Por Heloisa Estellita e Yuri Corrêa da Luz
Há algum tempo temos notado precedentes judiciais nos tribunais superiores que manejam de forma equivocada o princípio da insignificância em matéria penal. Inicialmente, pareciam ser ocorrências isoladas, que certamente seriam corrigidas no futuro. Todavia, a exceção parece estar virando a regra, com os equívocos ganhando fôlego preocupante. Não apenas se percebe uma falta de uniformidade no tratamento dado ao tema[1], como também – e o que é pior – notam-se decisões que, ao partirem de concepções equivocadas sobre este princípio, colocam em risco importantes cânones que fundamentam nosso Direito Penal. A situação chegou a tal ponto que, diante de tanta “lambança” em relação ao princípio da insignificância, não é exagero se temer seu “enterro” prematuro.
Tomemos dois exemplos emblemáticos para ilustrar este fenômeno.
Em caso recentemente julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, o acusado tinha em depósito invólucros com substância entorpecente e, também, três cartuchos de arma de fogo, sem autorização legal. Condenado pelo tráfico e pela posse de munição, separadamente (obviamente), foi impetrado Habeas Corpus pleiteando, no que aqui interessa, a aplicação do princípio da insignificância para o crime de posse ilegal de munição. A pretensão foi indeferida sob a alegação de que tal munição conteria suficiente potencialidade lesiva contra a segurança e a incolumidade públicas, estaria em poder de réu foragido da Justiça, condenado por roubo e também processado por outros dois homicídios. Novo Habeas e nova recusa, agora sob o argumento de que o delito teria sido praticado em concurso com o crime de tráfico de entorpecentes, o que evidenciaria a periculosidade social da ação do paciente e seu desapego pelos valores tutelados pelo Direito.
Em outro caso, um menor, que furtara bem avaliado em oitenta reais, postulou a aplicação do princípio da insignificância. Assim como na primeira situação, a pretensão do réu foi negada, sob o argumento de que quem comete vários delitos ou os comete habitualmente não poderia requerer o reconhecimento de reduzido grau de reprovabilidade em sua conduta, ainda mais quando o menor se encontrava afastado das entidades escolares e fazendo uso de entorpecentes.
Estes dois casos, longe de serem hipóteses isoladas, podem ser vistos como amostra representativa de uma crescente lista de julgados que vem criando um dos principais obstáculos à correta aplicação do princípio da insignificância na atualidade.
Felizmente, hoje não mais nos deparamos com o problema de saber qual é a consequência jurídica derivada da aplicação do princípio da insignificância. Esta dúvida, durante muito tempo presente, não faz – ou não fazia mais – parte de nosso leque de preocupações. Afinal, tanto a doutrina mais abalizada[2] quanto o próprio Supremo Tribunal Federal, no paradigmático julgamento do HC 84.412, consolidaram o entendimento segundo o qual a aplicação do princípio da insignificância implica no reconhecimento da atipicidade da conduta do agente. Em termos gerais, esta concepção dominante, ao aportar juízos político-criminais aos institutos da teoria geral do delito[3], assume que a categoria tipicidade não apenas serve para subsumir um fato a um preceito legal, servindo, também, para realizar um verdadeiro juízo de valoração sobre a conduta praticada, relativo ao bem jurídico tutelado pelo tipo. É nisso que consiste o que se tem chamado de “tipicidade material”: trata-se do reconhecimento de uma dimensão do tipo objetivo dotada de conteúdo valorativo, a qual exige que toda avaliação acerca da tipicidade de uma conduta seja feita também sob a ótica da relevância da lesão praticada contra o bem jurídico protegido pela norma. Neste grande contexto é que surge o princípio da insignificância, precisamente para garantir que, nas situações em que a conduta objetivamente praticada pelo agente não afeta de forma relevante um bem jurídico, seja então afastada sua tipicidade penal material, com o que está de acordo a grande maioria dos teóricos e dos operadores do Direito brasileiros.
Se, portanto, não parece haver grande divergência em relação à consequência jurídico-penal derivada da aplicação deste princípio, qual é, então, o problema que os casos narrados revelam? Para responder a esta pergunta, devemos retomar alguns conceitos básicos.
Sabemos que todo crime pressupõe uma ação típica, antijurídica e culpável. Sabe-se também que, para ser típica, a ação deve preencher todos os elementos, objetivos e subjetivos, formais e materiais, do tipo e, para ser culpável, deve-se poder fazer por ela responsável o autor, no sentido de se poder lhe reprovar pessoalmente pela conduta típica e antijurídica praticada. Neste sentido, a culpabilidade consiste em “um juízo de reprovação sobre o sujeito (quem é reprovado)”, que tem por objeto a prática da conduta típica e antijurídica, e por fundamento a capacidade do sujeito concreto de saber o que faz, de poder saber que o que faz está proibido e de poder não praticar a conduta naquelas circunstâncias (normalidade das circunstâncias)[4]. Afirmada a culpabilidade, fundamento da pena, a sanção penal já pode, em regra, ser aplicada e será quantificada em conformidade, primeiramente, com as circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP.
Pois bem. Isto posto, se observarmos com atenção os dois casos acima narrados, percebe-se que, neles, acabou-se por confundir o juízo de tipicidade com juízo sobre a culpabilidade, e até mesmo com a medida da pena, que tem por pressuposto já a conduta que se possa dizer típica, antijurídica e culpável.
No primeiro caso, exceção feita ao argumento da potencialidade lesiva, que seria o único adequado ao afastamento da alegada atipicidade material, os fatos de o réu ser foragido da Justiça, ter condenação anterior por roubo, ser processado por outros homicídios ou mostrar descomprometimento com os valores tutelados pelo Direito são considerações estranhas ao juízo de tipicidade, não tendo impacto algum no juízo acerca de ser ou não objetivamente insignificante a lesão ao bem jurídico (no caso) do patrimônio. O mesmo vale para o segundo caso, já que a prática de vários delitos, o afastamento da escola e o uso de drogas nada dizem com a tipicidade material do furto. Tais considerações se ligam, pelo contrário, ao autor concreto que praticou o crime e pertencem, pois, ao juízo de culpabilidade e à medida da pena, quando muito (pensamos aqui, na consideração de processos em andamento para fins de “maus antecedentes” rejeitada por muitos magistrados face à garantia de presunção de inocência).
Ora, este processo de “pessoalização” do princípio da insignificância, que condiciona a aplicação deste instituto à verificação de uma série de circunstâncias subjetivas e pessoais do autor, não apenas se mostra inconsistente do ponto de vista sistemático, como também, e principalmente, gera graves consequências político-criminais para todos aqueles pleiteiam a guarida do instituto em sua defesa.
No plano sistemático, a inconsistência decorre da incompatibilidade de tal “pessoalização” com a concepção adotada pela doutrina majoritária, e acolhida pelo STF, em relação ao princípio da insignificância. Como apontado, este instituto é amplamente visto como circunstância que afasta a tipicidade da conduta. Um comportamento penalmente insignificante é, portanto, um comportamento atípico para todos os efeitos, sendo possível até mesmo que um promotor, ao reconhecer este fato, deixe de promover a denúncia sobre o caso. Se este é um ponto partilhado por todos, então, consequentemente, apenas elementos pertinentes à análise da tipicidade é que deveriam ser levados em conta para se dizer se estamos ou não diante de um comportamento penalmente insignificante.
Dito de forma mais concreta: para analisar se a um caso se aplica o referido princípio, devemos apenas e tão-somente analisar aquilo que é pertinente ao juízo de tipicidade, vale dizer: a possibilidade de subsunção do fato à norma (tipicidade formal), bem como a relevância do desvalor da ação e do desvalor do resultado presente na conduta (tipicidade material)[5]. Nestes termos, tudo aquilo que exceder este âmbito deve fazer parte de outra ordem de considerações, não mais sobre a insignificância da conduta, mas sim sobre as características pessoais de seu autor. E se não levamos em conta estes diferentes níveis sistemáticos, trazendo para o bojo da análise sobre a insignificância de uma conduta considerações sobre o passado de seu autor, sobre os processos que ele responde, sobre eventuais condenações por ele sofridas etc., acabam-se gerando graves incongruências, tomando-se este instituto como um juízo de tipicidade, sem que, contudo, ele seja condicionado exclusivamente às exigências próprias desta categoria.
Se este problema de coerência interna já é em si preocupante, mais graves ainda se mostram os problemas político-criminais derivados deste processo de “pessoalização” do princípio da insignificância. Isso porque, mais do que um simples problema teórico, motivado por preocupações puristas com uma correta aplicação dos conceitos da teoria do delito, o fenômeno expresso nos julgados acima referidos acaba implicando em uma sensível restrição do âmbito de aplicação deste princípio. Afinal, se do que se trata não é apenas de analisar se uma conduta atingiu ou não um bem-jurídico de modo relevante, mas sim e também de avaliar se seu agente já cometeu outros delitos, ou mesmo se responde a outros processos sem trânsito em julgado, então as condições jurídicas para que se reconheça a insignificância penal em um caso concreto aumentam drasticamente. Por meio desta transformação do “princípio da insignificância do ato” em uma espécie de “princípio da insignificância do próprio autor”, uma série de condutas objetivamente insignificantes (como o furto de um fósforo) passa a ser objeto da mais gravosa forma de intervenção estatal, como se a reincidência em um ato insignificante pudesse torná-lo instantaneamente algo relevante para o Direito Penal.
Neste contexto, um olhar crítico sobre muitos julgados recentes que tratam da aplicação do princípio da insignificância revela que muitos magistrados vêm confundindo a reprovabilidade pessoal do autor com insignificância do fato em si. E este equívoco, se levado às últimas consequências, não apenas acaba por afetar a própria ideia de um “Direito Penal do fato” (segundo o qual a gravidade de uma infração deve ser buscada na própria conduta, e não em seu agente ou em fatos pregressos), como também se mostra extremamente perigoso, posto que restringe excessivamente a incidência do instituto, submetendo-o à regulação penal autores de condutas que, consideradas em si mesmas, não mereceriam esta espécie gravíssima de tratamento.
Do exposto, percebe-se que o correto emprego dos instrumentais dogmáticos constitui um dos principais desafios que determinarão o futuro do princípio da insignificância no Brasil. Um adequado tratamento do tema passa, entre outras coisas, por deixar de dar importância àquilo que é efetivamente insignificante para o reconhecimento da insignificância, mantendo como condição de aplicação deste instituto apenas e tão-somente a verificação de elementos próprios à relevância típica da conduta em si considerada, e afastando considerações sobre os antecedentes do agente, seu passado, sua periculosidade, entre outras circunstâncias pessoais pertencentes exclusivamente ao juízo de culpabilidade penal. Se a concepção dominante toma a insignificância como um caso de “atipicidade material”, um tratamento dogmático consistente com este entendimento mostra-se absolutamente necessário para se alcançar racionalidade, segurança jurídica e, acima de tudo, realização da justiça na seara penal.