PEC da bengala visa garantir perpetuação no poder

Por Roberto Wanderley Nogueira

A Proposta de Emenda Constitucional 457/2005 (“PEC da Bengala”) não é apenas uma impropriedade do poder constituinte derivado, mas uma ignomínia à Nação brasileira e aos valores insertos na própria Carta da República.

A Constituição estabelece que o servidor público civil, inclusive o magistrado, se aposente, de modo compulsório, aos setenta anos de idade, estando ou não em boas condições de saúde física e mental.

O debate que se trava no país hoje em dia, à sombra dessa Proposta que altera essa faixa em mais cinco anos, sobre destacar virtudes de parte a parte, esconde um vício de origem que o torna agravado em face justamente do caráter superficial desse debate: o problema do estágio de desenvolvimento ético-político da sociedade brasileira, tantas vezes diagnosticado pelos antropólogos nacionais, que não permite o aprimoramento de suas relações internas sem as devidas salvaguardas que asseguram a oxigenação de suas instituições bem como a transparência de seus enredos funcionais específicos.

O instituto da aposentadoria compulsória vem ao encontro desse garantismo institucional em sociedades de economia periférica como é o caso brasileiro.

A ideia é combater o apego ao poder.

Com efeito, ainda não se deve abandonar a crítica relacionada ao velho patrimonialismo que domina os estamentos públicos no Brasil desde a colônia em maiores ou menores taxas de empenho e dissimulação, inclusive em causa própria. Nesse contexto histórico, muitos auguram permanecer no serviço público ativo não exatamente (conforme se declara) por motivações altruísticas de servir à pátria e ao próximo, enfim, ao bem comum, mas em razão de apelos de conveniência que lhes servem a si mesmos e aos seus, antes que ao país e aos semelhantes, quando impessoalmente considerado.

As vaidades que derivam do fato de se exercer a função pública, sobretudo quando eivada de significativa carga de poder estatal, são corolário do prestígio pessoal que à personalidade do investido acaba sendo conferido em razão da imanência política de certos cargos públicos, caso dos magistrados.

Pensar, desse modo, selecionando, além do mais, quadros a serem especialmente contemplados com a nova regulação constitucional, é mesmo corroborar as velhas práticas das quais a história pede que delas se nos afastemos para que possamos assegurar ao país seu efetivo ingresso no concerto das Nações realmente desenvolvidas.

Nada sugere, diferentemente, ao homem comum do povo que a permanência de dignitários em postos de evidência, como os Tribunais Superiores e também os Tribunais locais, por mais cinco longos anos não apenas atrasa o fluxo natural das carreiras judiciárias em prejuízo da eficiência no meio e no favor da hipossuficiência em outros tantos meios que ficam privados da expectativa do concurso desses profissionais mais experimentados, mediante o que se poderia garantir a intergrupalidade de uma sociedade aberta, como, de resto, se presta a agasalhar possessões odiosas de cargos, funções e bens de uso permanente que são, a rigor, o núcleo de toda cobiça ao desempenho das investiduras que as encerram.

Para agravar, Tribunais há que, ainda hoje, insistem em desobedecer, descerimoniosamente, o comando do artigo 93, inciso II, alínea “b”, da Constituição Federal, para aproveitarem nos seus acessos pelo critério de merecimento candidaturas de juízes ainda não integrantes da primeira quinta parte das listas de antiguidade respectivas. Com essa atitude, sobre agravar-se o cenário de emulações corporativas, um juiz muito jovem pode permanecer em postos de comando judiciário por um tempo absurdamente excessivo. A jurisprudência vai refletir esse quadro e a carreira judicial seguirá abalada em seus fundamentos e perspectivas com riscos à independência funcional dos juízes.

Bem por isso, não se cogita, de regra, em dividir o poder disponível, mas em intensificá-lo, a dizer: expandi-lo nas atribuições (nem sempre constitucionalmente aceitáveis) e densificá-lo na vinculabilidade de seus atos e manifestações.

Sem prejuízo das sempre presentes boas intenções, eis, na verdade, a lógica do propósito hodierno de incrementar o tempo de permanência de certos agentes no serviço público ativo.

A “PEC da Bengala” traduz, essencialmente, um escândalo, uma espécie de “trem da alegria” que não se tolera em uma sociedade de tipo aberto e democrático. Suas motivações são apenas virtudes periféricas, acessórias, as quais agravam o vício contido em sua origem e finalidade. A gerontocracia judiciária, manifestação à brasileira que não evoca necessariamente as tradições dos mais antigos e reflete um modelo de administração da coisa pública judiciária inteiramente enfastiado e primitivo — por isso que se espera venha a ser cabalmente afastada por inconveniência ético-moral e histórica —, se materializada, vai perpetuar o entulho autoritário que ainda vergasta em nossos Tribunais. Aliás, todos, em maior ou menor escala.

O medo das atuais composições (as exceções confirmam a regra antropológica em foco) é justamente o de ter de conviver com gente mais independente que espera pela ascensão para fazer aquilo que supõe ser a coisa certa. Quanto mais são reciclados os Tribunais, mais se sujeitam a incorporar em seus quadros pessoal distinto da própria tradição, nem sempre constitucionalizada. Isso mete um medo terrível naqueles que supõem que administrar a jurisdição das instâncias superiores é como gerenciar feudos ou possessões colegiadas, cujos membros se arregimentam, monolítica e hermeticamente, em torno de efêmeras autonomias funcionais.

Quem chega aos 70 anos no serviço público, ainda que tendo saúde e vigor físico e mental para o trabalho, não dispõe, contudo, da mesma vitalidade emocional para lidar com a extensão dos problemas funcionais, sobretudo no âmbito do Poder Judiciário, cujas pautas traduzem um nunca acabar e um atual regime de cobranças sistemáticas estabelecido pelo CNJ parece sufocar a cada juiz em torno de um grande dilema profissional: produzir em série ou qualificar a sua produção jurídica.

Adicionalmente, o regime de subsídios sem vantagens pessoais implica um completo desprestígio àquele que se dedica há anos ao exercício judicial, posto que um magistrado em fim de carreira recebe exatamente aquilo que um recém ingresso na magistratura recebe. Desse modo, não faz o menor sentido permanecer na atividade, salvo pela razão do abono de permanência que é o reembolso tributado do percentual recolhido à Previdência Social. Por isso mesmo, conclui-se que outras são as motivações pelas quais, via de regra, se intente com tanta veemência a prorrogação da aposentadoria compulsória no serviço público judiciário.

Posto isto, a “PEC da Bengala” é mesmo uma iniciativa do prosaísmo tupiniquim, e não reúne virtude moral em seu contexto. É jogo para garantir a perpetuação no poder dos que dele já fazem parte, porque simplesmente não querem “largar o osso”. Ingenuidade à parte, acredita-se do mesmo modo que o esforço de aprová-la tampouco é virtuoso.

A maior arma do opressor, caro leitor, é a mente do oprimido! Assim, é melhor não se deixar levar por embalos retóricos, cujo propósito é fazer a Nação acreditar nos seus “velhinhos” desde que continuem a mandar no sistema público.

E como o Nordeste brasileiro continua na vanguarda do primitivismo nacional, eis que o Estado do Maranhão, em que nobres deputados estaduais decidiram mudar a Constituição Federal, agasalha uma iniciativa local no mesmo sentido da “PEC da Bengala”, antinomia que agora vem, recorrente, do Congresso Nacional.

[Artigo publicado, originalmente, no jornal Carta Forense]

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