O custo do processo

POr ANTONIO CARLOS MARCATO

1. Pondera Vigoriti, com razão, que parte considerável da doutrina encara os problemas relacionados à duração do processo como algo de menor importância, possivelmente por não serem propriamente “científicos”. Ou, talvez, porque sejam estranhos à cultura jurídica o estudo e o emprego de metodologias de pesquisas de natureza econômica e de estatísticas complexas. (1)

De fato, ao examinarem o elemento custo do processo os doutrinadores geralmente focam a atenção na garantia do acesso à justiça aos carentes econômicos, abstraindo os custos indiretos do processo; e mesmo quando analisam os “danos marginais” resultantes da duração e encargos processuais, consideram apenas seus reflexos sob o ponto de vista das partes e do direito material em jogo, desatentos a conseqüências de outras ordens – como, por exemplo, os custos variáveis. (2)

Por outro lado, visualizada estaticamente a situação do Poder Judiciário, ou seja, o serviço judiciário quanto à manutenção permanente de seus prédios, instalações e equipamentos, assim como dos serventuários e magistrados, o custeio certamente compete ao Estado, pois lhe cumpre implantar e manter todos os serviços essenciais; dinamicamente, contudo, encara-se o serviço desempenhado pelo Poder Judiciário em favor do litigante, que a ele recorre para obter solução do caso concreto, caso em que cabe ao usuário, ressalvadas as exceções legais, suportar os respectivos custos, no todo ou em parte, como contraprestação pelos benefícios que lhe são proporcionados pela prestação jurisdicional.

Zuckerman lembra que, embora o direito de acesso seja universalmente reconhecido como requisito da justiça, suas implicações práticas são menos discutidas. No nível mais básico, é necessário considerar o custo direto e imediato de ingressar ou defender-se em juízo, sabido que na maior parte dos
sistemas processuais os litigantes pagam custas judiciais. Assim, a primeira questão é saber se as custas iniciais constituem obstáculo ao acesso ao Poder Judiciário e se aos que não podem assumi-las é negado ingressar na justiça. O
debate sobre o custo de ingresso na justiça repousa, então, em dois importantes fatores: cada sistema precisa adotar uma política, decidindo se o custo processual deve ser financiado fundamentalmente por seus usuários, os litigantes, por meio de custas judiciais realísticas ou, como alternativa, se deve ser financiado principalmente pelos impostos pagos pelos contribuintes; depois, é importante lembrar que custas judiciais baixas tendem a encorajar o litígio. Conseqüentemente, quanto mais demandas judiciais houver, mais o contribuinte terá que pagar para manter o sistema, ao passo que, alternativamente, se os recursos não aumentarem na proporção do volume de ações, maior será a morosidade. Desse modo, a relação entre custo e acesso ao judiciário é complicada, sendo tratada de diferentes formas por diferentes sistemas.(3)

2. Além desses complicadores, outro há, no Brasil, a desestimular o estudo do tema: a carência de dados estatísticos confiáveis e atuais que permitam avaliações objetivas e seguras sobre o binômio custo-duração, principalmente nos tribunais ordinários e nos órgãos de primeiro grau. Há, isto sim, trabalhos de pesquisadores e analistas da área econômica, muitos colocando a crise do processo como componente negativo do que se conveniou denominar “custo Brasil”.

Nessa ótica, o comportamento alegadamente errático do Poder Judiciário ao solucionar questões econômicas colocaria em risco a segurança jurídica e a estabilidade dos negócios, além de gerar insegurança nessa misteriosa – porém influente – entidade conhecida como “mercado”. (4)

Essa deficiência estatística de modo algum é exclusividade brasileira. Examinando o custo do processo na Europa, Storme afirma que não há muitos dados para comparar os recursos gastos com a Justiça e os existentes são tão díspares de país para país que não se pode agregá-los de forma lógica. Não obstante, ele apresenta levantamentos realizados por alguns países europeus no final do século passado, mostrando que, com exceção da Holanda, os demais países avaliados (Alemanha, Espanha, França, Inglaterra e Itália) investem poucos recursos nas respectivas máquinas judiciárias.(5)

3. É notória, ademais, a maior preocupação dos protagonistas do processo com sua duração, mais que com seu custo, estabelecendo o Estado, nesse particular, a garantia da prestação de assistência jurídica integral e gratuita, por meio das defensorias públicas, aos que comprovarem insuficiência de recursos (CF, arts. 5º, LXXIV e 134); mas, apesar de essa garantia constitucional ser bem mais ampla e generosa que os benefícios previstos pela Lei nº 1.060, de 1950, é lícito questionar se ela se traduz no plano efetivo ou se reduz ao formal.(6) Ao que consta, todas as Unidades da Federação já organizaram suas defensorias públicas, mas nem todos os foros contam com defensores públicos (como é o caso do Estado de São Paulo), persistindo, pois, a necessidade de colaboração da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de advogados dativos. Ademais, é sabido que nem sempre os beneficiários de assistência jurídica integral podem contar com assistência técnica especializada, em detrimento de seu direito à prova e, por conseqüência, a um resultado justo.

Para as causas de competência dos Juizados Especiais também há previsão de isenção de custas em primeiro grau de jurisdição(7); como nos demais casos persiste a obrigatoriedade de pagamento das custas judiciais para os não beneficiados pela garantia constitucional, acrescidas dos honorários advocatícios e das verbas sucumbenciais, o custo potencial do processo pode afastar do Poder Judiciário parcela significativa de cidadãos. Mesmo nos casos em que o acesso ao Poder Judiciário prescinda da atuação profissional de advogado, essa faculdade fica limitada ao primeiro grau de jurisdição, sendo obrigatória a representação para a utilização da via recursal.

Como não se pode conceber a idéia de que o Estado assuma o ônus integral pelos custos do processo – neles incluídos os relacionados, direta ou indiretamente, à administração da justiça –, desviando recursos de outras atividades essenciais, outras soluções devem ser buscadas para minimizar o impacto negativo desses custos para as partes, entre eles a racionalização dos meios de produção de provas e dos procedimentos judiciais.

4. Alguns países buscaram soluções pontuais para a redução do ônus financeiro imposto às partes pelo processo.

Assim a Espanha, que em 1986 aboliu as custas judiciais (embora como providência destinada, precipuamente, a combater a corrupção de funcionários da justiça(8)); em Portugal as custas judiciais são fixadas proporcionalmente ao valor da causa e ao estágio processual e o juiz pode deferir os benefícios de assistência judiciária aos necessitados.(9)

Determinadas legislações autorizam ou mesmo incentivam o seguro de custos do processo judicial, como ocorre na França – que, por sinal, confere abrangente assistência judiciária àqueles de poucos recursos(10) – e na Holanda, onde 15% das famílias mantêm essas apólices, circunstância que induz as seguradoras a evitarem demandas judiciais e a buscarem soluções amigáveis, ou, sendo inevitável o ingresso em juízo, a assessorarem os segurados em suas disputas.(11) Mesmo na Alemanha, cujos custos são modestos, quase um quinto dos processos são financiados por seguro.(12)

5. Atenção particular merecem, nesse aspecto, os países da common law.

5.1 Diferentemente da grande maioria dos países europeus continentais, nos quais a crise da justiça vem centrada, principalmente, na excessiva dilação processual, na Inglaterra o seu custo sempre representou o fator preponderante. Primeiro, porque tradicionalmente as partes envolvidas em litígio tinham ampla liberdade, antes da edição das Civil Procedure Rules, para determinar a intensidade e a duração da atividade forense, especialmente durante a fase preparatória para o julgamento – liberdade a propiciar oportunidades para a procrastinação do processo, principalmente da parte dos advogados, pois geralmente remunerados por hora de trabalho.(13)

Além disso, como a parte sucumbente arca com os custos da vencedora, aquela que acreditasse que o aumento das despesas com o processo aumentaria suas chances de sucesso, teria óbvia razão para nele continuar investindo, comportamento gerador de um círculo vicioso: quanto mais uma parte investia, mais a parte adversa sentia-se compelida a acompanhar o jogo, temerosa de que um advogado menos famoso ou um perito menos qualificado pudesse comprometer suas chances de sucesso e trazer o risco de arcar com o ônus da sucumbência, além de perder a causa. Chegava-se ao ponto, em determinados casos, em que o motivo de as partes persistirem investindo no processo nem mais fosse o intuito de conseguir uma sentença favorável no julgamento do mérito, mas, sim, recuperar o dinheiro já gasto na contenda, que poderia até exceder a quantia em disputa.

Por fim, influía decisivamente no custo processual o método de pagamento pela prestação de serviços jurídicos. Como os advogados são geralmente pagos por hora, independentemente do resultado da causa e sem limite de valor máximo, esses profissionais preferem patrocinar as causas complexas e longas. Conseqüentemente, litígios sérios seriam acessíveis apenas às pessoas ricas, às muito pobres restando buscar a assistência judiciária pública.(14)

Em seu influente relatório de 1996 – que motivou a edição das Civil Procedure Rules, em vigor desde abril de 1999 – Lord Woolf asseverou que os defeitos do sistema processual civil inglês eram, basicamente, o custo do processo, a superar até mesmo o valor da pretensão; a deficiência na igualdade entre poderosos, litigantes ricos e litigantes sem recursos; a imprevisibilidade do custo e tempo de duração do processo; a fragmentária organização do sistema, sem a definição da responsabilidade global pela administração da justiça civil.(15)

Não obstante esse custo do processo representar a causa principal da crise de justiça inglesa, sua considerável duração também agia no sentido de agravá-la (ao menos pelos padrões locais), tanto que o tempo médio, desde o início dos trâmites processuais até a sentença na Alta Corte, era, segundo pesquisas relativamente recentes, de 161 semanas em Londres e 195 semanas nas demais localidades; para os juízos de condados, de 70 e 90 semanas, respectivamente.

Em razão desses problemas – e tendo em vista, ademais, a necessidade de sua adaptação ao sistema jurídico comunitário –, a Inglaterra vem realizando séria tentativa no sentido de reformar seu sistema processual, notadamente por meio das já aludidas Civil Procedure Rules.

A reforma preconizada por Lord Woolf refletiu-se em três níveis: a) sob o ponto de vista formal e estrutural, o procedimento civil foi unificado, com simplificação da linguagem; b) sob o ponto de vista teórico, a intervenção decisiva da autoridade judiciária a partir da instauração do processo, com os objetivos de delimitar temporalmente o seu curso e de equilibrar o tempo e as despesas processuais ao valor e complexidade da causa – daí a adoção de procedimento para ações de pequeno valor (small claims track – CPRs, Part 27), sumário (fast track) ou híbrido (multi-track); c) a nível técnico, a definição de competência por valor e complexidade da causa, o aumento dos incentivos processuais (sob o controle do juiz) visando a conclusão antecipada ou extrajudicial das causas etc.(16) Outro aspecto relevante diz respeito ao custo excessivo do processo, assumido pelas partes ou pela própria administração judiciária, assim como a necessidade de patrocínio pelo Estado (Legal Aid).(17)

5.2 A duração do processo civil norte-americano, que varia bastante de Estado para Estado e até mesmo entre diferentes juízos e tribunais dentro da mesma Unidade da Federação, pode influir decisivamente no seu custo.

Em 1984 a Ordem dos Advogados dos Estados Unidos adotou metas para a redução da morosidade nas ações cíveis, com a recomendação de que 90% das causas terminassem no período de um ano e todas fossem elucidadas em dois anos. Entretanto, tais metas não foram atingidas. Estudo realizado em 1991 em tribunais estaduais de trinta e nove cidades, por exemplo, encontrou diferenças bastante consideráveis no concernente ao grau de cumprimento dos critérios de demora prescritos pela Ordem dos Advogados. Nenhum atingiu as normas recomendadas, mas alguns chegaram perto. Em doze dos tribunais, no mínimo 90% das causas foram concluídas no prazo de dois anos a partir da distribuição, e, em um deles, apenas 1% fazia dois anos. Por outro lado, em três tribunais, mais de 50% das causas duraram mais de dois anos, e, em um desses, 96% delas duraram mais de um ano.(18)

Por isso mesmo, está-se procedendo a uma reavaliação da filosofia do litígio e da função do Judiciário na esfera civil, atuando como principal ingrediente para a reforma a transferência do controle de litígios das partes para juiz(19) (como já ocorre, por sinal, na Inglaterra). Todavia, pelo que se evidenciou até o momento, é difícil avaliar com confiança o sucesso da nova estratégia de administração das ações judiciais pelo Poder Judiciário: há indicações de que a precoce administração diminui a duração do processo, mas não reduz necessariamente os custos totais; há motivos para crer-se que os juízes possam trazer aperfeiçoamentos, com uma atitude de interesse mais ativo em suas ações cíveis, desde que persistam em sua tentativa de controle sobre os litígios.(20)

Embora o custo do processo judicial norte-americano seja elevado, suas conseqüências sociais são abrandadas pelo sistema de pagamento de honorários advocatícios condicionado ao ganho da causa. Ainda assim, esse sistema levou a sérios problemas. O interesse dos advogados em patrocinar ações em que recebam seus honorários condicionados ao ganho da causa é estimulado pela perspectiva da concessão de elevados valores, impostos como condenação em punitive damages no sistema americano (independentes da indenização, acrescentados por circunstâncias agravantes). Contudo, o nível e a freqüência de tais compensações causaram tanto alarme que uma série de poderes legislativos estaduais elaboraram leis com o intento de reduzir a facilidade de condenação em danos punitivos ou fixar-lhes um limite.(21)

1 Notas sobre o custo e a duração do processo civil na Itália, p. 43. 2 Entre eles – mas não exclusivamente –, os relativos à assistência técnica das partes e ao bloqueio de bens (v.g., entre nós, os que podem resultar da penhora on-line). 3 Justice in Crisis: Comparative Dimensions of Civil Procedure, p. 8 e 9. 4 Examine-se a respeito, por todos, três trabalhos sobre o Judiciário brasileiro frente ao desenvolvimento econômico: A Reforma do Judiciário: Uma Análise Econômica, de Armando Castelar Pinheiro; O Judiciário e as Políticas Públicas no Brasil, de Matthew M. Taylor (textos eletrônicos); Segurança jurídica: performance das instituições e desenvolvimento, Luciana Gross Cunha, p. 131 a 143. Como contraponto a esses estudos, confirase as críticas apresentadas por Barbosa Moreira ao trabalho de cientistas políticos e economistas brasileiros sobre a Justiça nacional. Dois cientistas políticos, três economistas e a Justiça brasileira, Temas de direito processual, nona série, p. 401 a 412. 5 Comment and questionnaire for the international congress on procedural law, p. 459 a 463. A respeito confira-se, ainda, Zuckerman, Costs of litigation, p. 481 a 483. 6 V., a respeito, Nalini, O juiz e o acesso à justiça, p. 33 e 34. 7 Art. 54 da Lei nº 9.099/95 (v. art. 1º da Lei nº 10.259/01). 8 V., a respeito, Díes-Picazo Giménez antes das reformas de 2000. Civil Justice in Spain: Present and future. Access, Cost, and Duration, p. 397 a 400. 9 Cf. Leitão Marques, Gomes e Pedroso, The Portuguese System of Civil Procedure, p. 430 a 433. 10 V., a respeito, Cadiet, Civil Justice Reform: French Perspective, p. 310 a 314. 11 Cf. Blankenburg, Civil Justice: Access, Cost and Expedition. The Netherlands, p. 453 a 456. 12 Zuckerman, Justice in Crisis: Comparative Dimensions of Civil Procedure, p. 32. 13 É o que também ocorre na Austrália, como informa Davies: Civil Justice Reform in Austrália, p. 166 e ss. 14 Cf. Zuckerman, Justice in crisis: comparative dimensions, p. 14 e ss. 15 Access to Justice – Final Report (Final Report to the Lord Chancellor on the civil justice system in England and Wales), Section I, Overview, The principles (texto eletrônico). 16 Access to Justice – Final Report (Final Report to the Lord Chancellor on the civil justice system in England and Wales – texto eletrônico). 17 Cf. Crifò, La riforma del processo civile in Inghilterra, p. 513. 18 Cf. Zuckerman, Justice in crisis: comparative dimensions of Civil Procedure, p. 20 e 21. 19 Nessa direção, a Suprema Corte promulgou, em 31 de dezembro de 2004, as Federal Rules of Civil Procedure, elaboradas pelo Committee on the Judiciary (texto eletrônico). 20 Cf. Zuckerman, Justice in crisis: comparative dimensions of Civil Procedure, p. 19 a 21. 21 Em 1991, o Conselho de Competitividade do Presidente, liderado pelo então Vice-Presidente, noticiou que os EUA tinham se tornado “uma sociedade litigiosa”, na qual “o litígio cobra necessariamente um pedágio terrível da economia americana”. O relatório então apresentado citou a estimativa de que “o advogado médio toma US$ 1 milhão por ano da produção de bens e serviços do país”. Cf. Zuckerman, Justice in crisis: comparative dimensions of Civil Procedure, p. 13; v., ainda, p. 20.

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