Por Luís Raul Andrade
Em 4 de março 2011 foi revelado vídeo gravado em 2006, no qual aparecem a deputada Jaqueline Roriz e seu marido recebendo dinheiro de Durval Barbosa. Jaqueline confirmara tratar-se de “caixa dois”.
Na Câmara dos Deputados, discute-se se ela pode ser julgada por quebra de decoro parlamentar. A Constituição enuncia que “perderá o mandato o Deputado ou Senador: II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar”.
A defesa da deputada alega tese conhecida e aplicada com afinco pelas casas de representantes, de que fatos anteriores ao mandato não podem ser objeto de punição ético-disciplinar.
A fundamentar a conclusão estaria a interpretação de que o texto constitucional aponta para fatos ocorridos durante o exercício do mandato, visto que só pode perder o mandato quem tivesse um a perder. Na esteira dessa ideia, se o fato tornado público não é contemporâneo ao exercício da representação popular, punição por isso não haveria de ocorrer, uma vez que não teria como impor regra de decoro parlamentar a quem não é ou era parlamentar.
O deputado Reguffe pode ter começado a desenrolar um novelo sem fim. Ele tenta emendar, no curso dos acontecimentos, o Código de Ética da Câmara dos Deputados, para acrescentar ao texto regimental hipótese expressa conferindo ao Conselho de Ética a atribuição de julgar casos de quebra de decoro que tenham contribuído para a conquista do mandato.
Essa alteração, defendida também como tese jurídica pelo deputado, tende a romper a funcionalidade do entendimento atual, que certamente contribui para perpetuar certa calmaria entre os pendurados.
Quem explica, e ameaça, é o outrora porta-voz de Joaquim Roriz, Paulo Fona: “O deputado do PDT deve estar querendo atingir alguns de seus companheiros de partido e os do mensalão do PT”.
A sugestão de Reguffe abriria possibilidades interpretativas para a regressão indefinida a fatos passados, afetando a relativa estabilidade de deputados enrolados com a ética pública.
O deputado Roberto Policarpo defende a alteração regimental argumentando que não se poderia “anistiar” o parlamentar por quebra de decoro simplesmente porque fora eleito após o cometimento de falta ética.
O relator do caso no Conselho de Ética, deputado Carlos Sampaio, não precisou emendar o regimento para defender a cassação de Jaqueline Roriz em seu relatório, já aprovado pelos membros da Comissão, afirmando: “Só posso aferir a potencialidade lesiva [ao decoro parlamentar] no momento em que o fato veio à luz. Praticado em 2006, ele passou oculto a todos.”
Esta parece ser a compreensão dos fatos que mais se aproxima da interpretação constitucionalmente mais adequada.
Para a doutrina tradicional, a punição por quebra de decoro é entendida como um instrumento de preservação da imagem da casa parlamentar. Seria uma questão eminentemente interna corporis da casa legislativa, um problema político a ser resolvido pelas próprias casas, a bem delas mesmas. Isso não está errado.
Uma compreensão mais ampla, no entanto, deve ser sugerida após 23 anos de aprendizado com as liberdades democráticas. As imagens das casas parlamentares em todos os níveis da federação não são questões afetas apenas ao resgate ou à manutenção da dignidade moral de seus membros, mas problema social grave, com implicações diretas para a cidadania em geral e para os direitos individuais.
Isso porque a questão, que é renitente, diria crônica, toma proporções que remetem à preocupação de se ter de preservar o próprio regime democrático. Afinal, a honorabilidade de nossos representantes está ligada diretamente à qualidade da nossa democracia.
Reduzir os fatos a uma simples questão cronológica, valendo-se de leitura simplista e formalista dos textos constitucional e regimental, é notadamente incompatível com finalidade punitiva do instrumento constitucional da cassação do mandato por quebra de decoro.
Alertava Francesco Ferrara, já na Itália da década de 1920, que “o mecanismo da fraude [hermenêutica] consiste na observância formal do ditame da lei, e na violação substancial do seu espírito: tanturn sententiallz offendit et verba reservat. O fraudante, pela combinação de meios indirectos, procura atingir o mesmo resultado ou pelo menos um resultado equivalente ao proibido; todavia, como a lei deve entender-se não segundo o seu teor literal, mas no seu conteúdo espiritual, porque a disposição quer realizar um fim e não a forma em que ele pode manifestar-se, já se vê que, racionalmente interpretada, a proibição deve negar eficácia também àqueles outros meios que em outra forma tendem a conseguir aquele efeito.” (Interpretação e aplicação das leis. Traduzido por Manuel A. D. de Andrade. Coimbra, Editora Armênio, Amado, Editor Sucessor, 1963, p. 151).
A cassação do mandato por quebra de decoro parlamentar é mecanismo de alta eficácia, deixado a cargo de o próprio parlamento fazê-lo funcionar adequadamente, a partir da autonomia de seus julgamentos. E é aí que encontramos uma aparente contradição.
Por que políticos dedicados a negociatas, a trocar favores pessoais, a planejar manobras eleitoreiras iriam prezar por um sistema de autopunição se, como afirma Jeremy Waldron (A dignidade da legislação, Martins Fontes, 2003), não tomam decisões com base em princípios — como fazem nossos tribunais ou o juiz “Hercules” de Ronald Dworkin?
Essa questão é compreendida pela dinâmica da própria política. O sistema político é extremamente sensível aos inputs do eleitorado. Cerca de 40% dos representantes da Câmara dos Deputados são trocados a cada eleição. Tendem a permanecer mais facilmente na política aqueles que conseguem construir reputações eticamente sólidas.
Ao aprovar o relatório que pede a cassação do mandato de Jaqueline Roriz, os membros da Comissão de Ética sentiram o poder comunicativo (Habermas) da esfera pública ameaçando a reeleição de todos, indistintamente: “Criou-se um clima psicopolítico e deu-se um resultado surpreendente. Até deputados que anunciavam a intenção de votar contra o relator [que pedia a cassação] mudaram o voto”, disse o deputado Chico Alencar.
O mecanismo funciona porque é político – e só assim pode ser. Funciona movido à pressão da opinião pública, que exerce um poder concreto e imediato sobre o parlamento na forma de coação, uma vez que o julgamento eleitoral fica diferido para as eleições subsequentes.
O mesmo ocorrera, por exemplo, na votação da Lei da Ficha Limpa, aprovada à quase unanimidade pelas casas do Congresso e não contestada em controle concentrado no Supremo Tribunal Federal em 2010 por tratar-se de ano eleitoral. A lei jamais teria saído do papel não tivesse sido votada naquele momento. E isso não é ilegítimo. É precisamente a força ético-normativa do republicanismo pátrio, exigindo probidade e representação voltada ao interesse público, que se pôde conquistar uma legislação eleitoral contundente contra o hábito pátrio de levar vantagem às custas de um estilo de vida moralmente reprovável.
Mas, afinal, é constitucionalmente possível julgar Jaqueline Roriz por quebra de decoro parlamentar por ato ocorrido em 2006, mas revelado somente em 2011, logo após as eleições de 2010, que a conduziu à deputação federal?
É juridicamente possível porque politicamente necessário. É uma implicação direta do regime democrático e da necessidade de proteção dos direitos individuais dos abusos do próprio sistema político. O decoro parlamentar visa assegurar a “dignidade da política” (Waldron), o respeito a cada criança, adulto e idoso, a cada homem e mulher, aos pobres e aos ricos, às pessoas especiais, aos padres e aos pais de santo, enfim, visa preservar a respeitabilidade e a crença das pessoas no regime democrático e na condução ética da vida pública e privada. É necessário para a desnaturalização cultural brasileira das práticas patrimonialistas, de compadrio, da confusão secular entre o público e o privado. É necessário para evitarmos os populismos de plantão, com seus regimes autoritários, sempre em voga na América Latina.
Quem dirá que a revelação do vídeo de Jaqueline Roriz, em março de 2011, recebendo dinheiro público para uso pessoal, não decrépita a reputação, a credibilidade, a imagem da atual legislatura de deputados, da democracia brasileira e de cada um de nós, enquanto membros corresponsáveis por esta sociedade política? Decoro e representação são indissociáveis.
E se o vídeo de Jaqueline tivesse sido revelado, de outra forma, antes das eleições de 2010, e ainda assim tivesse conquistado uma vaga na Câmara dos Deputados pelo voto dos brasileiros? Ou seja, por meio da escolha “soberana” da cidadania? Estaríamos, aí, diante de outro caso.
Luís Raul Andrade é advogado e mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP)