Por Josias Fernandes Alves
“Como podia a Rede Globo divulgar que a Polícia Federal tinha desbaratado uma ‘organização criminosa’, quando estava em face de uma operação que deveria ser executada em ‘segredo de justiça (…)”. O questionamento é do ex-desembargador José Eduardo Carreira Alvim, autor do livro Operação Hurricane: um juiz no olho do furacão (Geração Editorial, 378 páginas, 39,90 reais), lançado no mês passado.
O livro é um rosário de mágoas e graves acusações do juiz contra ministros do Supremo Tribunal Federal, membros do Ministério Público Federal e delegados da Polícia Federal, responsáveis pelas investigações, que ele intitula de “trama armada” para afastá-lo da carreira. A operação policial, deflagrada em abril de 2007, foi anunciada como um “marco” no combate à corrupção no País.
Em vários trechos da obra, o juiz critica a exploração do episódio pelos veículos de comunicação. “Fui preso desnecessariamente e submetido a um escárnio igualmente desnecessário da mídia, que me julgou e me condenou por antecipação, antes mesmo de apurados os fatos, sendo libertado nove dias depois de encarcerado, sem que nenhuma nova diligência se mostrasse necessária, mas depois de ter sido um ator involuntário dos shows da Rede Globo e da mídia nacional por semanas inteiras.” (p. 116)
Carreira Alvim foi preso em abril de 2007, com mais duas dezenas de pessoas, entre empresários, advogados, policiais e outro desembargador do Tribunal Regional Federal, sediado no Rio de Janeiro. O grupo foi acusado de fazer parte de um esquema de jogo ilegal e de cometer crimes contra a administração pública, incluindo a venda de decisões judiciais para manter o funcionamento de casas de jogo de bingo. Ele foi aposentado compulsoriamente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e há quatro anos aguarda julgamento do processo no Supremo Tribunal Federal.
Ainda que se compreenda sua indignação como investigado, que se sentiu injustiçado, sem entrar no mérito das acusações, algumas das críticas do juiz merecem atenção. O vazamento de dados sobre investigações sigilosas e o sensacionalismo das prisões foi uma constante nos últimos anos, em dezenas de grandes operações desencadeadas pela PF, divulgadas à exaustão pelo noticiário.
Os holofotes da mídia sobre as ações da PF, além de render resultados positivos e fortalecer a imagem institucional do órgão, também passaram a representar risco de danos, morais e materiais, à imagem de investigados, expostos pela polícia à mídia, e posteriormente inocentados pela Justiça.
Foi o que ocorreu com o empresário Roberto Carlos Castagnaro, preso e acusado de lavagem de dinheiro e associação para o tráfico de drogas em 2006, durante a “Operação Zapata”. Em abril, a Justiça Federal de Santa Catarina condenou a União a pagar R$ 50 mil, a título de indenização por danos morais.
Na sentença, o juiz federal Nelson Gustavo Mesquita Ribeiro Alves observou que “apesar de toda a exposição midiática negativa sofrida pelo autor, o Ministério Público Federal não encontrou elementos probatórios da prática do crime de lavagem de dinheiro e pugnou pela sua absolvição”. Ele também destacou que a imprensa teve acesso às investigações que culminaram com a prisão do empresário, “sendo permitido, inclusive, o levantamento fotográfico dos bens apreendidos”. O magistrado também lembrou que a maioria das reportagens que divulgaram informações sobre o inquérito, que deveria ser sigiloso, citou como fonte a própria Polícia Federal.
Há casos ainda mais graves, de pessoas sem qualquer envolvimento com fatos ilícitos, que chegaram a ser confundidas com outros alvos da polícia. Como do empresário Hugo Sterman Filho, preso indevidamente pela Polícia Federal na Operação Anaconda, deflagrada em 2003. Ele foi confundido com outra pessoa, com prenome igual, e acabou ficando preso por 11 dias. Em 2007, a Justiça Federal de São Paulo condenou a União ao pagamento no valor de R$ 500 mil, de indenização por danos morais ao empresário.
Outro caso de prisão indevida foi o do engenheiro Antônio Carlos Hummel, diretor de Florestas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), preso em 2005, durante a Operação Curupira, com outras 110 pessoas acusadas de integrar um esquema de desmatamento e extração ilegal de madeira. Sua prisão foi pedida pelo Ministério Público Federal, que não apresentou provas contra ele. Embora a própria PF também não tivesse encontrado provas que o incriminassem, o servidor foi algemado e levado de Brasília para Cuiabá (MT), onde ficou preso por cinco dias.
Embora os dirigentes da PF informem que não há dados precisos sobre o número de ações judiciais, sabe-se que há dezenas de pedidos de condenação da União por danos morais, em virtude de erros e excessos cometidos pelos coordenadores das operações, quase sempre no afã de atrair a atenção da mídia.
O delegado Paulo Lacerda, nomeado para o cargo de diretor-geral da PF, em 2003, no primeiro mandato do presidente Lula, em entrevista concedida em 2006, explicou que a decisão de mudar a relação com a mídia e promover o que chamou de “superexposição institucional” foi motivada pela imagem que os membros do novo governo petista tinham do órgão: de uma “caixa preta”. Já em seu discurso de posse, o delegado Lacerda anunciou como prioridade o combate à corrupção e sua intenção de apurar com rigor eventuais desvios dos servidores da própria corporação.
Esta nova metodologia da Polícia Federal, de fazer investigações mais completas e pedir a prisão de um grande número de pessoas, com a realização de sucessivas operações (geralmente batizadas com nomes de forte apelo midiático) foi inaugurada com a “Operação Sucuri”, deflagrada em Foz do Iguaçu, em março de 2003. Apesar de o inquérito tramitar em segredo de justiça, a ação foi feita com estardalhaço, culminando na prisão de 44 pessoas, entre elas 22 policiais federais, acusados de facilitar o contrabando na fronteira.
À época, um delegado da própria PF, em artigo publicado no site da Federação Nacional dos Policiais Federais, afirmou que a Operação Sucuri teria atendido o objetivo de promoção pessoal do então chefe da Delegacia da PF em Foz do Iguaçu, o delegado Joaquim Mesquita, que seria conhecido pelo fato de ser “dado a produzir factóides para garantir espaço assíduo nos noticiários”. Hoje ele é superintendente regional da PF em Goiás.
Quanto aos policiais investigados, muitos ficaram afastados do serviço durante sete anos, por força de processos disciplinares. A maioria deles foi absolvida no âmbito administrativo, por falta de provas, e voltou ao serviço, no ano passado. Alguns estão aguardando o desfecho dos processos criminais para ingressar com ação judicial contra a União, por danos morais.
Em outubro de 2003, foi a vez da “Operação Anaconda”, uma investigação que colheu indícios, através de escutas telefônicas, de negociações entre criminosos e membros do Judiciário. A Anaconda foi a que causou a maior repercussão e talvez as maiores polêmicas, tanto pela forma e conteúdo das informações divulgadas oficialmente, quanto aquelas “vazadas” à imprensa. Os “vazamentos” passaram a ser rotina na maioria das operações ditas sigilosas.
O advogado Romualdo Galvão Dias, então corregedor de ética e disciplina da OAB/SP, em artigo intitulado “Anaconda ou cobra cega” fez contundentes críticas à operação: “Aquilo que foi vendido à opinião pública brasileira como uma ‘mega-operação’ da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, ‘uma investigação como jamais vista na história, tem se revelado apenas um amontoado de trapalhadas, prisões injustas, acusações sem provas e linchamento moral de inocentes”.
Dezenas de operações, em todo o país, tornaram-se sucesso de público e de crítica e ganharam espaço privilegiado nos telejornais em horário nobre. A opinião pública vibrou com a divulgação de diálogos comprometedores, captados em interceptações telefônicas, ou com o desfile de pessoas algemadas, transportadas nas viaturas ostensivas da PF, principalmente quando os presos eram políticos, altos funcionários públicos e empresários, cujo perfil peculiar da “clientela” habitual das notícias policiais funcionava como atrativo adicional para a mídia e sua audiência.
Com freqüência, os policiais federais envolvidos nas operações – cercadas de absoluto sigilo – foram surpreendidos com a presença de jornalistas nos locais de cumprimento de mandados de busca e prisão, cujos endereços só foram conhecidos pelos policiais horas antes da deflagração das operações. Foi o que ocorreu na Operação Satiagraha.
Deflagrada em julho de 2008, a Satiagraha investigou as atividades de uma suposta quadrilha comandada pelo banqueiro Daniel Dantas, dono do grupo Opportunity, cuja finalidade seria desviar verbas públicas.
A operação pode ser apontada como o ápice da espetacularização das operações da PF. Seu coordenador, delegado Protógenes Queiroz, ficou famoso pelos métodos pouco ortodoxos empregados na investigação e pelo estilo egocêntrico, que o tornou vedete da Satiagraha. O delegado soube aproveitar os holofotes da mídia e elegeu-se deputado federal de São Paulo, ainda que com o imprescindível empurrão dos votos do palhaço Tiririca.
As imagens exibidas pela TV da prisão do falecido Celso Pitta, ex-prefeito de São Paulo, ainda de pijama, na porta de casa, tornaram-se emblemáticas da exposição abusiva das imagens de investigados, cuja prisão foi feita pessoalmente pelo delegado Protógenes.
O delegado acabou sendo condenado pela Justiça Federal, juntamente com um escrivão de sua equipe, por violação de sigilo funcional, pelo vazamento de informações sobre as investigações, e também por fraude processual. Parece anedota, mas após a instauração do inquérito contra Protógenes, para apurar o vazamento de dados sigilosos da Operação Satiagraha, seus advogados pediram a abertura de outro inquérito, para apurar “o vazamento do vazamento”.
Na sentença, proferida em novembro do ano passado, o juiz Ali Mazloum concluiu que informações sigilosas repassadas a jornalistas durante e na véspera da deflagração da operação configuram nos crimes e condenou Protógenes e o escrivão nas penas de prisão, perda dos cargos públicos e multas de R$ 100 mil e R$ 50 mil, a título de “reparação dos danos morais causados à coletividade”. O recurso apresentado pelo delegado/deputado atualmente tramita no STF.
A edição da polêmica Súmula Vinculante nº 11, aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto de 2008, que restringiu o uso de algemas a casos excepcionais, foi uma clara resposta do presidente daquela Corte, Gilmar Mendes, crítico contumaz do “modelo midiático da PF estabelecido a partir da gestão de Paulo Lacerda”.
Oito anos após a primeira operação policial da nova fase de “superexposição institucional”, implantada pelo delegado Paulo Lacerda, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em junho, anulou as provas obtidas pela Operação Satiagraha, que resultou na condenação por corrupção, a 10 anos de prisão, do banqueiro Daniel Dantas, dono do grupo Opportunity. A 5.ª Turma do STJ concluiu que a participação de servidores da Agência Nacional de Inteligência (Abin) nas investigações foi ilegal.
Por ironia, o acesso informal de integrantes da agência a dados sigilosos da Satiagraha foi autorizado pelo ex-diretor da PF, o mesmo delegado Paulo Lacerda, que ocupava o cargo de diretor da Abin. O acesso às informações sob sigilo, por parte de 76 agentes da Abin foi feita à revelia da Justiça e sem o conhecimento do então diretor-geral da PF, Luiz Fernando Correa, que inclusive sucedeu Paulo Lacerda no comando da instituição. Após o episódio, Lacerda deixou a direção da Abin, mas acabou premiado com o cargo de adido policial, em Portugal.
De acordo com relatório oficial da própria PF, encaminhado em 2008 ao Congresso, a Operação Satiagraha, custou R$ 466 mil aos cofres públicos. O documento confidencial (mas também vazado à imprensa), produzido pela Diretoria de Combate ao Crime Organizado, revelou que até então nenhuma outra missão da PF havia tido custo tão alto e mobilizado tantos agentes e delegados na fase de apuração e de execução, quando são cumpridos os mandados judiciais de buscas e prisões.
Leis não faltam para disciplinar a matéria. A Constituição Federal prevê garantias para preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral por sua violação, assim como reconhece a presunção de inocência das pessoas. O próprio inquérito policial, os termos do art. 20 do Código de Processo Penal, tem caráter sigiloso, cabendo à autoridade assegurar “o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. A restrição da divulgação dos fatos à imprensa visa não apenas a melhor elucidação do caso, mas também preservar os direitos relativos à personalidade dos envolvidos. A exposição de presos ao público, contra a sua vontade, também é expressamente vedada em outros dispositivos legais.
As diretrizes internas da política de comunicação social da PF, cuja atualização coincidiu com o período que as ações do órgão passaram a ter maior projeção na mídia, também foram solenemente ignoradas na maior parte das operações. A Instrução Normativa nº 006/DG/DPF, de 26/8/04, detalha várias condutas, que deveriam ser adotadas na divulgação das operações, que se fossem observadas teriam evitado a maioria das ações judiciais. Dentre outras, recomenda se evitar a apresentação detalhada de documentos arrecadados ou apreendidos que possam identificar pessoas envolvidas ou investigadas, bem como a exposição de presos, salvo quando estes expressamente autorizarem. Também proíbe a divulgação dos meios empregados na investigação policial.
A IN também prevê que a divulgação de informações, sempre que possível, deveria ser feita pelo representante da comunicação social designado pelo dirigente da unidade local. Contudo, na maioria das unidades da PF, os servidores indicados não têm qualquer formação ou treinamento específico na área ou acumulam as atividades do setor com outras funções. Na prática, a assessoria de comunicação foi feita para não funcionar. O desinteresse dos gestores por área tão importante para a imagem da instituição tem suas razões.
Permite que autoridades policiais usem e abusem de seus nomes e imagens para promoção pessoal, numa clara afronta às regras que disciplinam as ações de comunicação do Poder Executivo Federal, prevista em decreto. O uso abusivo dos veículos de comunicação para “marketing” pessoal tem sido a regra de conduta (com raras exceções) de dirigentes do órgão e delegados que estão à frente dessa “grandes operações” ou de investigações de maior interesse dos telejornais.
Quanto às condenações sofridas pela União por danos morais ou prejuízos nos gastos milionários de operações anuladas, não se sabe se os administradores da PF tenham tomado alguma providência para responsabilizar os servidores que causaram prejuízos ao erário ou que causaram danos a terceiros, através do direito de regresso contra os responsáveis, nos casos de dolo ou culpa, como prevê o art. 37 da Constituição Federal.
Os delegados das corregedorias da PF costumam ser mais rigorosos quando se trata de instaurar procedimentos disciplinares para responsabilizar, punir e promover a cobrança, por exemplo, de prejuízos com pequenos reparos de viaturas oficiais, decorrentes de acidente de trânsito, em serviço, principalmente quando agentes e escrivães são os motoristas.
Em relação aos prejuízos mais vultosos, causados por abusos ou vedetismo de alguns, para responder à pergunta do título, a fatura fica por conta dos cofres da viúva, para usar a expressão do jornalista Elio Gaspari, numa referência ao dinheiro público.
[Artigo publicado na quinta-feira (21/7) no site da Federação Nacional das Polícias Federais]