Por Bruno Dantas
A Câmara dos Deputados retomou nos últimos dias, sob a presidência e a relatoria-geral, respectivamente, dos deputados Fábio Trad (PMDB-MS) e Sérgio Carneiro (PT-BA), a tramitação legislativa do projeto do novo Código de Processo Civil (CPC). Elaborada com grande rigor técnico e sólido alicerce democrático por uma Comissão de Juristas presidida pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, a proposta foi tratada com prioridade e aprovada pela unanimidade do Plenário do Senado Federal no final de 2010.
É simbólico que os deputados comecem os debates em torno do projeto de reforma do CPC no exato momento em que os presidentes do STF, do Senado e da Câmara, juntamente com a presidente da República, promovem as tratativas finais em torno da agenda nacional de aperfeiçoamento do sistema de Justiça, chamada de III Pacto Republicano, que terá no projeto do novo CPC um dos carros-chefes.
Já na segunda edição do Pacto Republicano, em 2009, discutia-se a necessidade de um novo CPC, devido ao esgotamento do modelo de minialterações levado a efeito nos últimos anos. Essa compreensão foi fundamental para a sua aprovação em tempo recorde no Senado: seis meses, em pleno ano de eleições gerais. Com a renovação do compromisso dos três poderes, a expectativa é que a Câmara Federal dê sua contribuição de aprimoramento ao texto e o aprove com a rapidez que a sociedade brasileira deseja.
Sintoma eloquente de que a Reforma do Judiciário — iniciada em 2004 com a aprovação da Emenda Constitucional 45 — carece de urgente aprofundamento consubstanciado na completa reformulação dos códigos de processo, são os dados estatísticos recentissimamente divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, que, na comparação entre 2009 e 2010, revelam uma ampliação de 7% do gasto público com a Justiça estadual sem a correspondente diminuição da taxa de congestionamento, que aumentou 4%, apesar de o número de processos novos no mesmo período ter diminuído 5% (Relatório Justiça em Números 2010).
Esses números mostram que, mesmo sem expansão da litigiosidade, a capacidade do Judiciário de dar respostas rápidas às demandas sociais que lhe são apresentadas é limitada no cenário atual, e isso se deve em larga medida à ausência de instrumentos processuais que permitam aos juízes e tribunais dar respostas homogêneas às demandas de massa.
Isso, evidentemente, não quer significar que o orçamento destinado ao Judiciário seja satisfatório. Mas indica, sem sombra de dúvida, que a solução para a litigiosidade desenfreada e a morosidade excessiva não se resume a aplicar mais doses do mesmo remédio, contratando mais juízes e serventuários e construindo novos edifícios. É preciso alterar a essência do sistema processual, dotando-o de racionalidade e consagrando experiências exitosas no Brasil e no exterior, como pretende o projeto do novo CPC.
Ao investir na simplificação dos procedimentos e na valorização da conciliação, o projeto toma emprestada a experiência bem-sucedida dos Juizados Especiais. Ao valorizar os precedentes dos tribunais superiores, aproximamos-nos do que há de mais moderno no mundo, prestigiando a igualdade perante a lei e a segurança jurídica, necessárias à criação de ambiente favorável ao aporte de investimentos e ao desenvolvimento econômico e social.
Nesse sentido, o imperativo de que os tribunais devem uniformizar e zelar pela estabilidade de sua jurisprudência encerra um grande serviço ao nosso país, tão carente de previsibilidade. Mais que isso: prestigiando a uniformidade interpretativa, a proposta impede ofensas à isonomia e à legalidade, de modo que a lei, que é vocacionada a ter uma única interpretação correta, deverá receber sempre, dadas as mesmas condições fáticas relevantes ao julgamento, idêntica interpretação.
Registre-se, por oportuno, que se, numa perspectiva, a divergência judicial concita a dialética e estimula o desenvolvimento do direito e o surgimento de soluções afinadas com a realidade social, em outra, é inegável seu poder de estimular a litigiosidade no seio da sociedade. E essa é uma doença crônica no Brasil.
O projeto prestigiou o juiz de primeiro grau, retirando o efeito suspensivo ope legis da apelação, permitindo a concessão da tutela antecipada independentemente de urgência (tutela da evidência) e valorizando o papel do magistrado como gestor do processo. Simultaneamente, consolidou demandas antigas da advocacia brasileira, como a contagem de prazos em dias úteis, a suspensão dos prazos processuais entre 20 de dezembro e 20 de janeiro, e a valorização dos honorários advocatícios mediante a consagração de seu caráter alimentar, a vedação da compensação em caso de sucumbência recíproca e a positivação de critérios objetivos para a sua fixação quando o Poder Público for derrotado.
Além disso, o novo CPC assegura a efetividade dos provimentos jurisdicionais, aperfeiçoando a execução civil e estabelecendo uma série de sanções pecuniárias àqueles litigantes contumazes que se valem do processo para postegar o pagamento de suas dívidas, tais como, por exemplo, a sucumbência recursal, que desestimulará as chamadas aventuras judiciais.
O mais precioso traço do novo CPC, contudo, é o espírito democrático que o orientou. Vale lembrar que, ao longo da nossa história, tivemos dois códigos de processo civil: um do início da ditadura Vargas, em 1939, e outro, o vigente, de 1973, auge da ditadura militar, embora vozes autorizadas defendam que a ideologia do regime não teria contaminado o Código. Agora, quase 40 anos depois, a população e os operadores do Direito se fizeram ouvir em todas as etapas. Foram, ao todo, 18 audiências públicas, além da participação, por via física ou eletrônica, de milhares de pessoas e instituições, com elevado índice de acolhimento de sugestões.
Tamanha abertura e participação resultou num projeto que retrata a experiência e a enorme expectativa de cada recanto do Brasil. A proposta, assim, é plural e se desprendeu das convicções pessoais dos processualistas que a redigiram, pois não se vinculou estritamente a essa ou àquela escola. Isso, de certo modo, justifica as críticas de alguns poucos professores renomados que, por não enxergarem suas teses no texto, a ele se opõem.
É importante que se diga com todas as letras, portanto, que o projeto do novo CPC não pertence aos processualistas, mas ao povo brasileiro. Estamos convictos de que o aceno das quatro maiores autoridades da República em eleger a aprovação do novo CPC como prioridade para 2011 denota elevado espírito cívico e democrático, além de aguda percepção dos gargalos que ainda amarram o Brasil de hoje — que deseja crescer com pujança — a um passado de leis e instituições arcaicas. Aguardemos, então, ansiosamente, a contribuição da Casa do Povo.
Bruno Dantas é conselheiro do CNJ, membro da Comissão de Juristas que redigiu o anteprojeto do novo CPC, representante da Presidência do Senado nas discussões do III Pacto Republicano e coordenador acadêmico e professor da pós-graduação em Direito Processual Civil do IDP-DF.