Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
O cinema norte-americano colaborou na divulgação romanceada do nativo daquele país, mascarando historicidade que constata genocídio. Filmes mostravam indígenas que não colaboravam com o progresso, que se opunham à marcha do cavalo de aço, do trem, esse último que anunciava a civilização. Entrelinhas e diálogos indicavam singeleza típica imputada a pessoas supostamente inadequadas para o novo entorno econômico. Artistas brancos representavam nativos e mesmo quando índios reais eram filmados o diretor fazia uma assustadora confusão com maneiras e costumes[1]. A maioria das ficções norte-americanas falsifica o indígena, exceção feita ao Pequeno Grande Homem (Little Big Man), de 1971, exemplo de anti-western, enfocando disparidade entre o velho oeste real e o fantasiado por Hollywood, mostrando uma civilização branca corrupta e hipócrita[2]. Nativos na realidade foram vencidos por uma cultura superior em termos numéricos de população, tecnologia de guerra e aptidão mental para guerra total[3]. O mito do indígena inimigo da civilização é parte recorrente na ideia de mito como comunicação entre membros da sociedade, etnologia como forma primeva de psicologia, na imagem de Claude Lévi-Strauss e do pensamento estruturalista[4]. O índio simplesmente se recusaria a colaborar com o branco[5]: essa a visão simplista, maniqueísta, de consumo fácil. E que devemos repudiar.
Muitas vezes os indígenas não têm papéis definidos nos filmes. Eles apenas dão um matiz local; são peças de decoração[6]. Não falam. A pureza da imagem rousseauniana é recorrente. Livre, ético e amante da natureza, o nativo é o protótipo do militante ecologista. Mas o avanço do capitalismo pensará nos moldes da regra do Coronel George Armstrong Custer[7], para quem índio bom seria índio morto, pelo que a crueldade e a ferocidade do nativo excederiam aquela das piores feras do deserto[8]. E voltando para o lado mais ameno e romântico, ainda persiste a metáfora de James Fenimore Cooper[9], que nos deixou O Último dos Moicanos, também levado para as telas, quando a última fala anuncia o fim de um mundo:
Meu dia foi muito longo. Pela manhã vi os filhos dos Unamis felizes e fortes; e ainda, antes que a noite tenha vindo, eu vivi para ver o último guerreiro da sábia raça dos moicanos[10].
O revisionismo que marca nossos dias, prenhe de ações afirmativas[11], de acertos de conta com a história, caracteriza novo tratamento dado ao índio norte-americano, que contemporaneamente dispensa ao índio apanágios de minoria[12]. Detentores da condição de índio devem comprovar sangue indígena e posse da qualidade de índio, conferida pela comunidade de origem[13].
O primeiro fragmento da definição, sangue indígena, é menos hemocêntrico e mais antropológico. É que a prova de sangue nativo sugere descendência que remonta a ancestrais que viviam na América, desde tempos pré-colombianos[14]. O segundo aspecto é pouco mais matizado por entrave burocrático. Para efeitos de legislação federal norte-americana, exige-se que a qualidade de índio decorra de participação em comunidade indígena reconhecida como tal pelo governo norte-americano[15]. Dado o não reconhecimento de muitos grupos, especialmente no Alaska e no Havaí, a exigência de prévia aceitação pelas autoridades federais qualifica óbice para obtenção de situações e privilégios.
A ideia de tribo enceta conceito que identifica unidade fundamental no direito aplicado aos índios[16]; um grupo de nativos pode ser qualificado como tal, simplesmente, embora em nível geral conceitue-se tribo como grupo de índios que é reconhecido como constitutivo de distinta, histórica e contínua entidade política, para pelo menos alguns dos propósitos governamentais[17]. Trata-se de conceito exógeno, não antropológico, político, desenhado pelo outro, pelo dominador que impõe lei, língua, comportamento. Verifica-se que o paradigma de índio é etnológico, político[18]. A existência do índio norte-americano é entrelaçada ao governo federal [19], e a competência parece ser desdobramento lógico do regime de propriedade de terras em nome da União Federal, naquele país[20].
O direito indígena é tomado não como unidade autônoma, qualificadora de competência própria do índio, em sentido pluralista, mas sim como direito federal, regido por legislação da União, a chamada federal Indian law[21]. Trata-se de corpo jurídico que se fundamenta em proteção de minoria[22], embora tendência contemporânea indique incentivos federais para desenvolvimento de políticas, economias e culturas tribais[23].
Amplitude histórica sugere identificação das fases desse relacionamento, especialmente sentido nos Cherokee Cases, quando a Suprema Corte firmou posição que possibilitou genocídio posterior. Essa matança mediante violento regime de expulsão de terras, ensejadora do caminho das lágrimas, a trail of tears, nome dado à rota que o governo norte-americano forçou aos cherokees, seminoles, chickasaws, choctaws e creeks, depois que expulsos para oeste das margens do rio Mississipi, de 1820 a 1840. Índios sofreram de doenças e mau tratamento[24].
Naquela ocasião, pelo menos quatro mil índios teriam morrido em campos de concentração onde foram reunidos para deportação ou durante o próprio processo de remoção[25]. Amplitude jurídica, normativa, determina estudo de governos indígenas, soberania, tratados, tributação, a questão da prática do jogo e da existência de cassinos em áreas indígenas, a par do problema da identificação das terras e respectivos títulos. O estudo do indígena norte-americano e sua perspectiva jurídica, a partir do dominante, revela insuspeitas maldades.
A direção política tomada em relação aos índios vincula-se a concepções teóricas europeias que sucederam ao descobrimento da América. Justificou-se o confisco de terras indígenas com base em Francisco de Victoria, jurista espanhol que em 1532 afirmara que o estado selvagem dos nativos (propensos até ao canibalismo) exigia política paternalista[26]. Puritanos ingleses na América do Norte[27] penderam no entanto para a compra de terras dos índios, comportamento também implementado pelos holandeses[28], providência de responsabilidade das autoridades coloniais[29].
Fala-se assim de período colonial, de 1492 a 1776, marcado por relacionamento entre autoridades coloniais pulverizadas ao longo do território e grupos indígenas; não se verificou ação única coordenada pelo governo inglês[30]. Percebe-se certa incipiente aliança diplomática entre nativos e potências europeias[31].
Após a proclamação da independência em 1776, conhece-se um período que vai até cerca de 1789, chamado de confederativo, menos por suposta aliança entre europeus e índios, e mais pelo modelo político adotado pela nova nação, antes do estabelecimento do pacto federativo, que dura até os dias de hoje. Assinaram-se vários tratados, a exemplo dos pactos de Fort Pitt/ Nação Delaware (1778) e de Hopewell/ Nação Cherokee (1785). A partir de 1789 e até 1835 desenvolve-se era de comércio e relacionamento (trade and intercourse), que seguiu a adoção do texto constitucional norte-americano. O artigo I, seção 8, cláusula 3, outorga ao Congresso poder para regular comércio com as nações estrangeiras, entre os vários estados e com as tribos indígenas[32].