Mala branca é antiética e deve ser criminalizada

Por Guilherme Pessoa Franco de Camargo

A “mala branca” é traduzida pelo incentivo financeiro oferecido por terceiros interessados na obtenção de resultados favoráveis de algum clube sem perspectivas dentro do campeonato, representando um antigo tabu dentro do futebol brasileiro. O incentivo financeiro pode estar ligado tanto à obtenção de resultados que impeçam o rebaixamento do clube ou a consagração do título nacional.

Tal prática é conhecida como “doping financeiro” e remonta aos primórdios do futebol. O próprio Rei Pelé tentou estabelecer uma distinção entre mala branca e preta: o que o pessoal confunde é de você ter um prêmio para ganhar uma partida, isso sim. É como você dar um incentivo para o aluno tirar uma nota boa. É diferente de você oferecer dinheiro para entregar o jogo, isso é um absurdo.1

O esquema funciona da seguinte forma, um intermediário, mediante uma rápida negociação, oferece altas quantias em dinheiro que serão depositadas em contas de terceiros, que serão entregues se após a atuação dirigida do atleta na partida render o resultado pretendido.

No caso da “mala branca”, existe o aspecto nuclear do incentivo ao resultado positivo, seja pela vitória ou empate, mas nunca para a hipótese da “entrega” de resultados pela derrota.

O desenvolvimento do profissionalismo das equipes desportivas deveria impedir ou ao menos diminuir os incidentes ligados à “mala branca.”

O advento do Estatuto do Torcedor pode ter elucidado a questão ética sobre a prática da “mala branca”, mas pouco avançou sobre a norma penal incriminadora da conduta delitiva e o objeto a ser tutelado.

A Infração disciplinar prevista na Lei 12.299/10, que modificou a Lei 10.671/03 (Estatuto do Torcedor) trouxe alguns dispositivos penais cuja transcrição segue abaixo:

“Art. 41-C. Solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva:

Pena – reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa.”

“Art. 41-D. Dar ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva:.

Pena – reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa.”

“Art. 41-E. Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva:

Pena – reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa.”

Desta forma, resta patente que o objeto jurídico tutelado é a prática desportiva com ética. Neste ponto, cumpre ressaltar que o artigo 43 do mesmo codex limita, de forma reprovável, a aplicação destas normas penais apenas para o desporto profissional.

Os escândalos que movimentaram o Campeonato Brasileiro de 2005, envolvendo as alterações dos resultados de inúmeras partidas pelos árbitros Edílson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon, certamente tiveram influência na extensão do tipo penal para esta categoria profissional.

Os tipos penais tentam proteger, finalisticamente, os torcedores que assistem a partidas, na esperança de verem preservada a idoneidade da rivalidade desportiva e a vitória de sua equipe em detrimento a derrota da outra.

Os dispositivos penais ligados à Resolução 29/2009 (Código Brasileiro de Justiça Desportiva), em seu Capítulo V, escora a tipificação e antijuridicidade das condutas decorrentes da “mala branca” e da “mala preta”, conforme transcrições abaixo:

“Art. 241. Dar ou prometer qualquer vantagem a árbitro ou auxiliar de arbitragem para que influa no resultado da partida, prova ou equivalente.

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e eliminação).”

“Parágrafo único. Na mesma pena incorrerá:

I – o intermediário;

II – o árbitro e o auxiliar de arbitragem que aceitarem a vantagem.”

“Art. 242. Dar ou prometer vantagem indevida a membro de entidade desportiva, dirigente, técnico, atleta ou qualquer pessoa natural mencionada no art. 1º, § 1º, VI, para que, de qualquer modo, influencie o resultado de partida, prova ou equivalente.

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e eliminação.”

Parágrafo único. Na mesma pena incorrerá o intermediário.

“Art. 243. Atuar, deliberadamente, de modo prejudicial à equipe que defende.

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias..

“§ 1º Se a infração for cometida mediante pagamento ou promessa de qualquer vantagem, a pena será de suspensão de trezentos e sessenta a setecentos e vinte dias e eliminação no caso de reincidência, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).”

§ 2º O autor da promessa ou da vantagem será punido com pena de eliminação, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

“Art. 243-A. Atuar, de forma contrária à ética desportiva, com o fim de influenciar o resultado de partida, prova ou equivalente.

“PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de seis a doze partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou pelo prazo de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código; no caso de reincidência, a pena será de eliminação.

“Parágrafo único. Se do procedimento atingir-se o resultado pretendido, o órgão judicante poderá anular a partida, prova ou equivalente, e as penas serão de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de doze a vinte e quatro partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou pelo prazo de trezentos e sessenta a setecentos e vinte dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código; no caso de reincidência, a pena será de eliminação.”

Neste ponto é possível auferir que o CBJD possui redação semelhante ao Estatuto do Torcedor, especialmente sobre as condutas ativas de dar ou prometer vantagem indevida, mas o primeiro nada versa sobre a atitude omissiva da recepção o solicitar ou aceitar o incentivo financeiro ou mesmo a questão da fraude.

Outrossim, uma leitura açodada dos artigos destes códigos pode levar ao entendimento equivocado sobre a aplicabilidade da dosimetria da pena. Uma característica intrigante dos legisladores que atuam na seara desportiva reside na construção de códigos com reproduções idênticas sobre a quantidade da pena a ser aplicada. Mas ocorre que a alta margem de liberalidade para a fixação da pena trazida pela reforma do CBJD não foi repetida na criação do Estatuto do Torcedor, que deveria, ao menos, ter majorado a pena no caso da ocorrência da fraude tipificada no artigo 41-E e diminuído a pena do artigo 41-C, em razão da precária situação econômica e fática costumeiramente enfrentada pelos atletas que praticam esse tipo de crime.

A conceituação do artigo 243-A, parece que é, dentre todas as redações apresentadas, a que melhor se aproximaria do crime praticado pelo incentivo financeiro da “mala branca”, mas a reprovável conceituação abrangente, acaba por mitigar o instituto que pretendia coibir, justamente pela sua generalidade. Não se pode proibir um atleta de praticar sua atividade, apenas visando às vantagens econômicas decorrentes dela. E o próprio desenvolvimento e profissionalização do esporte levam os atletas às vantagens econômicas com os valores éticos da prática desportiva.

O subjetivismo do artigo 243-A, tolheria uma das próprias razões da existência do capitalismo: a obtenção de lucro. Seria o fim dos incentivos com os “bichos” ou premiações de artilheiros ou de melhor jogador.

De outro giro, a péssima imagem trazida pelo recebimento da “mala branca”, bem como a forma do pagamento, traz outro empecilho aos seus participantes, vez que existe o problema fiscal, pela ausência de declaração destes valores ao fisco. A Receita Federal ora não é cientificada da existência destas negociações ora se depara com valores declarados por serviços não prestados, justamente para a “lavagem do dinheiro”.

O próprio Ministério Público já recebeu denúncias sobre o envolvimento de cartolas e clubes que emitiam deliberadamente notas fiscais com valores astronômicos sem justificarem a origem os serviços prestados.

Desta forma, além da falta ética no recebimento da “mala branca”, remanesce, na maioria dos casos, o crime de sonegação fiscal e evasão de divisas, previstos na Lei n.° 8.137/90:

“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

…(omissis)

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”

“Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:

I – fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;”

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”

Para contribuir como amicus curiae sobre o tema proposto, aponto como impeditivo ao recebimento da chamada “mala branca”, reside justamente na finalidade do recebimento, vez que enquanto no pagamento do “bicho” ou na “premiação do melhor atleta” existe o incentivo claro, constante, passível de disputa e recebimento por qualquer jogador e com vistas aos benefícios trazidos para o clube e sua torcida, sendo que no caso da “mala branca”, os recebimentos são obscuros, antidesportivos e esporádicos, destinados a certos e poucos jogadores, mas, principalmente, destina-se a beneficiar outro clube e outra gama de torcedores. Por isso, não é possível comparar tais premiações, porquanto dialmentralmente equidistantes.

Escora tal assertiva, o recente caso envolvendo o time do Guarni, porque os torcedores presenciaram seus jogadores serem assediados por notícias de recebimento de “malas brancas” para que evitassem a vitória do Fluminense no campeonato brasileiro. Uma das mais emblemáticas frases do protesto da torcida contra o recebimento da “mala branca” pelos jogadores do bugre dizia em tom de ameaça: “vocês não jogaram nada até agora, não será na última rodada que isto vai acontecer”.

Outra constatação evidente tanto no recebimento da “mala branca” está ligada ao fato que, invariavelmente, são apenas os grandes clubes que pagam pelos “incentivos”, por possuírem recursos financeiros para tanto e possuírem interesse na vitória alheia porquanto encabeçarem as lideranças dos campeonatos que participam, enquanto acabam por explorar as precárias situações dos clubes pequenos que possuem dívidas tributárias, trabalhistas e previdenciárias com parceiros e jogadores, fazendo do “incentivo”, moeda de troca e extorsão entre clubes e jogadores.

Assim, quando um atleta profissional perguntar “por que não receber a mala branca?”, é possível emitir as seguintes respostas: (1) é antiético e imoral; (2) está invariavelmente ligado a crimes tributários; (3) prejudica patrocinadores; (4) destrói a idoneidade e credibilidade das competições; (5) explora jogadores e clubes de menor expressão ou em estado de necessidade; (6) serve de barganha para jogadores ou clubes desonestos; (7) afronta diretamente a moral e destrói os sonhos torcedores do clube “incentivado”; (8) Demagogia e historicidade não são justificativas para a continuidade delitiva; (9) o pagamento de bicho ou prêmio de melhor jogador distingue-se da “mala branca”, pela sua finalidade.

Como conclusão, e sendo difícil o enquadramento da “mala branca” pelos artigos previstos no CBJD e Estatuto do Torcedor, resta evidente a necessidade da criação de artigos com enquadramento específico na seara desportiva e criminal do “incentivo” financeiro ocasionado pela “mala branca”, tornando imperiosa reforma dos textos legais, notadamente aqueles que visam tutelar os interesses dos torcedores.

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Fontes:

1 AIDAR, Carlos Miguel, MIRANDA, Alexandre Carvalho “Máfia do Apito”. www.ibdd.com.br 2010

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