMPÉRIO. IMPENHORABILIDADE. Na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, coerente com as modernas correntes doutrinárias do Direito Internacional Público, a imunidade de jurisdição reconhecida aos estados estrangeiros, em sede de execução de sentença detém caráter relativo. Nesse cenário, apenas os bens vinculados ao exercício das atividades de representação consular e diplomática estarão imunes à constrição judicial, não havendo, portanto, apenas em relação a eles, possibilidade de atuação do Poder Judiciário nacional (art. 84, I, do Provimento Geral Consolidado da Justiça do Trabalho).

2. ESTADO ESTRANGEIRO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. CRITÉRIO DE DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA. Ao comparecer perante a jurisdição nacional, o Estado estrangeiro deve observar as regras e procedimentos previstos na legislação processual, editados de forma soberana pelo Estado acreditado (CF, art. 5º, LIV). Disso decorre que a aplicação de institutos processuais da legislação nacional, relativos aos critérios e parâmetros de distribuição do ônus da prova, não configura infração a preceito de normativo internacional, relativo à imunidade de execução, antes traduzindo simples expressão da soberania do Estado acreditado. Para afastar a possibilidade de apreensão de bens em sede de execução de sentença de créditos trabalhistas — gravados de caráter alimentar e integrantes do rol de direitos humanos fundamentais (CF, arts. 6º e 7º) —, deve o ente público executado comprovar, de forma clara e insofismável, que os bens indicados estão afetados à missão consular ou diplomática. Detectado o equívoco da imputação desse ônus ao Exequente, inclusive por aplicação do critério doutrinário da aptidão para a prova, cabe determinar o retorno dos autos à origem, para retomada do curso executivo legal, como entender de direito o d. juízo primário. Agravo de petição conhecido e parcialmente provido.

I — RELATÓRIO
O Excelentíssimo Juiz do Trabalho MAURO SANTOS DE OLIVEIRA GOES, Titular da MMª 01ª Vara do Trabalho de Brasília, proferiu a r. sentença de fls. 423/425, julgando parcialmente procedentes os embargos opostos à execução movida por ELCIO FERREIRA DA SILVA em desfavor da REPÚBLICA DA NAMÍBIA.

Inconformado, interpõe o Exequente agravo de petição (fls. 427/443), buscando a penhora de numerário por meio do sistema BACEN-JUD ou a penhora dos bens imóveis indicados.

Não foi apresentada contraminuta.

O Ministério Público do Trabalho, em parecer da lavra do ilustre Procurador ENEAS BAZZO TORRES, opina pelo conhecimento e não provimento do recurso (fls. 452/453).

Em síntese, é o relatório.

II — V O T O
1 – ADMISSIBILIDADE
Tempestivo e regular, conheço do recurso.

2 – MÉRITO
Para melhor compreensão da controvérsia, impõe-se um breve relato dos fatos. Ao se manifestar às fls. 400/401, o Exequente reitera a possibilidade de penhora de valores em contas bancárias da Executada, bem como dos imóveis indicados às fls. 390/396, assinalando que o ônus de comprovar a destinação dos bens apontados seria da Executada.

Instada a pronunciar-se sobre a destinação dos bens indicados pelo Exequente, conforme despacho de fls. 404, a Executada se manifestou às fls. 410/421, anexando a declaração de fl. 422 sobre a destinação dos imóveis indicados pelo Autor. Afirmou a Executada que os imóveis “(…) são de propriedade exclusiva da executada República da Namíbia e servem, exclusivamente para fins diplomáticos” (fl. 411), não podendo, assim, ser objeto de penhora.

O d. Juízo de origem, nos termos da sentença de fls. 423/425, julgou parcialmente procedentes os embargos opostos à execução, reconhecendo que a Executada (República da Namíbia), na condição de Estado estrangeiro, detém imunidade de execução relativa, porquanto admitida a “(…) penhora de bens dos Estados estrangeiros desde que não afetados às legações diplomáticas ou consulares” (fl. 421). Assinalou, ademais, a impossibilidade de penhora de numerário pelo sistema BACEN-JUD, em face do disposto no inciso I do artigo 84 do Provimento Geral Consolidado da Justiça do Trabalho. Anotou que tampouco podem ser objeto de constrição os imóveis indicados pelo Exequente, uma vez que afetados “(…) às legações diplomáticas, em consonância com a petição e documentação acostada às fl. 410/422)” (fl. 421).

Consignou a seguinte conclusão:

“O tema em questão já foi motivo de vários despachos restando claro que o Estado Estrangeiro é detentor de imunidade de jurisdição relativa, na fase de execução, não podendo seus bens afetos às legações diplomáticas ser alcançados pela execução, na forma da consolidada jurisprudência do STF e do TST.
À Luz do entendimento do Supremo Tribunal Federal no caso Genny v. Alemanha em 1989, com base em norma costumeira internacional, reconheceu que a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro em matéria trabalhista deixou de ser absoluta e passou a ser considerada relativa, admitindo, apenas a penhora de bens dos Estados estrangeiros desde que não afetados às legações diplomáticas ou consulares.
Ocorre que os bens indicados pelo exequente às fl. 391/396 não servem para garantia do juízo dada a sua intagilibilidade pela sua afetação às legações diplomáticas, em consonância com a petição e documentação acostada às fl. 410/422.
Outrossim, não há que se falar em bloqueio de numerários, via Bacen-Jud, ou de bens, via RENAJUD, em observância a orientação contida no inciso I do artigo 84 do Provimento Geral Consolidado da Justiça do Trabalho, que diz: (Omissis).
Assim, tendo em vista que os cálculos realizados não foram questionados pelo embargante tampouco pela embargada, julgo procedente os embargos à execução, no que diz respeito a imunidade relativa de jurisdição da embargante dada a ausência de demonstração de bens da embargante, passíveis de sofrer constrição” (fl. 421).

O Exequente interpõe agravo de petição, sustentando que não há falar em imunidade de execução para Estados Estrangeiros, sob pena de afronta aos artigos 1º, III e IV, 5º, XXXVI, 7º e 170, III, da Constituição Federal. Pleiteia, então, seja determinada a penhora de valores em contas bancárias da Executada por meio do sistema BACEN-JUD. Em caráter alternativo, requer a penhora dos “(…) imóveis noticiados no processo, posto que o ônus da prova quanto à destinação dos bens pertence à executada” (fl. 442). Reitera que a Executada detém o ônus de comprovar a destinação dos bens apontados.

Vejamos.

Na linha das modernas correntes doutrinárias, prestigiadas pela Suprema Corte brasileira, a regra consuetudinária do direito internacional materializada na velha parêmia par in parem non habet iudicium, não constitui obstáculo à responsabilização judicial de Estado estrangeiro.

De fato, a possibilidade de dar curso à lide executiva em face de pessoa jurídica de direito público externo vem sendo relativizada, cumprindo ressaltar, no entanto, que os atos de apreensão e expropriação patrimoniais não podem alcançar os bens reservados à representação consular ou diplomática.

Sobre o tema, vale conferir o seguinte precedente do Excelso Supremo Tribunal Federal:

“É bem verdade que o Supremo Tribunal Federal, tratando-se da questão pertinente à imunidade de execução (matéria que não se confunde com o tema concernente à imunidade de jurisdição ora em exame), continua, quanto a ela (imunidade de execução), a entendê-la como prerrogativa institucional de caráter mais abrangente, ressalvadas as hipóteses excepcionais (a) de renúncia, por parte do Estado estrangeiro, à prerrogativa da intangibilidade dos seus próprios bens (RTJ 167/761, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – ACO 543/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE) ou (b) de existência, em território brasileiro, de bens, que, embora pertencentes ao Estado estrangeiro, não tenham qualquer vinculação com as finalidades essenciais inerentes às legações diplomáticas ou representações consulares mantidas em nosso País.” (STF, 2ª Turma, RE 222.368-Agr/PE, fl. 17, Rel. Min. Celso de Melo, DJ de 14.02.2003)

Na referida decisão, a Excelsa Corte cita, ainda, à fl. 18, a pertinente compreensão que sobre essa matéria tem José Francisco Rezek, ex-integrante daquela Corte, vazada nos seguintes termos:
“A execução forçada da eventual sentença condenatória, entretanto, só é possível na medida em que o Estado estrangeiro tenha, no âmbito espacial da nossa jurisdição, bens estranhos à sua própria representação diplomática ou consular — visto que estes se encontram protegidos contra a penhora ou medida congênere pela inviolabilidade que lhes asseguram as Convenções de Viena de 1961 e 1963, estas seguramente não derrogadas por qualquer norma ulterior (…).’ (grifei)”

O Colendo Tribunal Superior do Trabalho, por sua vez, também se posicionou no sentido de admitir a constrição de bens de Estado estrangeiro, desde que os atos expropriatórios não se voltem contra os bens vinculados às representações diplomática e consular. A título de exemplo, cito o seguinte precedente do TST:
“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ESTADO ESTRANGEIRO . CONSULADO GERAL DA ÍNDIA. IMUNIDADE RELATIVA DE JURISDIÇÃO E EXECUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE RECAIR PENHORA SOBRE BENS AFETOS À REPRESENTAÇÃO DIPLOMÁTICA. CONCESSÃO DA SEGURANÇA. Nos termos da jurisprudência do Excelso STF e desta Corte, é relativa a imunidade de jurisdição e execução do Estado estrangeiro, não sendo passíveis de constrição judicial, contudo, os bens afetados à representação diplomática. Assim, deve ser parcialmente concedida a segurança, a fim de se determinar que não recaia penhora sobre bens atrelados, estritamente, à representação diplomática ou consular do impetrante. Precedentes. Recurso ordinário em mandado de segurança conhecido e parcialmente provido.” (Processo TST-RO-1258500-04.2008.5.02.0000, Acórdão da Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, DEJT 19/04/2011).

Desse modo, irretocável a decisão que reconheceu o caráter relativo da imunidade de execução conferida à Executada.

Alcançada a conclusão de que é possível a execução do Estado estrangeiro, no tocante aos bens que não se vinculam às atividades diplomáticas e consulares, releva apreciar as demais questões veiculadas no agravo de petição interposto, mormente aquelas relativas ao ônus da prova acerca da finalidade dos bens indicados à penhora.

Afirma o Exequente que o Estado estrangeiro detém tal encargo, impondo-se à Executada, na hipótese, a demonstração de que os valores nas contas bancárias e os imóveis indicados para penhora vinculam-se às suas atividades diplomáticas e consulares.

Penso que a questão merece maior reflexão.

Conforme já explicitado, é certo que a doutrina e a jurisprudência vêm considerando relativa a imunidade de jurisdição e de execução conferidas aos Estados estrangeiros, afastando a imunidade do Estado estrangeiro perante o Judiciário brasileiro quando a questão debatida tem origem em atos de gestão, nos quais se incluem os contratos de trabalho firmados.

Sobre o tema, o ilustre doutrinador José Francisco Rezek apresenta novas perspectivas, com base em diplomas legais e decisões judiciais de nações diversas, bem como em convenções internacionais que vêm sendo adotadas sobre a imunidade do Estado estrangeiro, de modo a conferir nova diretriz ao instituto da imunidade de jurisdição. Cita como exemplos a Convenção européia sobre imunidade do Estado, que exclui da imunidade as ações decorrentes de pactos celebrados e executados in loco (vigente a partir de junho/1976), e a Convenção das Nações Unidas sobre a imunidade de jurisdição do Estado e de seus bens (adotada pela ONU em 2004, mas ainda sem vigência).

Elucida o ilustre doutrinador que a nova diretriz está orientada no sentido da exclusão total dessa imunidade para as demandas relativas às relações jurídicas estabelecidas pelos Estados estrangeiros com particulares locais, afirmando ser possível a seguinte previsão sobre o tema:
“(…) Isso significa algo afinal previsível por sua perfeita naturalidade: a Justiça local é competente para conhecer da demanda contra Estado estrangeiro, sem que este possa arguir imunidade, justamente naqueles casos em que o direito substantivo local é aplicável. Tal o caso da reclamação trabalhista deduzida por aquele que a embaixada recrutou in loco (não importando sua nacionalidade, que pode ser até mesmo a do Estado empregador, ou da cobrança do preço da empreitada, dos serviços médicos, do aluguel em atraso, da indenização pelo infortúnio no trânsito.
A imunidade tende a reduzir-se, desse modo, ao mais estrito sentido dos acta jure imperii, a um domínio regido seja pelo direito das gentes, seja pelas leis do próprio Estado estrangeiro (…)” (REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 211).

Essa nova concepção da imunidade conferida aos Estados estrangeiros harmoniza-se com o desenvolvimento das relações internacionais entre Estados, orientada pelos princípios da boa-fé e pela relevância conferida à dignidade da pessoa humana.

O respeito a tais princípios não se coaduna com o descumprimento de obrigações trabalhistas originadas nos pactos laborais firmados pelos Estados com particulares. Afinal, a condenação imposta ao Estado Estrangeiro, em regular processo de conhecimento e execução, refere-se a parcelas oriundas do extinto contrato de trabalho, restando evidenciado, pois, seu caráter alimentar.

Não é demais relembrar que os direitos trabalhistas, no âmbito do Direito Internacional contemporâneo, são identificados como direitos humanos, exigindo, pois, tutela diferenciada. Tais direitos vinculam-se à própria dignidade da pessoa humana, valor essencial que a ordem jurídica busca preservar.

A ilustre doutrinadora Flavia Piovesan elucida que historicamente, após a Segunda Guerra Mundial, foi conferida singular importância ao valor da dignidade da pessoa humana, emergindo, sob essa égide, o denominado Direito Internacional dos Direitos Humanos e a nova feição do Direito Constitucional ocidental.

Em sua lição, a dignidade da pessoa humana, a partir desse momento, passa a embasar a ordem jurídica, seja no plano internacional, seja no constitucionalismo local, explicitando sobre o tema:
“Sustenta-se que é no princípio da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra o próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, para a hermenêutica constitucional contemporânea. Consagra-se, assim, a dignidade humana como verdadeiro superprincípio, a orientar tanto o Direito Internacional como o Direito interno. Para Paulo Bonavides, ‘nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz do Direito Constitucional ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade. A dignidade humana simboliza, desse modo, verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido.” (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 30-31).

Tal concepção não passou ao largo da Constituição Brasileira de 1988, que estabelece entre os princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (Constituição Federal, art. 1º, III e IV), incluindo os direitos sociais trabalhistas entre os direitos e garantias fundamentais (CF, título II, capítulo II, arts. 6º e 7º).

A Constituição Federal fixa, ademais, a prevalência dos direitos humanos como preceito orientador de suas relações internacionais (CF, art. 4º, II).

A ilustre doutrinadora esclarece que a adoção pelo Brasil da primazia dos direitos humanos para orientar suas relações internacionais implica não só a integração das normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos no seu ordenamento jurídico, mas o reconhecimento da:
“… existência de limites e condicionamentos à noção de soberania estatal. Isto é, a soberania do Estado brasileiro fica submetida a regras jurídicas, tendo como parâmetro obrigatório a prevalência dos direitos humanos. Rompe-se com a concepção tradicional de soberania estatal absoluta, reforçando o processo de sua flexibilização e relativização, em prol da proteção dos direitos humanos.” (PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 40).

Anoto que o processo histórico de internacionalização dos direitos humanos, enfatizado após a Segunda Guerra Mundial, implicou uma nova concepção sobre o tema, orientando-se pela idéia de que a proteção aos direitos humanos não mais se limitava ao âmbito de cada Estado, mas antes traduzindo, na verdade, um interesse internacional, vinculado à comunidade internacional.

A partir desse marco histórico, passou a ser relativizada de forma crescente a noção de soberania estatal, em face da necessidade de proteção dos direitos humanos.

Cumpre destacar que o dever de conferir proteção aos direitos humanos — nos quais se incluem os direitos trabalhistas, friso — não se restringe aos países que incorporaram tal orientação do direito internacional no seu ordenamento jurídico ou assinaram convenções e tratados internacionais sobre o tema.

De fato, com o fenômeno da internacionalização dos direitos humanos após a Segunda Guerra Mundial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) adquiriu, com o passar dos anos, status diferenciado, porquanto seus termos transmudaram para a condição de costume internacional, aplicando-se assim a todos os países, com eficácia erga omnes.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, na lição de Flávia Piovesan, além de afirmar a universalidade dos direitos humanos, “introduz a indivisibilidade desses direitos, ao ineditamente conjugar o catálogo dos direitos civis e políticos com o dos direitos econômicos, sociais e culturais” (Op. cit., p. 137).

Acrescenta a ilustre doutrinadora que, na atualidade, é assente o entendimento de que a Declaração detém força jurídica vinculante por integrar o direito costumeiro internacional, afirmando-se como guia de conduta para os Estados integrantes da comunidade internacional.

Explicita sobre o tema:
“Para esse estudo, a Declaração Universal de 1948, ainda que não assuma a forma de tratado internacional apresenta força jurídica obrigatória e vinculante, na medida em que constitui a interpretação autorizada da expressão ‘direitos humanos’ constante dos arts. 1º (3) e 55 da Carta das Nações Unidas. Ressalte-se que, à luz da Carta, os Estados assumem o compromisso de assegurar o respeito universal e efetivo aos direitos humanos. Ademais, a natureza vinculante da Declaração Universal é reforçada pelo fato de — na qualidade de um dos mais influentes instrumentos jurídicos e políticos do século XX — ter-se transformado, ao longo dos mais de cinquenta anos de sua adoção, em direito costumeiro internacional e princípio geral do Direito Internacional” (PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 145-verso).

Nesse cenário, o debate proposto nestes autos — relativo à execução de Estado estrangeiro quanto a parcelas decorrentes de contrato de trabalho — não pode se desvincular da importância maior conferida à dignidade da pessoa humana, seja no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, seja na ordem jurídica interna.

Com efeito, as parcelas devidas ao Exequente (direitos trabalhistas), a par de asseguradas pela ordem jurídica interna, inserem-se no âmbito dos direitos humanos, cuja proteção também se impõe à Executada, conforme o costume sedimentado na comunidade internacional, fundado nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Desse modo, em face da necessidade de se conferir eficácia à execução de créditos trabalhistas, como forma de proteger direito social fundamental assegurado na Constituição Federal e, por conseguinte, a própria dignidade do trabalhador — valor que embasa o Direito Internacional dos Direitos Humanos —, e considerando ainda o caráter relativo da imunidade de jurisdição e de execução dos Estados estrangeiros, entendo assistir razão ao Exequente, quando afirma pertencer ao Executado o ônus da prova acerca da destinação de bens indicados à penhora.

Observo que a Executada não depositou os valores devidos, tampouco apresentou qualquer bem à penhora ou proposta de pagamento dos valores inscritos na coisa julgada, que foi editada, é desnecessário dizer, como expressão da própria soberania do Estado brasileiro.

A Executada, na verdade, cinge-se a afirmar que os bens indicados à penhora pelo Exequente vinculam-se à sua missão diplomática, estando, assim, livres de qualquer penhora.

Como prova de suas declarações, juntou apenas o documento de fl. 422, em que declara, de forma unilateral, a finalidade dos bens imóveis indicados pelo Autor, nada esclarecendo acerca dos valores existentes em suas contas bancárias.

Esclareço, por oportuno, que o documento de fl. 422, nos termos do artigo 368, parágrafo único, do CPC, prova as declarações dele constantes, mas não o fato nele declarado, qual seja, que os imóveis indicados pelo Reclamante vinculam-se às suas atividades diplomáticas.

Embora detentor de imunidade de jurisdição em sede executiva, fixada em caráter relativo, o Estado estrangeiro deve submeter-se, ao residir em juízo, às regras e procedimentos previstos na legislação nacional, regras e procedimentos que são de conhecimento geral e editados de forma soberana pelo Estado acreditado.

Nesse cenário, a aplicação de institutos processuais da legislação nacional, relativos aos critérios e parâmetros de distribuição do ônus da prova, não configura infração a qualquer preceito da legislação internacional, relativo à imunidade de execução.

Vale conferir a redação do dispositivo legal acima citado:
“Art. 368. As declarações constantes do documento particular, escrito e assinado, ou somente assinado, presumem-se verdadeiras em relação ao signatário.
Parágrafo único. Quando, todavia, contiver declaração de ciência, relativa a determinado fato, o documento particular prova a declaração, mas não o fato declarado, competindo ao interessado em sua veracidade o ônus de provar o fato.”

Ora, não se mostra condizente com o respeito devido à soberania brasileira, nem com a proteção que a ordem jurídica internacional confere aos direitos humanos, a conduta evasiva da Executada nos autos, no sentido de não apresentar qualquer proposta para pagamento dos créditos trabalhistas devidos, oriundos de contrato de trabalho firmado com particular no território brasileiro.

Tal comportamento, a par de lamentável, não se coaduna com os valores éticos e com o princípio da boa-fé que devem nortear a conduta dos Estados em suas relações com a comunidade internacional. Tampouco demonstra o compromisso da Executada para com a efetiva proteção que deve conferir aos direitos humanos, conforme acima explicitado.

Com escusas pela redundância, cabe enfatizar que não se olvida que os bens dos Estados estrangeiros vinculados à missão diplomática e consular encontram-se realmente livres de qualquer constrição, como acima explicitado.

No presente julgamento não se pretende contrariar quaisquer normas internacionais aplicáveis às relações diplomáticas entre estados estrangeiros (Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas e Convenção de Viena sobre Relações Consulares), mas apenas melhor ordenar a atuação deste Poder Judiciário, na perspectiva da satisfação possível do crédito exequendo.

Na verdade, busca-se apenas possibilitar a execução dos bens penhoráveis da Executada, como forma de garantir ao Autor direitos fundamentais que lhes foram assegurados pela própria Constituição Federal (CF, arts. 6º e 7º) e que se mostram essenciais para dar efetividade ao princípio da dignidade humana, que fundamenta os direitos humanos e orienta as relações internacionais.

Daí porque é evidente que a Executada detém o ônus de provar que os bens indicados à penhora — imóveis e saldo(s) de conta(s) bancária(s) — vinculam-se à sua missão diplomática.

Tal conclusão mais se reforça quando se verifica que a aptidão para a produção de provas — princípio que norteia a teoria das provas no processo do trabalho — acaba por revelar que é o próprio Executado, e não o Autor, quem detém maior aptidão ou capacidade para demonstrar que os recursos presentes em conta bancária mantida pelo órgão de representação estão, integralmente, destinados ao custeio das atividades diplomáticas.

A responsabilidade por esse encargo processual não pode ser transferida ao Exequente, que sequer tem acesso (não se pode presumir o contrário) aos números das contas e respectivos saldos e mesmo ao orçamento previsto para execução com os recursos repassados pelo Estado acreditante.

É razoável imaginar que a contratação de empregados pela Executada implica a existência da respectiva previsão orçamentária, circunstância que também corrobora a decisão de imputar-lhe o ônus de provar a destinação de seus recursos.

Nesse contexto, considerando a prevalência dos direitos humanos como princípio orientador das relações internacionais, o caráter vinculante da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o caráter relativo conferido à imunidade de execução dos Estados estrangeiros, bem como o princípio da aptidão para a prova, deverá a Executada comprovar, nos autos, de forma eficaz, que os bens imóveis indicados à penhora e os valores presentes em contas bancárias destinam-se, exclusivamente, ao cumprimento de atividades diplomáticas e consulares.

Cumpre-lhe, pois, exibir de forma detalhada os valores que compõem o seu orçamento e as despesas efetivadas e pendentes com as atividades de representação diplomática, como entender por bem o d. juízo da execução, a quem faculta a ordem jurídica amplo poder de direção, com vistas ao completo esclarecimento dos fatos relevantes da causa (CPC, art. 125 c/c os arts. 765 e 878, ambos da CLT).

Dou, pois, provimento parcial ao agravo de petição para determinar que a Executada comprove ao d. juízo da execução, no prazo e na forma que forem reputados adequados, que os valores totais de suas contas bancárias e do orçamento em execução destinam-se exclusivamente às atividades diplomáticas e consulares, cumprindo-lhe ainda comprovar, de forma válida e eficaz, a destinação dos bens imóveis indicados pelo Exequente.

Agravo parcialmente provido.

III — CONCLUSÃO
Ante o exposto, conheço do agravo do Exequente e, no mérito, dou-lhe provimento parcial para, reformando a r. sentença agravada, determinar o retorno dos autos à origem, a fim de que seja franqueada à Executada a comprovação de que todos os recursos presentes em sua(s) conta(s) bancária(s) e os imóveis indicados à penhora estão destinados às atividades de representação diplomática, tudo nos termos da fundamentação.

ACÓRDÃO
Por tais fundamentos, ACORDAM os Juízes da Egrégia Terceira Turma do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Região, à vista do contido na certidão de julgamento, em aprovar o relatório, conhecer do agravo do Exequente e, no mérito, dar-lhe provimento parcial para, reformando a r. sentença agravada, determinar o retorno dos autos à origem, a fim de que seja franqueada à Executada a comprovação de que todos os recursos presentes em sua(s) conta(s) bancária(s) e os imóveis indicados à penhora estão destinados às atividades de representação diplomática. Ementa aprovada.

Brasília(DF), 4 de julho de 2011(data do julgamento)

Desembargador DOUGLAS ALENCAR RODRIGUES
Relator

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