Por Alfeu Alves Pinto e Aline Hungaro Cunha
A questão relativa ao tratamento que deve ser conferido aos ACCs (Adiantamentos sobre Contratos de Câmbio) no âmbito da recuperação judicial de empresas tem recebido bastante destaque nos tribunais brasileiros, porém, não menos importantes, os ACEs (Adiantamentos sobre Cambiais Entregues ou Adiantamentos de Contrato de Exportação) têm sido pouco explorados na doutrina e jurisprudência.
Tanto o ACC quanto o ACE são operações em que há a celebração de contrato de câmbio e o adiantamento, parcial ou total, dos reais correspondentes ao valor da moeda estrangeira adquirida pela instituição financeira autorizada a operar com câmbio. A diferença entre as duas subespécies de adiantamento em contrato de câmbio é que, no caso do ACC, o adiantamento ocorre antes do embarque da mercadoria a ser exportada e visa exatamente a financiar a fase de produção da mercadoria. Já no ACE, o adiantamento somente ocorre após a entrega pelo exportador dos documentos que comprovam o embarque da mercadoria, visando, assim, a financiar a fase de comercialização da mercadoria).
Com o objetivo de estimular exportações, tais espécies de contrato receberam tratamento legislativo especial, inclusive, no âmbito do regime falimentar e do regime de recuperação judicial. Assim, a matéria é regulada no artigo 75, parágrafos 2º e 3º, da Lei 4.728/1965 e artigo 86, inciso II, da Lei 11.101/2005, os quais tratam do assunto de forma abrangente, conferindo o status de extraconcursal a todos os créditos oriundos de contratos de câmbio para exportação em que tenha havido o adiantamento do valor negociado — gênero que inclui tanto ACCs quanto ACEs —, não fazendo qualquer tipo de restrição quanto ao momento do adiantamento. E onde a lei não restringe, não cabe ao seu intérprete fazê-lo.
A jurisprudência de nossos tribunais tem sido unânime no reconhecimento do caráter extraconcursal do ACC, reconhecendo que ele não se sujeita ao regime da recuperação judicial. Nesse sentido, é possível citar julgados de diversos tribunais: TJ-PR, Agravo de Instrumento 0602335-8, julgado em 17 de novembro de 2010; TJ-RS, Apelação 70027484344, julgada em 28 de julho de 2010; TJ-RJ, Agravo de Instrumento 0015700-02.2009.8.19.0000, julgado em 8 de julho de 2009; TJ-ES, Agravo Interno em Agravo de Instrumento 030090001337, julgado em 11 de maio de 2010; TJ-MT, Agravo de Instrumento 73882/2010, julgado em 23 de novembro de 2010.
Por outro lado, no que se refere aos ACEs, não é comum encontrar menção específica a eles na jurisprudência pátria, ainda mais no que se refere ao tratamento jurídico a eles conferido no âmbito da recuperação judicial.
De fato, tendo em vista que a legislação considera extraconcursal todo crédito oriundo de contratos de câmbio para exportação em que tenha havido adiantamento, sem especificar o momento em que tal adiantamento deveria ser feito, é possível concluir que tanto os créditos decorrentes de ACCs, nos quais o adiantamento ocorre antes do embarque da mercadoria, quanto os créditos decorrentes de ACEs, nos quais o adiantamento é feito somente após o embarque, não se sujeitam ao regime da recuperação judicial.
Verifica-se que ao menos o tribunal de Justiça de São Paulo já tratou a questão ora em comento, no julgamento dos Agravos de Instrumento 994.09.293294-7 e 994.09.320784-0, ambos de relatoria do desembargador Elliot Akel, da Câmara Reservada à Falência e Recuperação de Empresas, julgados em 6 de abril de 2010, por votação unânime, com a seguinte ementa[1]:
RECUPERAÇÃO JUDICIAL – IMPUGNAÇÃO – CRÉDITOS DECORRENTES DE ADIANTAMENTO DE CONTRATO DE CÂMBIO – EXCLUSÃO DETERMINADA – CONFIGURAÇÃO DE NEGÓCIOS PELOS QUAIS É ADIANTADA CERTA IMPORTÂNCIA AO DEVEDOR POR CONTA DE EXPORTAÇÕES FUTURAS OU JÁ REALIZADAS, PORÉM COM PAGAMENTO DIFERIDO – IRRELEVÂNCIA DA AUSÊNCIA DE PROTESTO – APLICABILIDADE DO § 4º DO ART. 49 DA LEI Nº 11.101/2005 – RECURSO IMPROVIDO.
Ainda, no corpo de seu voto, o relator deixa claro o entendimento de que a diferença entre ACC e ACE, notadamente no que se refere ao momento do adiantamento, não tem o condão de conferir tratamento distinto a eles no âmbito da recuperação judicial. Desse modo, assevera o relator que: “a distinção, focada apenas nas diferentes etapas do negócio em questão, não tem, a meu ver, o relevo imaginado pela recorrente, a ponto de justificar a exclusão desses créditos da hipótese do parágrafo 4º do artigo 49 da Lei 11.101/2005. Se toda a documentação fosse entregue ao credor, de sorte a lhe garantir a carta de crédito fornecida pela instituição financeira vinculada ao comprador estrangeiro, a obrigação resultante do adiantamento estaria em tese cumprida pelo exportador, não havendo sequer de se cogitar da existência do débito. Na verdade, o conceito de ‘adiantamento de cambiais entregues’ (ACE) parece ter sido distorcido. Diversamente de ACC, trata-se de crédito disponibilizado somente depois do embarque da mercadoria e mediante a entrega dos documentos, porém, de qualquer modo, ambos envolvem a antecipação de recursos ao exportador em função de contrato de câmbio e visam um incentivo financeiro à exportação”.
Sendo assim, é possível concluir que os recursos adiantados por força de contrato de câmbio para exportação correspondem a créditos extraconcursais, de modo que os ACEs, do mesmo modo que os ACCs, não estão sujeitos ao regime da recuperação judicial.
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[1] No mesmo sentido, v. Agravo de Instrumento 669.567.4/0-00, Rel. Des. Elliot Akel, Câmara Reservada à Falência e Recuperação de Empresas do TJ/SP, j. 15/12/2009.
Alfeu Alves Pinto é sócio responsável pelo contencioso cível do escritório Boccuzzi Advogados Associados.
Aline Hungaro Cunha é advogada associada do escritório Boccuzzi Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 22 de agosto de 2011